Por MARIAROSARIA FABRIS*
Comentário sobre o filme “O monstro na primeira página”, dirigido por Marco Bellocchio
Em 1972, Marco Bellocchio foi convidado a assumir a direção de Sbatti il mostro in prima pagina (O monstro na primeira página), substituindo Sergio Donati[1], argumentista, roteirista e diretor do filme, afastado oficialmente do projeto por motivos de saúde, ou, talvez por desavenças com o produtor ou com seu intérprete principal, Gian Maria Volonté, ou ainda por não se achar à altura da tarefa.Ao aceitar o desafio de aventurar-se num gênero de obra diferente das que caracterizaram sua produção, Bellocchio pediu alguns dias de prazo para reelaborar o roteiro, com a colaboração do crítico Goffredo Fofi, ambientando a história no momento político que a Itália estava vivendo às vésperas das eleições de 7 de maio de 1972 e ressaltando o papel da imprensa e sua relação com o poder.
A trama do filme gira ao redor do assassinato de Maria Grazia Martini, uma jovem colegial milanesa, de classe média alta, cujo corpo violentado havia sido encontrado num lixão da periferia da cidade.[2] Uma notícia corriqueira de crônica policial, que se transforma num caso criminal de grande repercussão a partir do estabelecimento de um elo entre a estudante e um ativista político de extração proletária, Mario Boni. Quem aproveita a ocasião é Giancarlo Bizanti,[3] chefe de redação de Il Giornale, interessado em desviar a atenção dos leitores das acusações que pesavam sobre o dono do periódico, o engenheiro Montelli,[4] implicado no armamento da ala mais radical da direita, como denunciam com insistência jornais de esquerda e de extrema-esquerda (Paese sera, il manifesto, Lotta continua).[5] E assim, com a cumplicidade do delegado encarregado das investigações e com a presença de um fotógrafo e do periodista Lauri,[6] ambos de Il Giornale, na hora da prisão – o que garante ao matutino um furo de reportagem –, um “monstro” vai parar na primeira página de Il Giornale, com uma manchete em que é evidenciada sua ideologia política: trata-se de um extremista de esquerda.
A colaboração involuntária, porque habilmente manipulada por Bizanti, da professora Rita Zigaina,[7] que abrigava o militante em troca de migalhas de amor, permitirá desmontar o álibi do rapaz, o qual antes nega ter-se encontrado com a moça no dia fatídico, para depois admitir o encontro, mas proclamar sua inocência. A extrema-esquerda contra-ataca, convocando uma coletiva de imprensa para denunciar a campanha de difamação levada adiante pelo periódico milanês e minimizar a relação entre o jovem operário e a maleável educadora.
Na filipeta de convocação, lê-se: “… estratégia da tensão, inaugurada pelas bombas de Praça Fontana.Il Giornale, órgão da direita mais reacionária é o principal responsável pela prisão de Mario Boni.A estreita colaboração de Il Giornale com a polícia é conhecida por todos e, especialmente, neste caso, decerto não é por amor à justiça, mas para fornecer à opinião pública a vítima certa no momento certo.Nós desmascaramos essa conjura, cujos responsáveis se desqualificarão diante dessa opinião pública que hoje procuram enganar”.
Conseguir apenas o furo não basta a Bizanti, que tenta inutilmente criar uma situação de confronto durante a entrevista coletiva, mandando o ingênuo Giuseppe Roveda representar o jornal, com a esperança de que seja agredido. Para manter o interesse dos leitores, pede de novo a colaboração do inescrupuloso Lauri, que descobre e denuncia à polícia o local do aparelho dos companheiros do jovem ativista, o que leva para a prisão mais cinco membros do grupo Luta Contínua, os amigos do “monstro”, como salientará Il Giornale.[8]
Encarregado do caso, Roveda, durante a reconstituição do crime, conversa com um colega de outro jornal, o qual chama sua atenção para o uso eleitoreiro que o matutino está fazendo daquela história. Sentindo-se uma marionete nas mãos de seu chefe, Roveda se revolta, mas recebe uma dura reprimenda, em que Bizanti revela como nunca sua ideologia: “O senhor quer criticar nossa linha política ou quer me dar uma aula de ética profissional? […] O caso Martini é um sintoma, um indício da situação. Alguma vez se perguntou por que Il Giornale recebe tantas cartas? Porque para as pessoas comuns este assassinato é um símbolo da desagregação do país e as pessoas têm medo. […] Concordo, eu e Il Giornale provocamos. Não contamos a realidade objetivamente, mas, que objetividade, Roveda? Já se perguntou quem é Mario Boni? É um marginalizado que recusa as regras do convívio social, […] ataca Il Giornale, agride os operários que não querem fazer greve, sequestra os dirigentes, derruba os carros e lhes ateia fogo, é alguém que o odeia também, Roveda, com seus bons sentimentos e seus nobres idealismos. O senhor vê no jornalista um observador imparcial. Pois bem, eu lhe digo que esses observadores imparciais me dão pena, devemos ser protagonistas, não observadores, estamos em guerra, nós também fazemos a luta de classes, não foi inventada por Marx e Lênin”.
