Por AIRTON PASCHOA*
Trecho selecionado pelo autor do livro recém-lançado.
Arrivismo em Machado e Balzac
Esperamos não insistir talvez demais em sugerir que Machado pode ter se inspirado nos capítulos 32 e 33 do livro Ilusões perdidas de Balzac[1] para elaborar seu célebre conto “A teoria do medalhão”.[2]
Como vimos, são fortes os indícios que brotam de uma simples aproximação, a forma dialogada, a evocação do maquiavelismo social, o tratamento de “meu filho” com que Vautrin se dirige a Lucien, e de “mon père” (“meu pai/padre”) que dirige este àquele, o tema capital da aparência, e o espírito comum de teorizar, cinicamente, honestamente, em torno da ambição e dos meios de realizá-la.
Sabemos todavia da dificuldade em provar fontes crípticas, dificuldade que se acentua ainda mais quando o escritor se chama Machado de Assis, seja por sua vasta cultura literária, mobilizada implícita e explicitamente em toda sua obra, seja por seu estilo alusivo, apto a desencadear toda sorte de relações.
Cabe à crítica intertextual decidir da arbitrariedade ou não destes achados, e desenvolvê-los ao limite, quando pertinentes. Ao mesmo tempo, porém, quando o acaso nos favorece, e sentimos que a aproximação pode ser fecunda, pelas diferenças acumuladas, não vemos razão para desprezá-lo. E será este nosso caso. Evidentemente poderão nos objetar que não se trata lá de uma Senhora Fonte, mas me parece irrecusável tratar-se de um ponto de partida, uma sugestão, no mínimo. Se estamos convencido intimamente dessa hipótese, é que parece abundarem exemplos na obra machadiana.
Assim, anotou Magalhães Júnior,[3] teria Machado se inspirado em Balzac, num capítulo da novelinha “Os comediantes sem o saberem”, para compor seu “Capítulo dos Chapéus”.
A par dessas sugestões, ora mais, ora menos poderosas, há que ver caso por caso, não temos dúvida que Machado discutia certas questões literárias em voga, como o fez com o tema romântico da “prostituta regenerada” em “Singular ocorrência”, das Histórias sem Data, versado exemplarmente por João Roberto Faria,[4] ou dialogava com fontes literárias conhecidas mas não declaradas, subterraneamente, por assim dizer, como o atesta Gilberto Pinheiro Passos,[5] no caso de “Missa do galo”, das Páginas Recolhidas.
Outro tema, que perseguiu Paulo Rónai,[6] de Eça a Dostoiévski, passando por outros escritores menores, parece também haver chamado a atenção de Machado. Segundo o estudioso, o tema do mandarim morto foi lançado por Balzac, mais precisamente numa passagem d’O Pai Goriot, num diálogo entre Rastignac, à beira de ceder a Vautrin, e seu amigo de pensionato Bianchon, um porta-estandarte da virtude:
— Que é que te deu esse ar tão sério? — perguntou-lhe o estudante de Medicina, tomando-o pelo braço e levando-o a passear diante do palácio.
— Ando atormentado por más ideias.
— De que natureza? As ideias se curam.
— Como?
— Sucumbindo-se a elas.
— Estás rindo sem saber de que se trata. Leste Rousseau?
— Li.
— Lembras-te daquela passagem em que ele pergunta ao leitor o que faria se pudesse enriquecer matando, apenas pela vontade, um velho mandarim da China, sem sair de Paris?
— Lembro-me.
— E então?
Depois de longas pesquisas empreendidas por eruditos, em que se levantavam variantes, mas sem a figura pitoresca do mandarim chinês, descobriu-se que a frase, por deslize ou despistamento de Balzac, não pertence a Rousseau. A variante mais próxima, e na qual comparecia um chinês, pelo menos, figurava noutro cristão, o autor d’O Gênio do Cristianismo:
Ó consciência! serás tu apenas fantasma da imaginação ou o medo do castigo dos homens? Interrogo a mim mesmo; pergunto-me; se tu pudesses, por um desejo apenas, matar um homem na China e herdar-lhe a fortuna na Europa, tendo a certeza de que nada jamais seria conhecido, consentirias em executar esse desejo?
Agora vem a resposta de Chateaubriand, ou o enredo praticamente por inteiro de um dos contos mais sombrios de Machado, “O enfermeiro”, das Várias Histórias:
Por mais que eu exagere minha pobreza, por mais que atenue este homicídio, supondo que, por meu voto, o chinês morre instantaneamente e sem dor, que não tem herdeiros, que por sua morte natural iriam seus bens para o Estado; por mais que eu lhe atribua idade avançada, acrescida das torturas, dos achaques e dos desgostos; por mais que eu me diga que assim a morte é uma libertação que ele mesmo suplica e que não esperará muito – a despeito desses subterfúgios, ouço no fundo do meu coração uma voz que tão fortemente grita contra o mero pensamento de tal desejo que não posso duvidar um instante da realidade da consciência.
A “realidade da consciência”, porém, soprou outra coisa a Machado. Soprou-lhe que, pra enriquecer e ficar em paz com a consciência, não precisava matar, e apenas pela vontade, nenhum desconhecido, e em plagas tão longínquas… Soprou-lhe que se podia ir ali pertinho, a uma vila do interior, como Procópio, “o enfermeiro” improvisado, matar perfeitamente bem com as próprias mãos um mandarim carioca, como o Coronel Felisberto, e, uma vez de posse da herança, ir confortando os gritos cada vez mais débeis da consciência.[7]
Verdade seja dita que, numa homenagem última aos cristãos sinceros, Rousseau, Chateaubriand, Balzac, emendava Machado olimpicamente, no final do conto, “ao divino sermão da montanha: “Bem aventurados os que possuem, porque eles serão consolados!”
Parece-nos difícil negar que, a sua maneira discreta, Machado participou com “O enfermeiro” (como participara, com “Singular ocorrência”, da querela romântica acerca da “prostituta regenerada”) do debate literário acerca do assassinato do mandarim, e talvez como um dos pivôs centrais, se não no mesmo plano, pela óbvia diferença de fôlego e repercussão literária, quase ao lado do Crime e castigo, guardadas as proporções, pela profundidade psicológica.
Voltando ao nosso assunto, se se objetar que ainda assim convence mal esta hipótese nossa de trabalho, que nada garante tenha Machado partido daqui pra criar seu conto, parece-nos sempre válida a aproximação entre as duas teorias do arrivismo.
***
A atenuação do tema e do tom é a primeira diferença notável entre ambas as teorias do arrivismo – atenuação tão decisiva que podemos falar em dessatanização, tal a passagem do criminoso ao comum, do monstruoso ao doméstico, do fantástico ao corriqueiro, do chocante ao ridículo.
