A nova rebelião do rock and roll

HANS HOFMANN, (1880-1966). Red Sun, 1949. Óleo sobre tela. 24-1 / 8 x 29-3 / 4 polegadas (61,2 x 75,4 cm).
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Por EDUARDO FABREGAT*

Neil Young, um grito pedindo verdade

“Se grita pedindo verdade em vez de ajuda, se compromete-se com uma coragem que não está certo de possuir, se põe-se de pé para apontar algo que está errado, mas não pede sangue para redimi-lo, então é rock and roll” (Pete Townshend).

Neil Young sabia que o filme terminaria assim? É claro que sabia. Com 76 anos de vida e quase 60 de carreira, o guitarrista e compositor canadense conhece o suficiente da indústria da música para saber onde está o poder e como opera. Poderá soar anacrônico em tempos de tanto pragmatismo, mas se ajusta ao perfil do personagem: em Young não se trata de estratégia, mas de convicções.

Recapitulando: esta semana, Neil Young publicou uma carta a seu empresário e a sua gravadora – que a excluiu em seguida de sua página oficial – na qual tomou posição sobre o podcast The Joe Rogan Experience. “Spotify está disseminando informação falsa sobre as vacinas, causando potencialmente a morte de pessoas que acreditam nisso”, disse ele. “Quero que informem o Spotify que desejo que toda minha música seja removida da plataforma. Podem ter Joe Rogan ou Young. Não ambos”.

É necessário citar a carta tal qual, porque houve análises posteriores baseadas num suposto ultimato ou chantagem que não existiu: Young exigiu que sua música fosse retirada do Spotify, e indicou como motivo o podcast. Sabia que era vão pedir que retirassem Joe Rogan, que, com seus 11 milhões de ouvintes e um contrato de 100 milhões de dólares, tem muito mais poder.

Como Pete Townshend definiu naquela citação incluída por Charly García em Yendo de la cama al living, Neil Young gritou pedindo verdade. Não foi um gesto egoísta, retórico ou inútil. Há poucos dias, mais de 300 especialistas em medicina, infectologia, imunologia, cientistas, pesquisadores, assinaram uma carta aberta na qual demonstravam ao Spotify o mesmo que Young. Mencionavam especialmente o episódio 1757 de The Joe Rogan Experience, uma longa conversa com Robert Malone, médico negacionista da pandemia cuja conta no Twitter foi suspensa devido às suas observações perigosas sobre as vacinas. Além de comparar as medidas sanitárias com o nazismo, Malone equiparou as vacinas à castração e à mutilação genital feminina e é um dos defensores da teoria esgrimida por outro roqueiro lendário, Eric Clapton, que afirmou que o público está “hipnotizado” com mensagens subliminares para vacinar-se.

A idade média dos ouvintes de The Joe Rogan Experience é de 24 anos. Abundam análises sobre como as redes sociais e o universo gamer têm sido um terreno fértil para que cresçam os discursos de direita entre os jovens. “Esta não é apenas uma preocupação científica ou médica; é uma questão sociológica de proporções devastadoras, e Spotify é responsável pelo crescimento desta atividade em sua plataforma. Instamos Spotify a estabelecer imediatamente uma política clara e pública para moderar a desinformação em sua plataforma”.

O comunicado do setor científico não apareceu em nenhuma grande manchete. A carta de Young percorreu o mundo. Perdeu o velho Neil?

Em 2015, o canadense lançou The Monsanto Years, um álbum dedicado a denunciar as consequências do agronegócio nos tempos modernos. Não abalou muito o poder da corporação, mas não era esse o ponto. Outra vez, não se tratava de estratégia, mas de convicções. It’s better to burn out than to fade away, “é melhor arder do que desvanecer lentamente”, cantou em Rust Never Sleeps, de 1979, uma frase mais frequentemente citada por figurar na carta suicida de Kurt Cobain do que pelo seu peso conceitual. Neil prefere arder sustentando suas opiniões do que se diluir no grande oceano do não te metas.

No fundo, claro, está um debate que obviamente não se resolverá aqui: onde se chocam a liberdade de expressão e o uso mal-intencionado dos meios de difusão – convencionais ou novos, como as redes e as plataformas – para propagar mensagens falsas, perigosas para a saúde pública ou para a integridade das pessoas? Novamente: Neil Young não pediu sangue para redimir. Manifestou um novo desacordo com uma plataforma que já criticou no passado (pela repartição de dinheiro, pela qualidade do áudio), retirou-se dela.