Um ideário que reaparece numa mesa-redonda transmitida pela televisão, em que o chefe de redação se coloca do lado da “maior parte dos cidadãos que respeitam as mais óbvias normas de convívio civil” e contra uma “minoria de pessoas, digamos, turbulentas, e eu, nessa minoria incluo os pervertidos, os tarados, os doentes perigosos e ainda os niilistas, que querem destruir tudo, sem se colocarem o problema do que contrapor. Vocês me perguntam quem é a maioria? E eu respondo quem trabalha, quem paga os impostos…”
Mais um quase solilóquio, em que Bizanti retoma um discurso sobre a servidão intrínseca que o sujeita ao dono do jornal ou a qualquer patrão, moldando por ela suas ideias e tendo plena consciência de sua escolha. É o papo que levou com Rita Zigaina, durante o primeiro encontro entre os dois, quando ela o acusou de ser um jornalista de merda:
“Olhe, só há uma coisa que eu não quero me tornar, meio revolucionário e meio palerma como certos colegas patéticos. Portanto, é melhor escrever conscientemente para um jornal de merda do que pretender salvar a própria alma cuspindo no prato em que se come. Hoje em dia, em minha opinião, não podemos nos permitir isso, sermos românticos, nem aos vinte anos. Eu não entendo o idealismo deles, sua liberdade não me fascina”.
As investigações de Roveda levam à descoberta do verdadeiro autor do crime – o bedel da escola, apaixonado pela jovem estudante e inconformado com sua liberdade sexual –, mas isso não interessa nem ao chefe de redação, nem ao dono de Il Giornale, que resolvem levar adiante a farsa e talvez revelar a verdade só depois das eleições.
O monstro na primeira página foi rodado de um jeito bem aventuroso. Em poucos dias […], tive de improvisar-me diretor e ainda reelaborar todo o roteiro, porque não acreditava de modo algum no roteiro que havia sido escrito. Pedi a Fofi para ajudar-me, porque o roteiro nos parecia carente também em relação aos cânones tradicionais. E pensamos em aproveitar a ocasião para fazer um discurso político mais ao vivo, tínhamos poucos dias e era inevitável sermos esquemáticos. Uma vez que, naquelas semanas, estava em andamento a campanha eleitoral de 1972, pensamos em fazer dela uma protagonista do filme. Antes era simplesmente um policial à italiana, que tinha pouco a ver com a política. Nós procuramos, de alguma forma, falar de todos aqueles linchamentos políticos da grande imprensa italiana de então” – afirmou Bellocchio numa conversa com Sandro Bernardi, em 1978.
Lino Micciché, discordando do cineasta, considerava que a trama engendrada por Donati “funcionava muito bem, que os dispositivos narrativos pareciam orquestrados por um roteirista profissional, que o sentido polêmico da história se revelava, significativo e evidente”, na exemplificação de “um caso de banditismo jornalístico” levado a cabo por um periódico que fazia um uso reacionário e classista da informação.
A partir do novo roteiro, um filme policial se transformava em mais um expoente do cinema político italiano e uma obra de encomenda recebia uma forte carga autoral, graças ao acréscimo de uma grande dose de ideologia, além de alguns elementos que sempre caracterizaram as realizações do diretor, como a patologia do verdadeiro assassino, ou o amor extremado da professora. Para Gian Piero Brunetta, no entanto, em O monstro na primeira página – assim como havia sido em Nel nome del padre (Em nome do pai, 1971) e será em Marcia trionfale (Marcha triunfal, 1976) –, o “olhar do autor” não se manifestava claramente; ao contrário, “esses filmes adota[va]m o estilo de Ferreri, Petri, Damiani, Rosi”, embora não na mesma proporção.