Numa palavra, a passagem das “ilusões perdidas” às ilusões fruídas.
Em lugar de tentações mefistofélicas, e do provável cheiro de enxofre; em lugar do diálogo cru entre um padre diabólico e um poeta angelical; em lugar de uma sociedade revolucionada pelo capital, enfim, e em cujo centro reina a figura vertiginosa de Vautrin,[8] roubam a cena agora novos personagens.
No palco, ou melhor, na sala, no recesso do lar, deparamos uma sociedade relativamente senhorial, e em cujo centro reina uma digna figura de pater famílias, o qual convida o filho, após a comemoração íntima de sua maioridade, a ouvir uma preleção de uma hora acerca da carreira mais promissora do País, a carreira de medalhão.
E prelação absolutamente serena, sem saltos nem sobressaltos, como convém ao sacrossanto recinto da família. Pois qual é, em breve extrato, a receita machadiana do “medalhão completo” na terra dos bacharéis?
Moderação, gravidade (do corpo), repressão de ideias (mediante um “regímen debilitante”, à base de retórica, incluindo a parlamentar, voltarete, dominó, uíste, bilhar, pasmatórios pra evitar a solidão, “oficina de ideias”, livrarias tão só pra frequentar mundanamente), vocabulário apoucado, frases feitas e quejandos, cientificidade ostensiva e superficial, autopromoção constante e miúda, vida pública em causa própria, com discursos políticos ou mesquinhos ou, de preferência, abstrusos, “metafísicos”, nenhuma imaginação, nenhuma filosofia, ironia, nem pensar!
Machado, como vimos, diferentemente da literatura “sensacionalista” e “vertiginosa” de Balzac,[9] não nos fala de golpes, violências, homicídios… nada. Nem sequer de dinheiro nos fala ele.
E esta ausência marcante do dinheiro, do “deus moderno”, não devemos atribuí-la àquele decoro do Machado moralista de Faoro,[10] horrorizado com a mercantilização de valores tradicionais, nem ao decoro do primeiro Machado de Schwarz, para cuja estética antirrealista, “ecos da doutrinação da Revue des Deux Mondes”, não poderia o vil metal constituir objeto digno de figurar na alta literatura do “romance literário”.[11]
Não é preciso dizer que Machado adentrara a fecunda fase, seja por lançar mão em sua teoria do arrivismo de todos os inventos, materiais e espirituais, da civilização do Capital, seja por satirizar, desiludido já do conservadorismo, um dos ideólogos da revista francesa, o Mazade das “belas crônicas”, e sua capacidade de gerar aquela “monotonia grandemente saudável” das “mesmas opiniões”.
O arrivismo medalhônico, sabia-o bem Machado, não é o arrivismo europeu, não é o arrivismo satânico, não é o arrivismo brilhante do grande mundo napoleônico, mas é o arrivismo possível, o arrivismo que pode brandir orgulhosamente nosso espadim.
Desse caráter alternativo de arrivismo, de arrivismo menor, de arrivismo de espadim, mas ao alcance de nossas mãos, nos dão notícia algumas crônicas que Machado escreveu pela época, entre 1883 e 1886, nas “Balas de estalo” da Gazeta de Notícias.[12] Nelas se recomenda tanto o imitar a época, nesses tempos de “erotismo da publicidade”,[13] com a autopropaganda miúda e sistemática,[14] quanto o evitar as ações quixotescas de um Guedes.[15]
Numa crônica divertida, Machado vem a justificar, do ponto de vista democrático, o arrivismo medalhônico. A mediocridade tem seus direitos…[16]
Evidentemente a ascensão na pobre democracia escravagista, no pequeno mundo dessatanizado, não poderia senão sofrer uma inflexão bastante particular. Elidindo na teoria, como temos insistido, o fator dinheiro, determinante na ordem burguesa; elidindo o rastro de sangue que deixa de ordinário toda escalada íngreme, em contraste com Balzac, que fala direta e expressamente em milhões de francos, que não poupa nossa visão do saldo de mortos e feridos, notamos que é como se a personagem subisse mas sem sair do lugar.
E foi justamente atentando a tal movimento parado, a tal ascensão horizontal de nosso carreirista, que chegamos a uma das singularidades do nosso arrivismo, senão a mais importante, por subsumir as demais.
Diversamente da teoria do arrivismo francesa, em que se trata de saltar de uma a outra classe, no arrivismo nacional trata-se simplesmente de sair do anonimato, de sair da obscuridade para a fama.
Este motivo-chave da obra machadiana, como admite o próprio Faoro, o temor da obscuridade, a “sede de nomeada”, em suma, tentamos encará-la de novo ângulo.[17] Em lugar de a tornarmos por uma espécie de exemplo de arrivismo burguês, como parece, no limite, pretendê-lo Faoro, e a maioria talvez das leituras correntes, pudemos vê-la, forçando um pouco o contraste, quase como espécie de exemplo de arrivismo senhorial.
Nesse sentido, a “sede de nomeada” encarna mais uma das múltiplas manifestações da volubilidade, daquele desejo de “supremacia qualquer” (em que o pronome “qualquer” desqualifica o que quer que substitua) que queima Brás Cubas e cujo comportamento volúvel, ora como senhor burguês, ora como senhor de escravos, representa a própria ambiguidade histórica da nossa classe dominante de Oitocentos.
Como se sabe, sem negar afrontosamente a tradição machadiana, devedor aliás de muitas de suas descobertas, ciente portanto da acumulação necessária a todo feito intelectual, Roberto Schwarz procede a uma rearticulação geral de nossos conhecimentos do grande escritor.
Para Schwarz, Machado foi um artista moderno,[18] que pensou a sociedade brasileira de seu tempo, a ponto de estilizá-la. O escritor forjou um estilo que imita a conduta da elite brasileira oitocentista, oscilante entre o ideário burguês, típico da Europa, e a ideologia do favor, que vingava em nosso universo patriarcal e clientelístico.
Tão arbitrária e autoritária, tão lépida e volúvel como nossa classe dominante, figurou Machado sua prosa. A volubilidade da elite brasileira do Oitocentos, sua versatilidade no se portar, conforme sua conveniência de classe, ora ilustradamente, de acordo com as ideias liberais em voga, fundadas na autonomia do indivíduo, ora de acordo com os mecanismos do favor, no trato com os dependentes, a terceira classe da ordem escravocrata, à mercê dos senhores graças à inexistência do trabalho livre — esse traço singular de nossa vida ideológica, Machado converteu-o em principio formal de seus romances maduros.