Mas se pôs de pé para apontar algo. E houve quem o criticasse por chamar a atenção para Joe Rogan, propiciar-lhe novos seguidores, mas outra coisa é sentar e ver como as coisas acontecem. E um cara que já expôs a Monsanto, e em seus shows e ações defende outra forma de produção de alimentos, não é de ficar sentado. Rust Never Sleeps: a ferrugem nunca descansa. Nem o Neil.

Mas não é sequer uma questão geracional, não cabe ceder à tentação de glorificar lendas como Young por seguir defendendo a música como veículo de compromisso. Aí está Clapton, que lá atrás e há muito tempo teve sérios problemas por seu discurso racista e anti-imigração, mas teve então o atenuante de estar vivendo numa nuvem de heroína. Em aliança com outro peso pesado como Van Morrison, o guitarrista teve expressões tão perigosamente tortuosas como as de Rogan e Malone, obrigando o público ao exercício necessário de separar o músico da pessoa. Como boa parte da humanidade, entre os artistas de qualquer idade aparece todo tipo de opiniões. Há velhos vinagres que produzem algum embaraço, há adolescentes trapeiros mais despertos do que algumas figuras.

A questão, em última análise, é o gesto. Spotify não vai dar o braço a torcer e as “regulamentações” nas redes são sempre relativas: basta ver quantas vezes os usuários denunciam discursos de ódio que, após uma “análise” pela plataforma, se conclui que “não viola nossas regras”. O que Young fez foi colocar um potente foco no assunto. Sua existência não depende do Spotify, construiu uma carreira sólida sem o streaming, suas canções têm vida própria. Rogan sim necessita desse amplificador, e o amplificador necessita de Rogan para manter girando as rodas do negócio, um negócio que se mede em dezenas de milhões.

“Apoio a liberdade de expressão, nunca fui a favor da censura”, disse Young numa nova carta na sexta-feira. “As empresas privadas têm o direito de escolher com que lucrar, assim como eu escolho não ter minha música numa plataforma que dissemina informação daninha. Estou feliz e orgulhoso de expressar minha solidariedade com os trabalhadores da saúde na linha da frente, que todos os dias arriscam suas vidas para ajudar outros”. De passagem, o músico voltou a apontar as deficiências de áudio da plataforma (“Spotify reproduz a música a 5% de sua qualidade, e cobra de você como se fosse a coisa real”) e cravou: “Quando deixei Spotify, senti-me melhor. E como um bônus inesperado, soo melhor em todos os demais lugares”. Não foi o único bônus: nessa mesma sexta-feira, Joni Mitchell moveu ainda mais o tabuleiro. “Decidi retirar minha música do Spotify. Há pessoas irresponsáveis propalando mentiras que custam vidas. Manifesto minha solidariedade a Neil Young e à comunidade científica e médica global”.

Na noite de sábado, soube-se que Nils Lofgren se somava à lista. “Quando estas heroicas mulheres e homens, que passam suas vidas curando e salvando as nossas, pedem ajuda, não se lhes dá as costas por dinheiro ou poder”, observou o guitarrista do Crazy Horse e do E Street Band no site de Young. “Escute e os acompanhe”. O músico anunciou a retirada de sua obra do Spotify nos últimos 27 anos, e pediu para as gravadoras que detêm os direitos sobre a sua produção anterior que façam o mesmo.

Para além dos princípios que guiam o rock desde seu início, seus representantes compreenderam há muito tempo que as canções não conseguirão mudar o mundo. Mas o tornam mais habitável, menos angustiante, e muitos compreendem que não vale a pena ficar em silêncio. Ou nem tentar porque são lutas perdidas. Ou dar de ombros e resignar-se diante do fato de que, bem, as coisas são assim, azar, os maus ganham. Keep on rockin’ in the free world, continue fazendo rock no mundo livre, também pediu Neil Young em 1989. Nisso ele prossegue. Não importa a plataforma.

*Eduardo Fabregat é jornalista e músico. Autor de Pequeños fracasos: Lo que el éxito no muestra (Ediciones B).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no jornal Página 12.

 

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