Dessa forma, Brunetta juntava num feixe único tanto diretores que haviam surgido como renovadores do cinema italiano no início dos anos 1960 (Marco Ferreri, Bellocchio), quanto os que haviam se tornado os grandes representantes do chamado cinema político italiano (Elio Petri, Damiano Damiani) ou os que haviam transitado entre as duas vertentes (Francesco Rosi). Ao colocar todos sob o signo do cinema político, o historiador de cinema não só negava a marca autoral, pois as realizações desses diretores pareciam ser intercambiáveis, mas permitia pôr em xeque a própria eficácia, quando não a existência do cinema político.
Efetivamente, naqueles anos, pelo fato de terem de se curvar aos esquemas da indústria cinematográfica, as realizações do cinema engajado eram acusadas de participarem “integralmente do jogo produtivo e ideológico do poder, colocando-se, aliás, como falsa alternativa ao cinema espetacular e declaradamente burguês, mistificando, desse modo, fatos e homens que pertencem à cultura e à ideologia revolucionária”, nas palavras de Goffredo Bettini e Elena Miele.
Bellocchio, porém, não só desdenhava o cinema político italiano, como reiteradas vezes declarou que não queria trair os companheiros de luta, mesmo num filme de encomenda, embora não fosse mais um ativista político. O cineasta não havia militado no grupo focalizado no filme, Luta Contínua, mas havia participado da organização maoísta União dos Comunistas Italianos (marxistas-leninistas), surgida em outubro de 1968, da fusão do Movimento Estudantil de Roma e do coletivo milanês Foice e Martelo, o qual, inicialmente ligado à Quarta Internacional trotskista, havia aderido ao marxismo-leninismo com a difusão do ideário da Revolução Cultural Chinesa, iniciada em 1966. A UdCI,que editava o periódico Servire il popolo, em 1969 financiou a produção dos documentários Il popolo calabrese ha rialzato la testa e Viva il 1º maggio rosso e proletario, que Bellocchio dirigiu anonimamente.
Os companheiros de Luta Contínua, entretanto, demoliram o filme, apontando uma relação meramente casual entre ficção e realidade, considerando figuras folclóricas tanto os militantes quanto jornalistas, policiais e poderosos, acusando o diretor de chover no molhado, pois as artimanhas do poder já haviam sido desmascaradas, e de ter denegrido o operariado, o qual, praticamente ausente da trama, “corre o risco de parecer, em vez de uma classe potencialmente revolucionária, uma classe de encostados”, conforme artigo publicado no órgão do movimento.[9]
Ao contrário do articulista de Lotta continua, Sandro Scandolara, numa leitura muito generosa, assinalava que nenhum dos personagens, mesmo os menores, era apenas esboçado: “todos fornecem as mais precisas justificações para seu comportamento e em cada um se percebe, ora grotesca ora dramática, a divergência entre a percepção subjetiva de valores e ações e seu papel efetivo dentro do contexto capitalista”. Quanto à visão da classe operária, há uma evidente distorção na leitura que o autor do artigo faz das palavras do engenheiro Montelli, atribuindo-as ao autor e não ao personagem:
“Cada um tem que ficar no seu lugar. A polícia reprimindo e os juízes condenando, a imprensa convencendo as pessoas a pensar como nós queremos, todos no fundo estão cumprindo o próprio dever. São os operários que não aceitam o jogo. Não trabalham o suficiente, não estão nem aí, querem sempre dinheiro. Não conseguimos aumentar a produção, este é o verdadeiro problema. Que importância pode ter, diante disso tudo, a inocência ou a culpa de um Mario Boni?”
A maior parte da crítica da época nem sempre apreciou o resultado final do filme. Na opinião de Alberto Moravia, o cineasta partiu de um esquema já pronto e “o aplicou à realidade do jornalismo”, e isso fez com que resultassem esquemáticas, “daquele esquematismo unidimensional e despachado do panfleto, […] as partes mais propriamente políticas” da obra. Como o escritor romano, Micciché também, deplorou a “abordagem apressada e insegura” de um tema, que, se bem explorado, teria conseguido envolver o público em sua desconstrução “do mito da imprensa ‘livre e independente’ numa sociedade como a italiana”. Segundo ele, no filme houve ganhos, quando este trabalhou concretamente sobre fatos que tinham acabado de acontecer. Em contrapartida, as atitudes de alguns personagens – que teriam saído do plano do real para adentrarem o do grotesco, a ponto de resultarem abstratos (o chefe de redação, o dono do jornal) – desequilibraram um filme cujo “esquema ideológico geral” era “correto e pertinente” – tornando-o didático.