A volubilidade domina de tal modo a cena, que surge quase como que a única espécie de absoluto da relatividade geral machadiana. Volubilidade na forma e volubilidade no conteúdo. Volúvel é o estilo, volúvel é a composição narrativa, volúvel é o narrador, volúveis são as personagens, volúveis seus atos, volúvel sua consciência…
Técnica literária, característica nacional, condição humana, condição social, representação psíquica, essa volubilidade complexa reavaliará as famosas especialidades machadianas. A lógica que a preside, férrea, a da “supremacia qualquer” a todo custo, da satisfação imaginária e imediata, impõe-lhe uma temporalidade própria, com seus ciclos curtos e breves, interminavelmente repetidos, girando infinitamente em falso.
Devorado então por essa dinâmica interna implacável, que, sem ponto de crise, não faz senão se repetir, o ser volúvel como que sofre a vingança do tempo, sobre cujo convencionalismo tripudiara a princípio. Interiorizando-o, vai se consumindo a si mesmo, caminhando inexoravelmente para a desagregação, o tédio, a melancolia, o nada.[19]
O célebre pessimismo machadiano sofre com isso desabusada reinterpretação. Envergonhado do atraso e descrente do progresso que prometia a civilização burguesa, Machado sentia o drama de nosso impasse histórico. O cético virava niilista ainda, ao considerar quão funcional se apresentava a nossa barbárie para o progresso da elite brasileira.[20]
Esses sentimentos sombrios, mas que no fundo garantem a atualidade e a força da visão machadiana, em contraste com o otimismo triunfante da época, surgiram de seu percurso intelectual, em busca da fórmula estética capaz de torná-lo, como escreveu em ensaio justamente famoso, “homem de seu país e de seu tempo”, capaz de realizar aquela ideia de um nacionalismo mais instintivo.
Na busca estética, e já desiludido com a viabilidade do liberalismo no país, Machado escreveu seus primeiros romances, tacanhos, provincianos, alheios ao mundo moderno que nos chegava a todo vapor, mas já decididos a escarafunchar as peculiaridades nacionais.
Analítica mas conformista, Machado apostava, na dita primeira fase, na edificação moral da classe dirigente. Era preciso pôr fim a nosso paternalismo autoritário, educar nossos senhores, racionalizar suas relações com os dependentes, a saber, atingir a idealidade pura, e paradoxal, de uma troca de favores impessoal, visto que era impossível escapar ao sistema do favor – de forma tal, que o obséquio fosse prestado à sociedade, não a um senhor de escravos qualquer, eliminando a um tempo a personalização do poder e a consequente humilhação dos dependentes.
Assegurada a impessoalidade dos favores e a eficácia do seu fluxo, configurar-se-ia então, para o primeiro Machado, um pacto saudável para a nação, em que todos sairiam ganhando. Os pobres mais dotados subiriam dignamente, a elite se enriqueceria com mais um membro de escol, e o país se modernizaria…[21]
Desiludido também dessa linha de progressismo nacional, que levava com sorte a uma espécie de paternalismo esclarecido, ao constatar que a abolição lenta, gradual e segura gerava, em vez de cidadãos livres, mais e mais “homens livres na ordem escravocrata”,[22] isto é, mais e mais dependentes, sem propriedade nem salário, o escritor abandona o projeto de civilizar nossa classe dominante.
É a segunda fase.
Mudando o foco narrativo, que agora passa a ser o de cima, Machado escritor decide expor sistematicamente o comportamento volúvel e libidinoso de lídimos representantes da elite nacional. Em primeira pessoa, sob a forma enganosa de memorialismo, de humanas confissões de um trajeto existencial comum, o inconfessável vai pouco a pouco assumindo o vulto de denúncia, de acusação irrefutável.[23]
O paternalismo e sua libidinagem (Machado se especializava agora em explorar a cópula calorosa de poder e prazer) é assim guindado, de matéria que era nos primeiros romances, à condição de forma, de princípio estruturador de suas obras-primas.
Isto quer dizer que, mais ou menos independente do próprio conteúdo concreto,[24] a forma literária volúvel, como estilização da forma social, está a indigitar sempre e sempre a volubilidade nacional.[25]
De passagem, como se vê, o crítico ainda ilumina a polêmica transição entre as fases de Machado. No plano da forma, descontinuidade; continuidade, no plano do conteúdo. Se volúvel é o narrador, já não se pode dizer o mesmo do autor. A caracterização exata de tipos representativos da camada dirigente nacional depende de uma constelação de relações sociais, visível apenas com o exame minucioso de nossa realidade.
Por trás do narrador volúvel, se oculta um autor de todo oposto, consequente, investigativo, interessado em despertar a atenção crítica do leitor, em apontar a nossa disparidade. Tanto, que o descalabro nacional, ele o resumiu na forma maior do romance, o enredo.
Tão construído quanto os enredos realistas clássicos, o enredo machadiano, original em sua distensão, em sua frouxidão, desenha precisamente o retrato do país. Sem choques qualitativos, sem contradições que se desdobram, sem síntese à vista, é como se o país tocasse sua vida à imitação da vida ociosa e elegante de Brás Cubas, “cheia de satisfações, e vazia de sentido”.[26]
E se o realismo de Machado não brilha pela exuberância dos elementos de identificação nacional, é porque se interessa por revelar formas e relações. Será assim que, de acordo com seu nacionalismo instintivo, a famigerada cor local se interioriza em seus romances da maturidade.[27]
Em lugar da paisagem, do descritivismo romântico, a paisagem moral brasileira… uma paisagem singularmente pitoresca! premida que estava entre dois critérios, o liberal e o paternalista, o burguês e o patriarcal.
E se tamanho realismo não lançou mão do objetivismo realista, consagrado por um Flaubert, por exemplo, é porque viu mais realidade nossa na aplicação de recursos literários antirrealistas.
Eis como, de um lado, a extravagância do narrador, haurida de fontes setecentistas, alude ao descentramento ideológico do país, onde as ideias estão tão fora de lugar quão fora de lugar está, para o Realismo de corte europeu, a indumentária toda da retórica clássica; e, de outro, a mesma extravagância, turvada das fontes esteticistas do próximo fim-de-século, aludia à modernidade perigosa do individualismo imperialista.[28]
No mesmo sentido, seu universalismo, trazido sempre à baila pela atitude filosofante do narrador, comporta também componentes de despistamento. As explicações universais do pobre anedotário local, de cujo elenco, por sinal, falta, sistemática e sintomaticamente, a explicação histórica – inconcebível pra quem tanto bebeu de fontes românticas –[29] as explicações universalistas acusam, antes da verdade humana, da verdade do Homem em geral, uma desproporção cômica, e trágica, a nossa verdade.
