W. H. Auden

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Por PAULO MARTINS*

Considerações sobre o poeta inglês

“The words of a dead man/ Are modified in the guts of living” (Auden, W. H. “In memory of W. B. Yeats”).

Há quase 50 anos, a poesia perdia Wystan Hugh Auden (1887-1973). Poeta que ao lado de T. S. Eliot e Ezra Pound[i] forma uma grande tríade da poesia moderna em língua inglesa. Vale dizer que sua poesia complementa o espectro estético dessa produção moderna. W. H. Auden dista de ambos, não comunga do mesmo universo cultural e literário. Sua cepa é outra, é outra, sua turma. A perspectiva política contribui muito nesse distanciamento. Afinal, Eliot é um cristão conservador; Pound, um fascista, partidário de Mussolini e Auden é um egresso de Oxford que participa da resistência republicana na Guerra Civil Espanhola, um homem de esquerda. Esses dados na comparação entre os poetas e na observação da poesia dos três são operantes para intelecção desse momento poético.

Definitivamente, a diversidade política que encontramos nesse trio é a comprovação de que a boa poesia prescinde, independe do viés político assumido. Boa poesia não tem raça, credo, ideologia ou gênero. Tem poesia: linguagem condensada, esteticamente construída. O poético depende da destreza com as palavras, da compreensão de sua musicalidade, de seu ritmo, da sua mensagem – penso em Jakobson.

Depende de como elas, as palavras, são arranjadas na folha de papel, a pele do poema, e de sua sintaxe, corpo vivo em rico ordenamento. Depende de como as palavras são usadas, na óbvia denotação ou na sugestiva conotação a partir de uma seleção lexical. Depende da invenção de novos sentidos, quando os tropos são aplicados e a relação entre a significação e a forma expressa que produz estranhamento irreconhecível para em seguida, velocidade da luz, transformar-se em algo luminoso, vibrante, etéreo … poesia. Assim, esses poetas se equivalem, pois se afinam no ato de fazer boa poesia.

Já que a característica maior da poesia é sua universalidade que, sem sombra de dúvidas, associa-se ao caráter de verdade que as palavras assumem em cada leitura possível, afinal como W. H. Auden diz na epígrafe “as palavras de um homem morto modificam-se nas entranhas dos vivos”. O próprio Auden, contudo, já advertira que as verdades contidas nas leituras são finitas e podem ser organizadas hierarquicamente: as mais verdadeiras, as duvidosas, as certamente falsas e as absurdas.

Trato, pois, das verdadeiras. São elas que conseguem, a partir da particularidade singular e individual, atingir o universal que a todos nós aflige, toca, cala. O universo poético, portanto, é o espaço no qual a individualidade, a pessoalidade e a personalidade se expandem e conseguem alcançar o todo. Não foi de outra forma que Aristóteles no conhecido capítulo 9 da Poética propôs que a poesia é mais filosófica e elevada que a história: “não diferem o historiador e o poeta, por escreverem em verso e prosa (…) diferem sim, em que diz um as coisas que sucederam e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é mais filosófica e mais elevada que a história, pois refere aquela o universal e esta o particular”.

No entanto, a singularidade pode surgir de materiais diversos, se observado o processo de composição. Pode advir, por exemplo, de fatos reais, do vivido ou pode surgir de um momento fecundo, absolutamente hipotético. E dessa forma distingue-se a poesia de Drummond (Quando nasci veio um anjo torto/desses que vivem na sombra/disse: Vai Carlos! Ser gauche na vida[ii]) e Pessoa (O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente[iii]), ou mesmo, a de Eliot (Tempo presente e tempo passado/ Estão ambos talvez presentes no tempo futuro/ E um tempo futuro contido no tempo passado./ Se todo tempo é eternamente presente/ Todo o tempo é irredimível[iv]) e a de Auden:

A sentence uttered makes a world appear
Where all things happen as it says they do;
We doubt the speaker, not tong we hear:
Words have no word for words that are not true
Syntactically, thought, it must be clear,
One cannot change the subject half-way thought,
Nor alter tenses to appease the ear:
Arcadian tales are hard-luck stories too.
But should we want to gossip all the time,
Were fact not fiction for at its best,
Or find a charm in syllables that rhyme,
Were not our fate by verbal chance expressed,
As rustics in a ring-dance pantomime
The Knight at some lone cross-roads of his quest?[v]

Nasce um mundo da frase pronunciada
Onde tudo acontece tal e qual;
Na palavra a palavra está empenhada:
À fala, não ao falante, dá-se o aval.
Clara seja a sintaxe, e mais: que nada
Mude ao tema seu fluxo natural
Nem troque os tempos por amor à toada
Pois há tristes versões de pastoral.
Para que um blábláblá interminável
Se os fatos são nossa melhor ficção?
Antes o verbo facilmente achável
Do que da rima a falsa encantação,
Qual dança de zagais mima o insondável
Cavaleiro a vagar na solidão[vi]

Se “were fact fiction for us its best” – os fatos são nossa melhor ficção, seria Auden o poeta, por seu apego ao real, redutor, limitado ou algo somenos, menor? Absolutamente não. Da mesma forma que certo Drummond quando diz que “o tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”[vii], também não o é. Portanto, a dicotomia entre a matéria real e a matéria fictícia não pode ser fato determinante que qualifique a efusão lírica do poeta de York.