Bernardi apontou em O monstro na primeira página uma duplicidade que não lhe foi favorável: “a estrutura do policial vai se atenuando progressivamente, cortada pelas intromissões dos personagens e por uma mudança de perspectiva, motivo pelo qual o interesse do filme não é mais a pista que conduz ao assassino, mas a técnica de produção do assassino […] na imprensa”.
A investigação não tem uma versão única, mas dupla: uma primeira, da polícia, que se resolve com a visita do delegado com o bedel num desmanche de automóveis; e uma segunda, a de Roveda, que prossegue sozinho. O desdobramento – a primeira e a segunda verdades, culpado aparente e verdadeiro culpado – ainda faz parte das convenções do policial, mas se afasta dele quando as duas histórias, em vez de cruzar-se e resolver-se, continuam cada uma por conta própria, cada qual com seu culpado. Também a que deveria ser a sequência final – o confronto com o assassino – é duplicada: primeiro Roveda vai à casa do bedel e o descobre; depois Bizanti, o chefe, informado pelo jornalista, vai para certificar-se da verdade e, ao mesmo tempo, mantê-la oculta. O culpado, portanto, é apenas um peão. Na sequência final, vemos os verdadeiros jogadores. Bizanti e o Patrão.
Esse final duplo é complicado pelo fato de que não há um elo sólido entre as duas histórias, mas a mais poderosa ‘demite’ a outra, assim como o diretor demite o jornalista. Dessa forma, o thriller político substitui o outro policial, mas sem desmontar seus códigos, apenas mudando-os um pouco para seus fins. O elo talvez devessem ser os enxertos de documentários, os quais, porém, ficam bem separados de ambas as histórias: o início a partir do enterro de Feltrinelli – como início a partir de um suicídio que poderia muito bem ter sido um delito – é emblemático para pôr em movimento um itinerário que descobre a verdade por baixo da ficção”.
O esquematismo destacado por Moravia foi admitido, em várias entrevistas, pelo próprio Bellocchio, o qual também concordou com a crítica feita por Micciché a um realismo acima do tom na parte ficcional de sua obra. Já nos comentários de Bernardi, há várias questões a serem discutidas.
Fica evidente, desde as tomadas iniciais, que o que interessa em O monstro na primeira página é a manipulação da informação com fins eleitoreiros. Afinal, o objetivo do chefe de redação sempre foi não apontar um culpado qualquer pela a morte da moça, mas um culpado de extrema-esquerda, em sua servil manobra a fim de evitar que a atenção se voltasse para os negócios escusos do dono do jornal. Como notou Bruno Di Marino, essa ideia não era nova, uma vez que já em Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto (Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, 1969) o policial que assassina a amante, “para desviar as investigações sobre sua pessoa, […] construía um culpado: ou seja, o estudante de extrema-esquerda Pace”. E Bellocchio, embora não apreciasse o chamado cinema político italiano, como foi dito, reconhecia a importância dessa obra de Petri.
No filme não há duas histórias que correm paralelas, mas uma trama subordinada à outra, uma vez que o uso do assassinato da moça é apenas o elemento central para demonstrar os procedimentos de Bizanti. Trama e subtrama estão ligadas, de forma intrínseca, o tempo todo e, no final, será a partir do silêncio, momentâneo ou permanente, imposto por Bizanti ao bedel que o ativista continuará preso. Nesse sentido, mais do que duplicada, a descoberta do assassino é desdobrada, pois, mais do que a revelação da verdade em si, o que interessa mostrar é a ocultação do que realmente aconteceu, a fim de que a “verdade” de Il Giornale se imponha. E assim, o verdadeiro monstro se revela: não é o presumível criminoso, cuja identidade foi alardeada pela imprensa; tampouco é, apesar de toda sua paixão patológica pela moça, o voyeur assassino; é Bizanti, cujo rosto se sobressai nos cartazes. Quanto aos operadores desse jogo estão presentes desde o início do filme e ao longo dele, o público não os descobre na sequência final (na realidade, trata-se da antepenúltima).
Os trechos documentários (dos quais o enterro de Feltrinelli não é o primeiro, mas o último) não estão descolados do resto da trama, uma vez que é o resultado das eleições o que está em jogo e a escalada da violência interessa para assegurar o poder da direita.