Por detrás portanto da “forma ostensiva” da volubilidade, e cifrado no enredo distenso, desdramatizado, propício a imitar nosso tempo paternal, outro princípio formal avulta, a “forma latente”,[30] descerrando o compromisso básico do escritor, realista e crítico a um tempo – duplamente crítico, aliás, tanto da civilização brasileira quanto da civilização burguesa.[31]
Dentro dessa interpretação abrangente de Machado, e que mal resenhamos em seus contornos gerais, Schwarz não tratou diretamente da “Teoria do medalhão”. De passagem, diz apenas que o medalhonismo fornece a chave da sátira política de Machado, miudeza ou metafísica.[32]
No seu estudo machadiano mais importante, porém, antes da publicação do Mestre na periferia do capitalismo, Schwarz abre a possibilidade de interpretá-la à luz de sua perspectiva. O ponto de partida do crítico, neste ensaio de 1980, e cujo título resume lapidarmente sua visão do escritor, “Complexo, moderno, nacional, e negativo”, consiste justamente na “sede de nomeada” de Brás Cubas, estampada quase no pórtico das Memórias Póstumas, no capítulo II, denominado “O Emplasto”.
Na sua análise pormenorizada do passo machadiano,[33] sob tantos aspectos magistral, em que acompanha detidamente o raciocínio sinuoso de Brás Cubas, aquela “ordenação leviana das causas” – o crítico associa à volubilidade, como mais uma de suas múltiplas manifestações, a extravagante “paixão do arruído” do narrador.
A futilidade, a “frivolidade pura” de Brás Cubas, que pretexta pra seu invento, conforme seu público, ora a caridade cristã, ora o interesse econômico, mas que, no fundo, intimamente, sonha apenas com a glória pessoal, sua “sede de atenção e cartaz”, a “sede de nomeada”, enfim, esse ridículo explorado à exaustão por Machado, representa justamente, como vimos, um dos movimentos capitais da “Teoria do medalhão”, o movimento de distinção.
Não esqueçamos que, se o primeiro movimento da nossa teoria do arrivismo, impelido pela repressão das ideias, pelo desejo de tornar-se público, de igualar-se ao público, garante a identidade, é apenas o segundo movimento, o movimento de distinção, capitaneado pela autopromoção, pelo desejo de distinguir-se do meio, mesmo sem dele se desidentificar, que garante fugir da obscuridade.
No conto de Machado, a “sede de nomeada”, a autopublicidade, como que catalisa todo o esforço medalhônico. Para tanto, a “sede de nomeada” lança mão, voluvelmente, de todos os recursos, da retórica, da ciência, da política, da filosofia, dos “processos modernos” todos, em resumo, pra consagrar definitivamente o medalhão, pra conquistar aquela “supremacia qualquer” que define o ser volúvel.
E a “sede de nomeada”, como uma das manifestações da volubilidade, funciona também como compensação simbólica, cuja importância é visível numa sociedade como a nossa de então, numa sociedade fechada, murada, recortada apenas de “vielas”, numa sociedade em que “o dinheiro inda não é tudo”, como o reconhece o próprio Faoro, e o trabalho verdadeiramente não compensa.
Numa sociedade tal, capitalista e escravista, em que o horizonte burguês está à vista, cintilantemente aberto, com suas “infinitas carreiras”, mas sua base ainda precária, escravocrata, pela negação do trabalho livre, retém forçosamente os altos voos, só poderia despontar mesmo um ofício, uma carreira desta ordem, a qual, aparentemente suplementar, irá se revelando, pouco a pouco – a carreira.
Diversamente portanto do arrivismo genuinamente burguês, da auri fames que empolga os heróis napoleônicos de Balzac, o arrivismo nacional, cifrado na “sede de nomeada” dos heróis mundanos de Machado, imporá outro caminho à escalada social, um caminho próprio a quem, em vez de largos bulevares, de amplas avenidas, não tem pela frente senão becos e vielas.
Aqui descortina-se a justeza histórica da teoria machadiana. A “sede de nomeada”, que distingue nosso arrivismo, só tem sentido numa sociedade como a nossa, ambígua, como o medalhão, num regime de capitalismo escravista, de país aberto à ideologia burguesa do individualismo, da “carreira aberta ao talento”, mas de fato ainda fechado, como o radiografou Nabuco,[34] um pouco ainda à margem da “teoria da estrada” que pavimentava Vautrin para a subida de Lucien.
A única carreira no Brasil aberta ao talento, ou à falta dele, e a equação machadiana, por sua exatidão, continua a assombrar, era com efeito a do medalhonismo. Medalhão completo, feito Janjão, medalhão incompleto, feito Machado, tanto faz, quem quisesse ascender, havia de tomar a mesma estrada.
O medalhonismo constitui por conseguinte uma espécie de via oficial do arrivismo. Dito de outro modo, se a mediocridade tem seus direitos, os menos medíocres, ou os mais bem dotados, se quisessem igualmente ascender, teriam as mesmas obrigações, — imitar os mestres acabados.
Eis como esta via oficial, com seu conformismo triunfante, impunha ainda outra diferença formidável em face do arrivismo autenticamente burguês de Balzac. Assim, antes de desafiar a sociedade, nosso arrivista deve deixar-se cooptar por ela.
Se a carreira social numa sociedade burguesa típica começava pela oposição do indivíduo, por uma revolta social muito particular,[35] e terminava na dura reconciliação final, após o triunfo do indivíduo, por consagrar a essa mesma sociedade em seus valores basilares (o mérito, a iniciativa, a autonomia individual, etc.) – no Brasil, graças ao clientelismo, ao império do favor, a revolta, o desafio social como que estaria descartado de cara.[36]
Neste sentido seria inconcebível em nosso quadro histórico a famosa cena final d’O Pai Goriot, com Rastignac, do alto do Père-Lachaise, desafiando a sociedade, depois de enterrar o amigo, e suas ilusões juvenis.[37] Pelo contrário, para uma carreira bem-sucedida em nossa boa sociedade, deviam nossos napoleônicos bacharéis de incensá-la em sua mais cara aspiração, de participar do mundo moderno, deviam portanto cultivar-lhe sistematicamente as ilusões de superioridade.
A essa tática insidiosa do medalhonismo, de louvar, em vez de desafiar o status quo, podemos denominá-la, de olho nas técnicas de ilusão realistas que Machado desdobra desassombradamente a nossa frente, pudemos denominá-la “realismo da ilusão”.
