Por PAULO CAPEL NARVAI*
Bolsonaro insulta a memória de Oswaldo Cruz, ofende a nação e age como um autocrata medieval. É urgente aprovar lei sobre condecorações da República
Caro Dr. Oswaldo,
Eu me preparava, modestamente, para enviar um telegrama celestial cumprimentando-o pelo aniversário no dia 5 de agosto, pois afinal já lá se vão 149 anos desde aquele primeiro choro em São Luiz do Paraitinga, em 1872. Estava hesitante, pois não queria abusar da sua paciência. Foi então, Dr. Oswaldo, que recebi duas ligações, ambas pelo telefone celestial.
Na primeira chamada, era a minha mãe, que foi logo dizendo “Menino, deixa quieto o Dr. Oswaldo Cruz! Ele tem mais o que fazer aqui no céu, que é lugar para descanso eterno, não para resolver esses problemas que vocês criam aí na terra”. Eu sei que mãe é mãe, que devemos ouvi-las sempre com atenção e, mais uma vez, a minha estava coberta de razão. Eu não deveria abusar da sua paciência comigo, mesmo você tendo sido muito receptivo àquela minha Carta a Oswaldo Cruz, de outubro do ano passado, que deixei pública aqui no site A Terra é Redonda.
Mas mestre, como anda dizendo o povo aqui do Brasil, “a vida não tá fácil pra ninguém!”. Assim que desliguei, veio a segunda chamada.
Desta vez era o doutor Ciro de Quadros, Dr. Oswaldo, e ele estava irritadíssimo. Como, Dr. Oswaldo? Para eu “explicar aos leitores de quem se trata”? Ah, sim, claro.
Ciro Carlos Araújo de Quadros (1940-2014) foi o médico epidemiologista gaúcho que, após ajudar a Organização Mundial da Saúde (OMS) a organizar em escala planetária, nos anos 1970, a campanha de erradicação da varíola, atuando pessoalmente no trabalho epidemiológico de campo por vários anos na Etiópia, dedicou-se ao controle da poliomielite nas Américas, tendo sido bem-sucedido mesmo enfrentando enormes dificuldades, inclusive conflitos armados em El Salvador, Nicarágua e Peru. O Dr. Akira Homma, assessor científico do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), da Fiocruz, conta que, “em 2014, cinco semanas antes do seu falecimento, foi nomeado ‘Herói da Saúde Pública das Américas’ em reconhecimento aos extraordinários serviços prestados à Saúde Pública mundial”. O Dr. Ciro de Quadros é um brasileiro de enorme prestígio e reconhecimento internacional, deu aulas nas universidades de Cleveland, George Washington, Berkeley e Harvard, dentre outras americanas, foi pesquisador da Fiocruz e, com seu trabalho no Ministério da Saúde do Brasil, contribuiu para criar as bases do nosso Programa Nacional de Imunizações (PNI).
Como Dr. Oswaldo? Pra falar do Zé Gotinha, dizer que ele foi “uma espécie de avô do Zé Gotinha”, e falar dos prêmios que recebeu? Sim, bem lembrado, Dr. Oswaldo. Por aqui tem sim muita gente que nunca ouviu falar do Ciro de Quadros, mesmo ele tendo recebido muitos prêmios e condecorações em diferentes países e tendo popularizado o que costumava chamar de “gotinha da vida”, pois a vacina contra a poliomielite previne a doença, evitando dor, sofrimento e morte. Infelizmente, Dr. Oswaldo, muita gente desconhece o Ciro de Quadros, até mesmo sanitaristas, que se dedicam profissionalmente à saúde pública. Sim, ignoram-no também no Ministério da Saúde. Aliás, Dr. Oswaldo, principalmente no Ministério da Saúde. O senhor precisa ver o que andam fazendo por lá!