Visto atualmente, quando o eco dosanos1960-1970 vai se dissipando da memória coletiva, O monstro na primeira página revela-se uma obra instigante, apesar de todas as críticas que lhe foram feitas, até pelo próprio realizador. Instigante principalmente pelos seus cerca de cinco minutos iniciais em que a Milão do período pré-eleitoral é a protagonista. A metrópole está tomada por manifestações contra e a favor das esquerdas,[10] por violentos choques entre as forças da ordem e militantes extremistas,[11] por faixas de propaganda partidária.[12] Se os comícios atraem multidões para as ruas, também o enterro do editor Giangiacomo Feltrinelli enche o cemitério de companheiros que se despedem dele de punhos cerrados, entoando Bandiera rossa.[13] A cidade parece um barril de pólvora prestes a explodir, como o resto da Itália, que está vivendo a chamada estratégia da tensão,[14] quando o cenário nacional foi manipulado pelo poder para manter o status quo.
Essas imagens documentais – constituídas, como já visto, de material de arquivo (nota 11) e de sequências rodadas pela equipe do filme (relativas às notas 10, 12 e 13)[15] – introduzem o espectador, de chofre, no clima daqueles dias e se, talvez, fossem dispensáveis quando a obra foi filmada, ao serem vistas ou revistas hoje se tornam preciosas. Como assinalou Brunetta, matizando seu primeiro comentário sobre esta obra de Bellocchio: “O monstro na primeira página, com as passeatas de protesto, a repressão policial, a guerrilha urbana, os slogans, os rostos dos estudantes cobertos pelas balaclavas, o cortejo pela morte do editor Giangiacomo Feltrinelli, as lembranças ainda candentes do massacre da Praça Fontana em 1969, da morte do anarquista Giuseppe Pinelli[16], e a passagem quase imperceptível para as imagens de ficção[17], […] é um dos poucos documentos de ficção da época com uma grande carga, capaz de devolver sua temperatura ideológica e seu grau de tensão social”.
Realizado no calor da hora, O monstro na primeira página revela-se instigante pela História que se insinua nas entrelinhas[18] e mais inquietante ainda pela incorporação dos acontecimentos reais, o que lhe empresta um tom documental e o torna um testemunho daquela época conturbada, levando o espectador hodierno a refletir sobre esse momento tão crucial para a sociedade italiana.
*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros livros, de O neo-realismo cinematográfico italiano: uma leitura (Edusp).
Versão revista de “Aqueles poucos minutos em que a História adentrou a ficção”, publicado em Anais do IV Seminário Nacional Cinema em Perspectiva e VIII Semana Acadêmica de Cinema (Curitiba: Unespar, 2016, p. 352-364), volume organizado por Agnes C. S. Vilseki et al.
Referência
O monstro na primeira página (Sbatti il mostro in prima pagina)
Itália, 1972, 93 minutos
Direção: Marco Bellocchio
Elenco: Gian Maria Volontè, Laura Betti, Fabio Garriba, Jacques Herlin
Disponível na íntegra (com legendas) em https://www.youtube.com/watch?v=wWiN0QHM5IM
Bibliografia
[Articulista de Lotta continua]. “Sbatti Bellocchio in sesta pagina”. In: CASA, Steve Della; MANERA, Paolo (org.). Sbatti Bellocchio in sesta pagina: il cinema nei giornali della sinistra extraparlamentare 1968-76. Roma: Donzelli Editore, 2012, p. 9-10.
BERNARDI, Sandro. “Antologia”. In: MARINO, Bruno Di (org.). Sbatti il mostro in prima pagina. Roma: Gianluca e Stefano Curti Editori, 2011, p. 13-14 [encarte do DVD].
BERNARDI, Sandro. “L’autore sul film”. In: MARINO (org.), op. cit., p. 10.
BETTINI, Goffredo; MIELE, Elena. “Cinema come apologia della classe al potere”. Cinema Nuovo, Florença, ano XIX, n. 206, jul.-ago. 1970, p. 279.
BRUNETTA, Gian Piero. Cent’anni di cinema italiano. Roma-Bari: Laterza, 1991, p. 516-517.
FABRIS, Annateresa. “As polaroides de Aldo Moro”. In: KUSHNIR, Beatriz et al. (org). Anais do XVI Encontro Regional de História da ANPUH-Rio: saberes e práticas. Rio de Janeiro: ANPUH-RIO, 2014 [recurso eletrônico].
MARINO, Bruno Di. “Intervista a Marco Bellocchio”. In: BELLOCCHIO, Marco. Sbatti il mostro in prima pagina. Roma: Gianluca e Stefano Curti Editori, 2011[extra do DVD].