Uma expressão paradoxal, mas cuja funcionalidade condensa a própria ambiguidade de sua figura – moderna, por seu utilitarismo, seu pragmatismo, seu realismo, por seus métodos, enfim, mas não tão moderna assim em seus objetivos. Ainda aqui será a nomeada, o alvo último da teoria, que explicita esta metodologia medalhônica, com seu uso de todos os “processos modernos” (jornal, ciência, parlamento, etc.) para fins menos avançados, digamos.
Pra finalizar, o caminho do arrivismo triunfante estava dado. A disjuntiva machadiana não considerava terceira via. Ou medalhonismo ou obscurantismo. Ou nomeada ou nada. Aos napoleônicos ingênuos, alheios às especificidades da prática arrivista em “país fechado”, e crentes no ideário liberal que invadia nosso horizonte, só os aguardava um destino – o fracasso.
*Airton Paschoa é escritor, autor, entre outros livros, de Ver Navios(e-galáxia, 2021, 2ª edição, revista).
Referência
Airton Paschoa. Teoria e prática do arrivismo em contos maduros de Machado de Assis. São Paulo, e-galáxia, 2021 (edição digital e impressa).
Notas
[1] Cap. 32 (“Curso de História para Uso dos Ambiciosos por um Discípulo de Maquiavel”) e cap. 33 (“Curso de Moral por um Discípulo do R. P. Escobar”)das Ilusões Perdidas, de 1835 a 1843 (São Paulo, Globo, 2013).
[2] “Teoria do medalhão — diálogo”, Papéis Avulsos (1882).
[3] Ao Redor de Machado de Assis, esp. “Machado de Assis, Balzac e o capítulo dos chapéus”.
[4] “Singular ocorrência teatral”, Revista USP, n.º 10, 1991.
[5] “Machado de Assis leitor de Alexandre Dumas e Victor Hugo”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n.º 34, 1992.
[6] A história integral do tema, e que não fizemos senão resumir pra fins nossos mais imediatos, consta, com riqueza de detalhes, do seu Balzac e a Comédia Humana.
[7] Magalhães Jr. sugere que Machado chegou ao tema balzaquiano por via indireta, lendo o conto de Machado como resposta ao trabalho de Eça, “O mandarim”, publicado alguns anos antes e cujo título explicitaria a fonte (“Um tema comum na obra de Eça e de Machado”, op. cit.).
[8] “Vautrin iniciador e corruptor, com efeito, Vautrin descobridor dos segredos do mundo e teórico do arrivismo, deve muito, aparentemente, ao Neveu de Rameau e a Gaudet d’Arras do Le Paysan et la Paysanne pervertis. Fizeram-se aproximações precisas, e convincentes: cinismo, ideia de que não há princípios mas tão só ocasiões, paixão de se devotar a um outro e de triunfar por pessoa interposta, tudo isso Balzac lera em Diderot e em Restif. A diferença, todavia, entre os cínicos do século XVIII e Vautrin é imensa. A atitude de conjunto, o vocabulário mesmo, podem se assemelhar, mas o conteúdo, a orientação, a significação, a perspectiva, são de um outro universo. Em primeiro lugar, porque Vautrin fala de dentro de um universo pós-revolucionário, depois do triunfo das Luzes, da razão e da igualdade, depois do grande esforço da racionalização e de clarificação das relações sociais que se propusera a Revolução Francesa e que se havia pensado que ela devia ser. (…) o discurso e a ação de Vautrin no coração mesmo do mundo liberal são um outro signo romanesco daquilo que se tornou o mundo nascido da Revolução. É absolutamente impossível colocar no mesmo plano, do ponto de vista da história das mentalidades e das reações subjetivas, a sociedade de antes de 1789 e a sociedade de 1819. Nem Vautrin, nem Rastignac, nem ninguém em 1819, pode pensar a vida social nos mesmos termos que antes de 1789. Nenhum leitor, se leva em conta a História (isto é, se aceita, hoje, considerar a Revolução Francesa, não como a revolução definitiva, mas, sim, como a operação política maior da Burguesia, não como um absoluto, mas como relativo), não pode dar a mesma significação política e social às palavras de Neveu (ou de Gaudet) e àquelas de Vautrin (ou de Gobseck). Com efeito, como colocar no mesmo plano temas pessimistas no contexto do fim de um mundo (mesmo se anunciam o que será o mundo novo) e os mesmos temas pessimistas no contexto de um porvir de renovação, depois de um grande clarão liberador? Eis toda a diferença entre o pessimismo do fim da Restauração e aquele dos primeiros meses da monarquia de Julho. No segundo caso o pessimismo traz em seu bojo uma acusação, não contra uma natureza humana qualquer, mas, sim, contra a eficácia, contra a validade do que acaba de se cumprir e que se acha assim radicalmente contestado, recusado, desencantado. Balzac historicizou um tema moral e sem raízes precisas. Antes de tudo, explorando-o, ressaltando-o em um contexto histórico que lhe dá necessariamente uma ressonância nova. Depois, ainda fez melhor: tratou-o explicitamente em referências históricas e precisas. As referências de Vautrin, com efeito, suas justificativas são constantemente históricas, políticas, e sua história, sua política, não são aquelas da retórica (Aníbal, César, os grandes homens sobre os quais raciocina ainda Montaigne), mas aquelas brutais, imediatas, dos homens de uma geração: Napoleão, Talleyrand, Villèle, Manuel, La Fayette (…). Vautrin não discorre nem raciocina em um eterno que não concerne senão aos homens de cultura. Ele raciocina e discorre sobre o fundo de uma experiência recente e em curso, vivida e compreendida como histórica e como política. Não somente o mundo, mas o mundo moderno, o único que conhecem milhões de homens, fez-se assim. (…) Vautrin fala por todos e se dirige a todos, porque põe em causa os fundamentos mesmos do mundo novo. // Ademais, o Neveu de Rameau e Gaudet falavam de dentro de um mundo estável e fechado, de dentro de um mundo sem perspectiva de abertura nem de mudança. Vautrin vai falar do interior de um mundo aberto, febril, um mundo em expansão, que permite tudo a todo o mundo. Vautrin não é concebível separado da grande pressão plebeia consecutiva à revolução capitalista que destroçou os quadros da sociedade nobre e parlamentar. Um lugar-tenente corso se torna Imperador. (…) Mas somente a Revolução e suas consequências, a explosão econômica, social e cultural que ela desencadeou ou tornou possível e que, em seguida, se consolidou com o retorno da paz e o fim das restrições imperiais, puderam dar todo seu sentido às teorias do arrivismo e da ambição. O Neveu de Rameau e Gaudet não exprimem muito senão o detalhe, o acidental e o pitoresco. (…) Vautrin exprime uma lei geral, aquela de toda a sociedade nova. O Neveu e Gaudet eram apenas cínicos espantosos num canto do quadro. Vautrin está no centro da Comédie Humaine. (…) Eis por que Vautrin, longe de ser apenas um ‘caso’, como Neveu ou Gaudet, adquire grandeza e estatura. Vautrin é um momento do devir histórico e social: por atingir o épico, é uma das figuras maiores da criação romanesca do século XIX. Exprimindo seu século, Diderot e Restif podiam colocar seus cínicos e seus corruptores num canto do quadro. Exprimindo seu século, Balzac devia colocar Vautrin no centro” (Pierre Barbéris, le Père Goriot de Balzac, p. 61-64; itálicos do autor, tradução e negritos nossos).
[9] “(…) a maneira sensacionalista e generalizante de Balzac, tão construída e forçada, liga-se a extraordinário esforço de condensação, e de fato vai se tornando menos incômoda à medida que nos convencemos de sua continuidade profunda com os inúmeros perfis ocasionais, de ‘periferia’, que deslocam, refletem, invertem, modificam — em suma, trabalham — o conflito central, que duma forma ou doutra é o de todos. Seja por exemplo o discurso desabusado e ‘centralíssimo’ dalgumas de suas grandes damas: é revoltoso, futriqueiro, vulnerável, calculista, destemido, como o serão, quando aparecerem ‘casualmente’, o criminoso, a costureira, o pederasta, o banqueiro, o soldado. O andamento vertiginoso afasta-se do natural, beira bastante o ridículo, mas avaliza esta distância — o seu nível de abstração — com grande lastro de conhecimentos e experiência, que ultrapassa em muito a latitude individual, e não é fato apenas literário: é a soma de um processo social de reflexão, na perspectiva, digamos, de um homem de espírito. É este o cinquentão vivido e sociável que segundo Sartre é o pai do realismo francês. Dos pressupostos históricos desta forma falaremos adiante. Por agora basta-nos dizer que esta reflexão se alimentava de um processo real, novo, também ele vertiginoso e pouco ‘natural’, que revirava de alto a baixo a sociedade europeia, frequentando igualmente a brasileira, cuja medula no entanto não chegava a transformar: trata-se da generalização — com seus infinitos efeitos — da forma-mercadoria, do dinheiro como nexo elementar do conjunto da vida social. É a dimensão gigantesca, ao mesmo tempo global e celular, deste movimento que irá sustentar a variedade, a mobilidade tão teatral da composição balzaquiana — permitindo o livre trânsito entre áreas sociais e de experiência aparentemente incomensuráveis” (Roberto Schwarz, Ao Vencedor as Batatas, p. 37, negritos nossos).
[10] RaymundoFaoro,Machado de Assis: a Pirâmide e o Trapézio. Rio de Janeiro, Globo, 1988, 3.ª edição (1.ª ed. 1974).
[11] “Retomando nosso fio, digamos que a exclusão da referência liberal evitava o descentramento das ideologias, de que tanto falamos, mas ao preço de cortar as ligações com o mundo contemporâneo. Para avaliar as ambiguidades desse percurso, tome-se a militância antirrealista de Machado de Assis, em cujas palavras o Realismo ‘é a negação mesma do princípio da arte’. São ecos da doutrinação da Revue des Deux Monde, para a qual Realismo, democracia, plebe, materialismo, gíria, sujeira e socialismo eram parte de um mesmo e detestável contínuo. A norma é antimoderna em toda a linha. A recusa da matéria baixa leva à procura do assunto elevado, quer dizer, expurgado das finalidades práticas da vida contemporânea. A nulidade das explicações, a este propósito, é como que um programa: ‘(…) o nosso intuito é ver cultivado, pelas musas brasileiras, o romance literário, o romance que reúne o estudo das paixões humanas aos tons delicados e originais da poesia’. No entanto, havia da parte de Machado uma intenção realista neste antirrealismo conservador, se o considerarmos expressão de experiência e ceticismo — o que não era na Europa, onde representava um recuo intelectual — em face do cabimento das ideias liberais no Brasil. Destinado a esfumar os antagonismos do regime burguês, o antirrealismo não os postulava, e nos poupava a ilusão de sermos a França… Mesmo a exclusão do assunto baixo, em espécie as misérias modernas, ocasionadas pelo Capital, era para nós a exclusão de tropismos frívolos. Enquanto que a eleição dos assuntos decorosos – paternalismo antes que dinheiro — levava para mais perto da vida popular que a dialética do dito Capital. São confusões a que não havia como escapar, marcas genuínas da inautenticidade de nosso processo cultural. Nesse ponto o século XX não mudou tudo, e a própria história da assimilação do marxismo no Brasil mostra muita coisa de comparável. A Machado, já agora só faltava a desilusão da desilusão: desiludir-se também do conservantismo paternalista. — Enfim, a despeito de sua inteligência e do engenho, que não vamos esquecer, são quatro romances enjoativos e abafados, como o exigem os mitos do casamento, da pureza, do pai, da tradição, da família, a cuja autoridade respeitosamente se submetem. Para falar com Oswald, correm numa pista inexistente. E, de fato, um dos sinais da segunda e grande fase no romance de Machado será a reintegração abundante do temário liberal e moderno, das doutrinas sociais, cientificas, da vida política, da nova civilização material — naturalmente à sua maneira dele” (Ao Vencedor as Batatas, p. 65-66, grifos nossos).
[12] Ver vol. 3 da Obra Completa, edições Nova Aguilar.
[13] “Capoeira é homem. Um dos característicos do homem é viver com o seu tempo. Ora, o nosso tempo (nosso e docapoeira) padece de uma coisa que podemos chamar — erotismo da publicidade. Uns poderão crer que é achaque, outros que é uma recrudescência de energia, porque o sentimento é natural. (…) Sou justo. Há casos em que acho a coisa natural. Na verdade, se eu, completando hoje cinquenta anos, se janto com a família e dois ou três amigos, por que não farei participante do meu contentamento este respeitável público? Embarco, desembarco, dou ou recebo um mimo, nasce-me um porco com duas cabeças, qualquer caso desses pode muito bem figurar em letra redonda, que dá vida a coisas muito menos interessantes. E depois o nome da gente, em letra redonda, tem outra graça, que não em letra manuscrita; sai mais bonito, mais nítido, mete-se pelos olhos dentro, sem contar que as pessoas que o hão de ler, comprar as folhas, e a gente fica notória sem despender nada. Não nos envergonhemos de viver na rua; é muito mais fresco. (…) (14/3/85, op. cit, p. 443).
[14] “Corações que sufocais em gérmen os mais belos adjetivos do mundo, deixai que eles brotem francamente, que cresçam e apareçam, que floresçam, que frutifiquem! São os frutos da sinceridade. Eia, corações medrosos, sacudi o medo, bradai que sois grandes e divinos. As primeiras pessoas que ouvirem a confissão de um desses corações retos, dirão sorrindo umas para as outras: — Ele diz que é nobre e divino. // As segundas: — Parece que ele é nobre e divino. // As terceiras: ‑ Com certeza ele é nobre e divino. // As quartas: — Não há nada mais nobre e divino. // As quintas: — Ele é o que é mais nobre e divino. // As sextas: — Ele é o único que é nobre e divino. // E tu descansarás nas sétimas, que amaciarão para ti o regaço absoluto” (19/3/85, op. cit., p. 445).
[15] “Há trinta anos, ou quase, que o Guedes espreita um trimestre de popularidade, um bimestre, um mestre que fosse, para falar a própria linguagem dele. Ultimamente já se contentava com uma semana, um dia, e até uma hora, uma só hora de popularidade, de andar falado por salas e esquinas.// Não se imagina o que este diabo tem feito para ser popular. Deixo de lado 1863, por ocasião da Questão Christie, em que ele propôs-se a ir arrancar as armas da legação inglesa. Só achou cinco imprudentes que o acompanharam; e, ainda assim, saiu com eles da Rua do Ouvidor, a pé. No Largo da Lapa achou-se com quatro; na Glória, com três, no Largo do Valdetaro, com dois, e no Machado com um, que o convidou para voltar para a Rua do Ouvidor.// Mais tarde, vendo passar o coche triunfal do Rio Branco, por ocasião da lei de 28 de setembro, compreendeu que era um bom veículo de molas, vistoso, e atirou-se à traseira; mas já lá achou outros, que o puseram fora a pontapés, e o meu pobre Guedes teve de voltar à obscuridade.// Tentou outras coisas. Tentou uma orchata higiênica, uma loteria de crianças, uma polca, uma rua, e uma casa de fazendas baratas. Falhou tudo. (…)// Agora, se realmente quer popularidade, abra mão de planos complicados; limite-se a fazer anunciar, por meio de alusões engenhosas, que é o Guedes, o célebre Guedes, que é esclarecido, e varie os termos, passe de esclarecido a ilustrado, e de ilustrado a eminente. (…) O leitor não acredita, nos primeiros quinze dias; no fim de vinte fica um tanto perplexo; passados trinta, pergunta se realmente não se enganou; ao cabo de cinquenta, jura que se enganou, que é o Guedes, o verdadeiro Guedes. Três meses depois, mata a quem lhe disser o contrário” (19/7/85, op. cit. p. 469-470).
[16] “Os vivos são o que meu amigo Valentim designa pelo nome de medalhões. Em primeiro lugar, há ainda um certo número de espíritos bons, fortes e esclarecidos que não merecem tal designação. Em segundo lugar, se os medalhões são numerosos, pergunto eu ao meu amigo: — Também eles não são filhos de Deus? Então, porque um homem é medíocre, não pode ter ambições e deve ser condenado a passar os seus dias na obscuridade?// Quer me parecer que a ideia do meu amigo é da mesma família da de Platão, Renan, e Schopenhauer, uma forma aristocrática de governo, composto de homens superiores, espíritos cultos e elevados, e nós que fôssemos cavar a terra. Não! mil vezes não! A democracia não gastou seu sangue na destruição de outras aristocracias, para acabar nas mãos de uma oligarquia ferrenha, mais insuportável que todas, porque os fidalgos de nascimento não sabiam fazer epigramas, e nós os medíocres e medalhões padeceríamos nas mãos dos Freitas e Alencares, para não falar dos vivos (16/12/83, op. cit., p. 425-426).
[17] Uma jovem historiadora, dentro do mesmo quadro teórico, roçou o tema que tem nos interessado, sobretudo numa seção de seu estudo denominada “Na figura do medalhão os traços da política clientelista e da imobilidade social”: “Nessa polaridade social [entre fausto de poucos e miséria da maioria], as chances de ascensão social eram mínimas — lotéricas, para usar a expressão de Machado. Em substituição à ordem escravocrata não surgiam as modernas formas de mobilidade social. Através do trabalho, competência individual ou competição direta no mercado, não se chegava a lugar algum. Era ainda necessária a indicação, o contato, enfim, o clientelismo” (Arlenice Almeida, “O diálogo — contribuições para a formação de um jovem”, A Supremacia do Conto: edição comentada de Papéis Avulsos, grifo nosso).
[18]Um Mestre na Periferia do Capitalismo — Machado de Assis, p. 175.
[19]Idem, p. 190.
[20]Idem, p.120.
[21]Ao Vencedor as Batatas, p. 75-76.
[22] Para a importância da sociologia uspiana e, em particular, do livro de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata, na elaboração do esquema teórico de Schwarz, ver de Paulo Eduardo Arantes Sentimento da Dialética na Experiência Intelectual Brasileira — Dialética e Dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz.
[23]Um Mestre… p. 78 e 178.
[24]Idem, p. 46.
[25] Para uma discussão do conceito de “forma social” pela crítica dialética, por oposição à forma artística, defendida pelos vários formalismos e encarada como “traço distintivo e privativo” da arte, como exclusivo “privilégio” seu dela, ver de Roberto Schwarz “Originalidade da crítica de Antonio Candido”, Novos Estudos Cebrap, n. 32, março de 1992.
[26]Um Mestre… p. 64-65.
[27]Idem, p. 183.
[28]Idem, p. 165-6; 173-4.
[29]Idem,p. 194.
[30]Idem, p. 78-79; 162; 195.
[31]Idem, p. 202-3.
[32]Idem, p. 51.
[33] “(…) Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo. // Capítulo II — O Emplasto// Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.// Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetins, esquinas, e enfim nas caixinhas de remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse efeito: fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória”.
Observe o leitor o encadeamento das razões, que não deixa de surpreender.// Na petição que dirige ao governo, Brás Cubas chama a atenção para os resultados cristãos de seu invento; aos amigos, confessa que espera ter lucro.// Até aqui, nada de particular: descobrir o cálculo atrás da fachada generosa é o movimento normal do romance realista. Um movimento aliás que indica o vínculo — crítico — entre esse tipo de romance e a ordem individualista que o capitalismo vinha criando.// Ocorre que esta não é a explicação final. Depois dela há outra, mais esquisita, vinda de além-túmulo, onde não há razão para disfarce. O motivo real do falecido havia estado no gosto do cartaz, na ânsia de ver o nome em letra de forma. Noutras palavras, o cálculo de lucro era… uma desculpa.// Assim, a busca da vantagem econômica dá cobertura ao desejo de reconhecimento pessoal, e não vice-versa. A esperança de lucro é uma aparência, e nesse ponto ela não difere da inspiração cristã na petição ao governo. Ambas ocultam a paixão da notoriedade, que é o único motivo verdadeiro.// Esta mesma conjunção reaparece no final do parágrafo: ‘Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória’. Diferentemente do que seria capaz de esperar, filantropia e lucro não estão em campos opostos. Pelo contrário, estão de mãos dadas, e na mesma face da medalha: na face confessável voltada para o público. Na outra, que é a verdadeira e secreta, está a ‘sede de nomeada’. Esta é a realidade privada e efetiva, por oposição às aparências públicas, apoiadas no sentimento cristão tanto quanto na ambição econômica.// Em suma, a Brás Cubas o cálculo egoísta aparece como algo de socialmente estimável, que se deve até apregoar, muito diverso do motor oculto e sombrio da vida moderna, a que nos habituou o romance realista europeu. Esta é uma primeira originalidade. Acresce que o cálculo econômico não é um motivo real, e sim um álibi para outro desejo mais secreto, menos sério, e o mais verdadeiro de todos — o que é outra originalidade. Economia e Cristianismo são frivolidades para ostentar, enquanto que a sede de atenção e cartaz, que se diria frivolidade pura, é posta como a instância última da realidade. // Que pensar desta ordenação inesperada — e por assim dizer leviana — das causas?” (Que Horas São? p. 116-118, grifo nosso).
[34]“Isso significa que o país está fechado em todas as direções; que muitas avenidas que poderiam oferecer um meio de vida a homens de talento, mas sem qualidades mercantis, como a literatura, a ciência, a imprensa, o magistério, não passam ainda de vielas, e outras, em que homens práticos, de tendências industriais, poderiam prosperar, são por falta de crédito, ou pela estreiteza do comércio, ou pela estrutura rudimentar da nossa vida econômica, outras tantas portas muradas” (Joaquim Nabuco, O Abolicionismo, “Influências sociais e políticas da escravidão”, 1.ª edição 1884).
[35] “Trata-se de uma situação básica do romance oitocentista: as veleidades amorosas e de posição social, propiciadas pela revolução burguesa, chocam-se contra a desigualdade, que embora transformada continua um fato; é preciso adiá-las, calcular, instrumentalizar a si e aos outros… para afinal descobrir, quando riqueza e poder tiverem chegado, que não está mais inteiro o jovem esperançoso dos capítulos iniciais. Com mil variações, esta fórmula em três tempos será capital. Entre os ardores do princípio e a desilusão do fim, sempre o mesmo interlúdio, de vigência irrestrita dos princípios da vida moderna: a engrenagem do dinheiro e do interesse ‘racional’ faz o seu trabalho, anônimo e determinante, e imprime o selo contemporâneo à travessia de provações que é o destino imemorial dos heróis. São as consequências, na perspectiva do individualismo burguês, da generalizada precedência do valor-de-troca sobre o valor-de-uso — também chamada alienação — a qual se transforma em pedra de toque para a interpretação dos tempos. Efeito literário e pressuposto social desse enredo, do momento de cálculo que é sua alavanca, estão na autonomia — sentida como coisificação, como esfriamento — das esferas econômica e política, as quais parecem funcionar separadas do resto, segundo uma racionalidade ‘desumana’, de tipo mecânico. Para a economia a causa está no automatismo do mercado, a que objetos e força de trabalho estão subordinados ao mesmo título, e que do ponto de vista do mérito pessoal é uma arbitrária montanha russa. Quanto à política, no período histórico aberto pelo Estado moderno, conforme ensinamento de Maquiavel, as suas regras nada têm a ver com as normas de moral. Nas duas esferas, como também na da carreira, que em certo sentido é intermediária, a vida social vem afetada de sinal negativo e implacável, e é em conflito com ela que alguma coisa se salva. Esta, e não outra, é a paisagem na qual tem poesia o descompromisso romanesco, às vezes exaltante, às vezes sinistro, entre indivíduo e ordem social. Solitárias e livres, um desígnio atrás da testa, as personagens de romance planejam seus golpes financeiros, amorosos ou mundanos. Uns triunfam pela inteligência e dureza, outros pelo casamento e pelo crime, outros ainda fracassam, e finalmente existem os simbólicos, que fazem um pacto com o diabo. Em todas uma certa grandeza, digamos satânica, vinda de sua radical solidão e do firme propósito de usar a cabeça para alcançar a felicidade” (Roberto Schwarz, Ao Vencedor as Batatas, p. 41-42, grifo nosso).
[36]“A diferença ressalta bem na maneira de encarar a ascensão social: num caso [o realismo francês] aponta-se para o preço desta, ainda quando é bem sucedida, pois o carreirista transforma a si e aos outros em degrau; no outro [o realismo conformista do primeiro Machado] estudam-se as condições em que ela, em si mesma desejável, se completa com dignidade, para bem do próprio carreirista, mas também das boas famílias, que beneficiam de seu talento, e finalmente de nossa sociedade brasileira, que precisa aparar as suas irregularidades e aproveitar o elemento humano de que dispõe. Em lugar da oposição absoluta de indivíduo e sociedade, da instrumentalização geral e do correspondente radicalismo crítico, estão a comunidade de costumes, de interesses e crenças, o desejo de melhorar e o arranjo. Favor, cooptação, sutilezas da conformidade e da obediência, substituem, no miolo do romance, o antagonismo próprio à ideologia do individualismo liberal” (Ao Vencedor as Batatas, p. 69, grifos nossos).
[37] “Ficando só, Rastignac encaminhou-se para a parte alta do cemitério e de lá viu Paris, tortuosamente deitada ao longo das duas margens do Sena, onde as luzes começavam a brilhar. Seus olhos fixaram-se quase avidamente entre a coluna da praça Vendôme e a abóbada dos Inválidos, no ponto em que vivia aquela bela sociedade na qual quisera penetrar. Lançou àquela colmeia sussurrante um olhar que parecia sugar-lhe antecipadamente o mel e proferiu esta frase suprema:
— E agora, nós!
E como num primeiro ato de desafio à sociedade, Rastignac foi jantar à casa da sra. de Nucingen.”