Voltando ao telefonema celestial do Ciro de Quadros, ele estava mesmo muito irritado, pois chegou por lá a notícia de que a cobertura vacinal contra a poliomielite, que atingiu 100% em 2009 caiu para 66% em 2020. Pior, Dr. Oswaldo, ele soube que na semana passada o sujeito que colocaram na Presidência da República resolveu conceder a Medalha de Mérito Oswaldo Cruz a alguns de seus ministros, assessores, chefes de gabinete, funcionária do cerimonial, aos presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado e da Petrobrás(!) e à própria esposa. “Se o presidente outorgou a Medalha para si mesmo?”. Não, Dr. Oswaldo, ele não chegou a tanto, ou pode ser que tenha se esquecido, nunca se sabe.
Mas apesar do chiado no áudio, muito comum nessas ligações telefônicas celestiais (quando o ministro Paulo Guedes chegar ao céu, certamente mandará privatizar a Telecéu, culpando a empresa pelos ruídos… O Guedes é o sujeito mais sem noção que temos por aqui, Dr. Oswaldo), deu para ouvir nitidamente que o Dr. Ciro de Quadros quer devolver a Medalha que lhe deram. Não quer, “de jeito nenhum”, estar ao lado desse pessoal premiado em 2021. E logo ele, um sujeito normalmente tão calmo, com tanta paciência – olha que foi necessário muita calma e paciência para levar em frente aquele trabalho na Etiópia.
Tentei argumentar com o Dr. Ciro que tem sido assim, que vários presidentes têm conferido a distinção sem levar em conta os critérios previstos no regulamento do prêmio, mas não sei se ele se convenceu, não. “Quem criou essa Medalha”, Dr. Oswaldo? Bem, isto é uma dificuldade. A medalha é mais um item do chamado “entulho autoritário” que passou pela Constituinte de 1988 sem ser revisto. O objetivo da condecoração é “galardoar pessoas nacionais e estrangeiras que, no campo das atividades científicas, educacionais, culturais e administrativas relacionadas com a higiene e a saúde pública em geral, se hajam distinguido de forma notável ou relevante, e tenham contribuído, direta ou indiretamente, para o bem-estar físico e mental da coletividade brasileira”. A honraria, criada em 1970 pelo Decreto nº 66.988, assinado pelo presidente Emílio G. Médici, deveria ser concedida pela República Federativa do Brasil, mas, na prática, é concedida, com exclusividade, pelo Poder Executivo. O ministro da Saúde propõe e o gabinete da Presidência cuida do resto. E, como se sabe, o gabinete da presidência de Jair Messias Bolsonaro é antidemocrático e antirrepublicano. Opera como se o presidente fosse o D. João VI e, não sem razão, fala-se por aqui em “gabinete do ódio”, pois está a serviço não da República, mas de um mandatário negacionista e autocrático. Sim, Dr. Oswaldo, ele age mesmo como “um autocrata medieval”.
Sim, Dr. Oswaldo, eu concordo que já passou da hora de superar esse resíduo do entulho autoritário e aprovar uma lei federal que afirme que a Medalha de Mérito Oswaldo Cruz (e, se possível, todas as honrarias similares) é concedida pela República do Brasil e que os nomes dos indicados sejam homologados de algum modo pelos poderes legislativo e judiciário. Não sei, Dr. Oswaldo, não sei “por que isto ainda não foi feito e se os parlamentares estão com excesso de trabalho”. Penso que não é excesso de trabalho, não, pois ainda recentemente eu soube que o Aécio Neves (PSDB) – lembra dele? – apresentou um projeto de lei na Câmara dos Deputados para que o município de Lagoa Dourada (MG) seja considerado a capital nacional do rocambole. Enquanto isso o presidente, sem ouvir a Nação, nem os outros poderes da República, condecora a própria esposa e gente do cerimonial. Difícil crer que tenham prestado relevantes serviços à saúde pública. Sim, Dr. Oswaldo, direi isto, que “é urgente aprovar lei sobre condecorações da República” para conter a ação de “déspotas”. Por que o meu sorriso, Dr. Oswaldo? É que fazia tempo que eu não ouvia alguém usar a palavra “déspota”.