MARINO, Bruno Di. “Presentazione: Sbatti il mostro in prima pagina. Un film profetico su stampa e potere”. In: MARINO(org.), op. cit., p. 3-5.
MICCICHÉ, Lino. “Sbatti il mostro in prima pagina di Marco Bellocchio”. In: ___. Cinema italiano degli anni ’70: cronache 1969-1979. Veneza: Marsilio, 1989, p. 138-140.
MORAVIA, Alberto. “Il direttore a caccia di mostri”. In: ___. Cinema italiano: recensioni e interventi 1933-1990. Milão: Bompiani, 2010, p. 904.
SCANDOLARA, Sandro. “Antologia”. In: MARINO (org.), op. cit., p. 12.
Notas
[1] Donati já era apreciado como roteirista, sobretudo graças à sua colaboração com Sergio Leone em Per qualche dollaro in più (Por uns dólares a mais, 1965) e Il buono, il brutto, il cattivo (Três homens em conflito, 1965), que não constou dos créditos, e em C’era una volta il West (Era uma vez no Oeste, 1968) e Giù la testa (Quando explode a vingança, 1971). Romancista, professor da Scuola di scrittura Omero (especializada em escrita narrativa, cinematográfica e jornalística), foi autor de séries televisivas, além de ter elaborado roteiros para vários gêneros de filmes, na Itália e em Hollywood.
[2] A morte da garota remeteria ao caso de Milena Sutter, estudante de treze anos, raptada e assassinada, em 6 de maio de 1971, por um rapaz de vinte e cinco anos, como ela da alta sociedade de Gênova. Lorenzo Bozano era considerado pelo próprio pai um psicopata, com uma forte pulsão sexual. Seu luxuoso carro esporte vermelho foi visto várias vezes nas imediações da escola de Milena, nos meses que antecederam o homicídio. No filme, também, há um automóvel: o carro popular amarelo com que o jovem extraparlamentar vai buscar a estudante na saída das aulas.
[3] No personagem de Bizanti, muitos viram a figura do editorialista Indro Montanelli, ferrenho anticomunista, na ocasião, porém, já descontente com a guinada à esquerda imposta pela nova dona e pelo novo diretor do Corriere della Sera. Segundo Lino Micciché, se o “tipo de leitor”, os “rituais hierárquicos” e a linha editorial do jornal, remetiam ao Corriere della Sera, as atitudes políticas de Il Giornale apontariam mais para os periódicos Il Tempo, de Roma, e La Notte, de Milão. Em 1974, coincidentemente Montanelli fundará Il Giornale (o primeiro número foi lançado em 25 de junho), em que se alinhava com uma direita ideal, que deveria ser a porta-voz dos anseios das que ele considerava as forças produtivas da sociedade italiana: a pequena e a média burguesia. No dia 2 de junho de 1977, o jornalista será baleado nas pernas pelas Brigadas Vermelhas. Em entrevista, Bellocchio diz não saber em quem Volonté teria se inspirado para compor o personagem e Bruno Di Marino não vê semelhança entre o tipo frio e o lucidamente cínico de Bizanti e o caráter explosivo, apaixonado e corajosamente combativo de Montanelli.
[4] O engenheiro Montelli, sempre nomeado por seu título acadêmico, seria uma referência a Gianni (Giovanni) Agnelli, conhecido como l’Avvocato, embora nunca tivesse exercido a advocacia. Para Micciché, esse personagem remeteria a Attilio Monti, dono da SAROM (Sociedade Anônima de Refino de Óleos Minerais) e de cinco periódicos, cujo sucesso financeiro foi facilitado por órgãos oficiais. O efeito devastador da SAROM na zona industrial de Ravena (Emília-Romanha) foi focalizado por Michelangelo Antonioni em Deserto rosso (Deserto vermelho, 1964).
[5] Nos créditos finais, há um agradecimento pela colaboração de Paese sera e de L’Unità, o outro órgão do Partido Comunista Italiano. il manifesto – fundado por membros radicais do PCI, expulsos do partido em fins do mesmo ano, por criticarem a invasão da então Tchecoslováquia pela União Soviética – começou a ser publicado em junho de 1969. Seus integrantes acabaram se organizando em partido político, participando das eleições de 1972. Lotta continua era o jornal do movimento homônimo, integrado por grupos revolucionários da esquerda extraparlamentar. O grupo Luta Contínua surgiu na segunda metade de 1969, a partir da cisão do Movimento Operários-Estudantes de Turim, que, no primeiro semestre daquele mesmo ano, havia articulado as lutas na universidade e na FIAT.
[6] Pela falta de escrúpulos com que obtinha ou fabricava as notícias, Lauri parece remeter a Giorgio Zicari, repórter policial do Corriere della Sera, famoso por sua capacidade de conseguir furos: de fato, foi o primeiro a noticiar, na edição extraordinária do Corriere d’Informazione (publicação vespertina do periódico milanês), que o motorista de táxi Cornelio Rolandi tinha reconhecido Pietro Valpreda, como o passageiro que havia deixado na Praça Fontana no dia da explosão do banco (ver nota 14). Para um articulista de Lotta continua, Zicari teria inspirado a composição de Bizanti.
[7] O personagem da professora teria sido inspirado por Rosemma Zublena, uma testemunha de personalidade fraca, facilmente influenciável, cujas declarações contra um grupo de anarquistas foram assinadas não por ela, mas pelo delegado Luigi Calabresi (11 de julho de 1969).
[8] A prisão arbitrária de Boni e de seus companheiros rememoraria a dos anarquistas acusados pelo massacre da Praça Fontana.
[9] Embora anônima, a resenha publicada em Lotta continua (1 nov. 1972) talvez seja de autoria do jornalista e ativista Adriano Sofri, líder do grupo Luta Contínua.
[10] Os minutos iniciais do filme registram um comício da Maioria Silenciosa (movimento surgido em 1971, que congregava vários partidos anticomunistas), durante o qual discursa Ignazio La Russa, expoente da Frente da Juventude, ala jovem do MSI (Movimento Social Italiano), herdeiro direto do Fascismo. Segundo Bruno Di Marino, o rosto inquietante de La Russa lembrava o de Rasputin.
[11] Material de arquivo, em preto e branco e em cores, sobre graves distúrbios ocorridos em Milão, no dia 11 de março de 1972.
[12] A câmera avança pela rua Dante, ocupada pelas faixas das várias organizações políticas que disputavam as eleições para a Câmara dos Deputados e para o Senado: Partido Socialista Italiano, Partido Liberal, Partido Comunista Italiano, Movimento Social Italiano, Democracia Cristã, que confirmará sua liderança no panorama político italiano.
[13] Ex-partisan e fundador da editora Feltrinelli, foi expulso do Partido Comunista Italiano por ter lançado, em 1957, a primeira edição mundial do romance Doutor Jivago, de Boris Pasternak. Nos anos 1960, em viagens pela América Latina, entrou em contato com Régis Debray e, anteriormente, com Fidel Castro, que lhe confiou O diário do Che na Bolívia, que Feltrinelli divulgará, assim como a famosa foto do guerrilheiro tirada por Alberto Korda. No fim dessa mesma década, entrou na clandestinidade e, em 1970 fundou um dos primeiros grupos armados de esquerda na Itália, o GAP (Grupos de Ação Partisan). O corpo de Feltrinelli foi encontrado estraçalhado pela explosão de uma carga de trotil, no dia 14 de março de 1974, aos pés de uma torre de alta tensão nas imediações de Milão. Homicídio político a cargo da CIA ou incidente durante uma ação de sabotagem (provocar um apagão na cidade para prejudicar o congresso do PCI), como afirmaram sete anos depois membros das Brigadas Vermelhas?
[14]A expressão strategia della tensione foi traduzida do inglês – strategy of tension –, tendo sido empregada por Leslie Finer em artigo publicado pelo semanário The Observer, no dia 7 de dezembro de 1969. Baseando-se em documentos do serviço secreto de inteligência britânico, o jornalista referia-se a uma estratégia político-militar dos Estados Unidos, os quais, com o apoio dos coronéis gregos, visavam favorecer a preservação ou a instauração de políticas reacionárias na bacia do Mediterrâneo. Por meio de atos terrorísticos, que atemorizassem a população, pretendia-se criar um clima de violência e de confronto, com o objetivo de justificar uma intervenção autoritária, que permitisse conter o avanço do PCI (e do PSI, inclusive) nas eleições e as conquistas das lutas sociais de 1968-1969. Os marcos cronológicos da estratégia da tensão são 12 de dezembro de 1969 e 2 de agosto de 1980, embora a datação possa ser flexibilizada. Dezessete mortos e oitenta e oito feridos foi o saldo deixado pela explosão de uma bomba no Banco Nacional da Agricultura, situado na Praça Fontana, no coração de Milão, na primeira data; enquanto, pelo mesmo motivo, oitenta e cinco pessoas morreram e mais de duzentas resultaram feridas no saguão da estação ferroviária de Bolonha, na segunda. Entre os dois acontecimentos, novos atentados em grande e pequena escala e outros incidentes. Apesar de perpetrados por forças reacionárias, muitos atos foram inicialmente imputados a integrantes da extrema-esquerda. O atentado de Milão foi atribuído aos anarquistas, tendo sido apontado como autor Pietro Valpreda; também acusado desse mesmo crime, na noite de 15 de dezembro de 1969, depois de três dias de interrogatório, Giuseppe Pinelli “caiu involuntariamente” de uma janela do gabinete do delegado Luigi Calabresi. A queda provavelmente foi encenada para acobertar que o ferroviário teria morrido ao ser interrogado com extrema violência. A última pessoa a ver o anarquista vivo foi Pasquale Valitutti, detido na sala contígua, que contestou a hipótese do suicídio e a ausência de Calabresi na hora fatal. Valitutti “morou por um período numa comunidade anarquista perto de Curitiba”, conforme assinalou Annateresa Fabris. “Execrado pela esquerda extraparlamentar, que o julgava responsável pela morte de Pinelli, e considerado o símbolo de um Estado obscuro, envolvido em tramas e empenhado em defender a própria imutabilidade”, Calabresi, por sua vez, será assassinado em 17 de maio de 1972, provavelmenteem virtude de “um ‘acerto de contas’ no interior do aparato policial, criador da ‘pista anarquista’”. As acusações – levantadas por Leonardo Marino, em 1988, durante sua delação premiada – de que o grupo Luta Contínua estaria envolvido no acontecimento não foram comprovadas. O nível de enfrentamento foi se elevando, assim como a troca recíproca de acusações entre direita e esquerda, e, principalmente, entre os representantes mais radicais de ambos os lados.
[15]Há ainda um pequeno trecho documental, logo depois da coletiva de imprensa e do momento em que Lauri está à espreita diante da sede de Luta Contínua, quando é registrada uma manifestação perto dos muros da cadeia de San Vittore, cujos participantes gritam palavras de ordem como “Dentro os patrões, fora os companheiros”, “Companheiros encarcerados, vocês serão libertados” e “A única justiça é a proletária”. A sequência que fecha o filme, tampouco é ficcional: são os primeiros momentos em que as águas voltam a circular num naviglio, um dos canais que cortam a metrópole lombarda. O lixo sendo carregado pela água surge como metáfora da escória (Bizanti e companhia) da qual a sociedade precisaria libertar-se.
[16] O episódio de Praça Fontana foi abordado pelo teatro e pelo cinema: o dramaturgo Dario Fo registrou a queda fatal de Pinelli em Morte accidentale di un anarchico (Morte acidental de um anarquista, 1970), ainda no calor da hora, enquanto o cineasta Marco Tullio Giordana traçou um retrato encomiasta de Calabresi em Romanzo di una strage (Romance de um massacre, 2012). Fora do circuito cinematográfico comercial, deve ser lembrado o documentário 12 dicembre, realizado pelo grupo Luta Contínuaentre 1970 e 1972, o qual, embora leve a assinatura de Giovanni Bonfanti, teve sequências rodadas por Pier Paolo Pasolini.
[17]É a sequência do ataque, com bombas molotov, a Il Giornale, referência ao atentado contra Il Corriere della Sera, no fatídico dia 11 de março de 1972.
[18] Além da fervilhante cenografia autêntica oferecida pela cidade por ocasião das filmagens e das prováveis referências a personagens reais, os cenários, a serviço das diferentes ideologias focalizadas, também contribuem para o clima de época: o carro de Mario Boni, com o dragão vermelho no cofre e foto de Mao Tse-tung no painel; o pôster de Ernesto Che Guevara no escritório do apartamento de Rita Zigaina; o cartazete no quarto de Maria Grazia Martini, com um dos slogans do movimento de Maio de 1968: “Il est interdit d’interdire” (“É proibido proibir”); o cartaz na redação do jornal, com dois policiais armados de cassetete e os dizeres “A violência se [com]bate com a democracia”; a ambientação do aparelho de Luta Contínua; a decoração típica da alta burguesia das residências de Bizanti e do engenheiro Montelli.