Entendido que sua matéria poética não poderia ser irreal, vale observarmos sob quais influxos W. H. Auden produziu sua obra. Lendo alguns poemas, vemo-lo envolvido ora com teorias marxistas, ora com freudianas, ora com um cristianismo existencial, que o fará relegar, em certa medida, sua homoafetividade e seu marxismo no final da vida.

Por outro lado, temos também que sua obra adere ao espaço físico porquanto há um Auden inglês e um norte-americano já que se naturalizou 1939. Ambos, entretanto, trabalharam a mesma matéria real, a melhor ficção.

Edmund Wilson, num breve texto “W. H. Auden in America” de 1956, adverte que, a despeito de o gênio de Auden ser basicamente inglês e isso inclui sua inquietação, sua riqueza, sua obstinação, seu atrevimento e sua excentricidade, a América teria lhe propiciado uma mente que sente a si própria no centro das coisas e isto ter-lhe-ia dado um ponto de vista que é inter- ou supranacional, aproximando-o de uma universalidade lírica mais-que-perfeita. Já José Paulo Paes, excelente tradutor do poeta, aliás, excelente tradutor, diz que “a fase americana está marcada por uma preocupação metafísica quase sempre ausente na fase inglesa, em que preponderam preocupações de ordem política e psicológica”.

Nessa perspectiva, observo que o marxismo de Auden está preso mais visceralmente à juventude. Esse matiz político-ideológico, contudo, não deve indicar que seus textos sejam peças de propaganda panfletária, algo quase sempre – há exceções – antiliterário. Antes, a poesia está revestida de caráter crítico às circunstâncias que envolvem a exploração burguesa e procura se constituir num alerta à consciência do gênero humano. Não há no poeta, assim, nenhuma característica de uma poesia engajada, stricto sensu, que se valem da literatura como etiqueta com fins que não lhe cabem, isto é, mera propaganda. Leio:

To-day the deliberate increase in the chances of death,
The conscious acceptance of guilt in the necessary murder;
To-day the expending of powers
On the flat ephemeral pamphlet and the boring meeting.
(…)
The stars are dead. The animals will not look.
We are left alone with our day, and the time is short, and
History to the defeated
May say Alas but cannot help nor pardon.[viii]

Hoje o inevitável aumento das chances de morrer,
A cônscia aceitação da culpa no fato do assassínio;
Hoje o dispêndio de poderes
No enfadonho, efêmero panfleto e no comício chato.
(…)
As estrelas estão mortas; os animais não veem.
Estamos sós com o dia que nos coube e o tempo é curto e a
História em vias de derrota
Pode dizer um ai mas não nos pode absolver nem ajudar.[ix]

A poesia não difere da poesia de Eliot e Pound apenas pela escolha da matéria a ser trabalhada, sua atitude diante do mundo é diversa. Porém, não podemos deixar de observar que a influência do cânone poundiano é facilmente verificável na produção dos poetas da geração de 30 e isto inclui Auden. A dimensão temporal futura que para Eliot e Pound era inexistente, afinal estávamos em The Waste Land[x], uma verdade da qual não se tinha saída, na poesia de Auden, Spender, Day Lewis[xi] e outros se revertia em utopia em estreita relação com a opção política.

A experiência de Auden com Freud começa em 1928 quando conhece em Berlin as teorias de Homer Lane e Georg Groddeck[xii]. Aquele um psicólogo norte-americano, este um psicanalista alemão cujas concepções acerca do desejo e das doenças psicossomáticas eram bem mais incisivas do que as do próprio Freud que é visto por Auden assim:

But he wishes us more than this: to be free
Is often to be lonely; he would unite
The unequal moieties fractured
By our own well-meaning sense of justice, 

Would restore to the larger the wit and will
The smaller possesses but can only use
For arid disputes, would give back to
The son the mother’s richness of feeling.[xiii]

Mas ele não desejava mais do que isso. Ser livre
É com frequência estar sozinho. Ele cuidava de unir
metades desiguais rompidas
por nossa boa intenção de sermos justos;

de devolver aos maiores a agudeza e a vontade
que os menores possuem e costumam usar
em tolas disputas, dar de volta
ao filho a opulência do sentir materno[xiv]

A fase americana, por seu turno, se reveste basicamente de um caráter existencial, que é fruto de sua reconversão ao anglicanismo. Sua base filosófica é Kierkegaard[xv], para quem, nas palavras de Paes, “Deus estava infinitamente distante do homem, a fé tinha de ser cega como um salto no escuro e a angústia era o preço a pagar pela fatal liberdade de termos de escolher sozinhos o que fazer a cada momento de nossas vidas sem nenhum guia para orientar-nos na escolha”. Tal predisposição, seguramente, justifica a afirmação de Wilson sobre seu posicionamento supranacional. Além do que, o aproxima do topos romântico da “queda” a que todo ser humano está sujeito, quando as imperfeições do gênero humano, suas inquietações seus defeitos, suas agonias afloram, plasmadas na obra poética como solução e sublimidade.

A estes aspectos da poesia de Auden somam-se mais dois que não estão limitados ao seu tempo-espaço. Antes, percorrem toda sua produção: a retórica e poética da simplicidade – gosto de pensar em Bandeira – e o influxo clássico.

Em artigo publicado em jornal (O Estado de São Paulo de 23/08/1998), Philip Hensher faz uma observação interessante. Diz ele: “Muitas vezes, [a poesia de Auden] pede ao leitor que consulte um dicionário, para entender versos como ‘Epannaleptics, rhopalics, analitics acrostics’ (Acrósticos apanalépticos, ropálicos, anacíclicos[xvi]), ou, com igual frequência, um dicionário biográfico, permitindo ao leitor acompanhá-lo quando começa a se comparar ‘with Bradford or with Cottam, that will do[xvii]. Mas não é um poeta que, como Pound ou Zukofsky, exige toda uma biblioteca para ler seus Poemas Completos.”

Realmente a afirmativa de Hensher é correta, porém não é prudente aproximar esta poética de algo prosaico. Ela se configura como projeto que prevê o efeito de sentido, como sói acontecer com grandes poetas. Em português temos Bandeira e algum Oswald, que por mais simples que pareçam ser, constituem-se num manancial de referências biográficas e intertextuais que jamais podem ser desconsideradas. A retórica da simplicidade, portanto, visa a transmitir aparência simples, contudo pouco há de simples no processo que a engendra.

Dessa forma, muito embora não precisemos de uma biblioteca para o entender, não podemos observar sua poesia ingenuamente como se lêssemos uma notícia de jornal. Afinal, estamos diante de poesia e essa não admite, seja ela qual for, um olhar neutro, tímido ou ingênuo. Há que se lembrar, não obstante a aparência referencial, que estamos diante de um código, afeito a efeitos de sentido que são parte necessária da mensagem.

É certo que, ao propor o aparentemente simples em detrimento do complexo, Auden desloca o efeito do ato imediato da leitura para o ato da intelecção, isto é, provocando retardamento da complexidade oculta. Aquilo que poderia ser apenas piada ou reelaboração de anedota se expande em significados e verdades muito maiores, leia-se:

Let us honour if we can
The vertical man
Though we value none
But the horizontal one.[xviii]

Honremos, como ideal,
O homem vertical,
Embora valorizemos
Só o horizontal mesmo.[xix]

Equivoca-se, portanto, parte da crítica que entende a poesia de Auden, por ser tão simples, não carece de comentários. Inúmeras são suas fontes, inúmeras as questões que envolvem-no, o resultado, o poema, a matéria perfeita em conjunção com a realidade, pura ficção.

*Paulo Martins é professor de Letras Clássicas na USP. Autor, entre outros livros, de A representação e seus limites (Edusp).

 

Notas


[i] Thomas Stearns Eliot (1888-1965) e Ezra Weston Loomis Pound (1885-1972).

[ii] Drummond de Andrade, C. “Poema de Sete Faces”.

[iii] Pessoa, F. “Autopsicografia”.

[iv] Eliot, T. S. “Quatro Quartetos”.

[v] Auden, W. H. “Words”.

[vi] Tradução de João Moura Júnior.

[vii] Drummond de Andrade, C. “Mãos Dadas”.

[viii] Auden, W. H. “Spain”.

[ix] Tradução de José Paulo Paes.

[x] Poema de Eliot publicado em 1922 cujo tema é grande guerra.

[xi] Stephen Harold Spender (1908-1995) e Cecil Day-Lewis (1904-1972).

[xii] Homer Lane (1875-1925) e Georg Walther Groddeck (1866-1934).

[xiii] Auden, W. H. “In Memory of Sigmund Freud”.

[xiv] Tradução de José Paulo Paes.

[xv] Søren Kierkegaard (1813-1885)

[xvi] Auden, W. H. “The Epigoni”.

[xvii] Auden, W. H. “Letter to Lord Byron”.

[xviii] Auden, W. H. “Dedication to Christopher Isherwood”.

[xix] Tradução de José Paulo Paes.

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