Não, Dr. Oswaldo, nada de Medalha de Mérito Oswaldo Cruz para Jaqueline Góes de Jesus, a cientista baiana que coordenou a equipe que sequenciou o genoma do SARS-CoV-2, o novo coronavírus.
Não, Dr. Oswaldo, nada de Medalha de Mérito Oswaldo Cruz para o Dr. Dimas Covas, o diretor do Instituto Butantan, atacado por colocar a instituição que dirige a serviço do enfrentamento da pandemia de covid-19 e defender a Coronavac, qualificada pejorativamente como “vachina”.
Não, Dr. Oswaldo, nada de Medalha de Mérito Oswaldo Cruz para o professor Pedro Hallal, epidemiologista, ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (2017-20), coordenador da pesquisa interrompida sobre a covid-19 e que, censurado e humilhado pelo governo federal, se viu obrigado a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta.
Não, Dr. Oswaldo, nada de Medalha de Mérito Oswaldo Cruz para a enfermeira carioca Lidiane Melo que, enchendo duas luvas cirúrgicas com água quente, criou a “técnica da mãozinha” e assim conseguiu confortar pacientes com covid-19 em UTI.
Não, Dr. Oswaldo, nada de Medalha de Mérito Oswaldo Cruz para a médica pneumologista capixaba, e pesquisadora da Fiocruz, Margareth Dalcolmo, que desde os primeiros dias da pandemia, dedicou seu tempo a esclarecer a opinião pública sobre a doença e como enfrentá-la, quando ainda não havia vacinas e depois que elas apareceram, separando o joio do trigo, o negacionismo e as crendices do conhecimento científico.
Sim, Dr. Oswaldo, além da turma do Palácio do Planalto, Praça dos Três Poderes e Esplanada dos Ministérios, dois profissionais de saúde foram agraciados com a concessão da Medalha de Mérito Oswaldo Cruz, mas, infelizmente, eu não tenho informações sobre suas atuações no enfrentamento da pandemia.
Sim, Dr. Oswaldo, claro que eu sei que ninguém lhe perguntou nada, se você aprova, se você “queria ou não queria esses nomes” para a sua Medalha.
Mas é que esse pessoal não é muito de dialogar, não. Vão fazendo e, se alguém não concordar eles “prendem e arrebentam”, como dizia aquele outro general-presidente, o João Figueiredo. Quando criaram a Medalha de Mérito Oswaldo Cruz, eles pensavam que, dando-lhe seu nome, o homenageavam.
Não quer mais seu “nome na Medalha”, Dr. Oswaldo, não concorda “com essas medalhações sem critério”? Quer “tirar seu nome do prêmio”? Bom, acho que isso não vai dar certo, não. “Tem de tirar”, Dr. Oswaldo, vai “falar com o presidente Rodrigues Alves”? Não é assim que funciona hoje em dia, Dr. Oswaldo. Talvez valha a pena conversar aí no céu com o Rui Barbosa, e pedir para ele telefonar para alguns colegas da OAB ou que estejam no Congresso Nacional. Vai funcionar melhor. Continua “sem falar com o Rui Barbosa”? Bom, então será preciso tentar outro caminho. Quem sabe valha a pena tentar o Tancredo Neves? Quem sabe ele conversa com o Aécio?
Calma, Dr. Oswaldo, calma…
Tá bom, tá bom, tá bom, Dr. Oswaldo, não vamos discutir por causa disso.
Eu tenho outra proposta; veja o que acha.
Que tal se, ao invés de tirar seu nome da Medalha de Mérito Oswaldo Cruz, a gente convocar o povo para tirar o Jair Messias da presidência da República?
“É uma boa ideia”? Pois então, combinado: vamos convocar o pessoal.
Como Dr. Oswaldo? O Cesar Lattes disse ao senhor que “também está querendo tirar o nome dele daquela plataforma de currículos”?
Bom, nesse caso é melhor acelerar isso de tirar o Jair Messias da presidência da República, senão tudo vai desmoronar em ritmo ainda mais acelerado.
“Aceleração do quê?” Dr. Oswaldo? Não, não; nada, não. Estava aqui apenas pensando com meus botões.
*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP.