O tratado de Vestfália morreu na Ucrânia

Imagem: ShonEjai
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Por CLAUDIO SERGIO INGERFLOM*

A luta internacional não é entre bons e maus. É para definir quem serão os senhores do mundo no século XXI

“Não deveríamos parar de fingir que lutamos pela democracia e deixar bem claro: queremos liberdades pessoais, uma sociedade próspera, segurança e dignidade nacional?”. “A restrição das liberdades políticas é inevitável…”. “O que fazemos com os últimos valores que surgiram, que rejeitam a história, a pátria, o gênero e as crenças, com os movimentos agressivos LGBT e ultrafeministas? (…) acredito que são pós-humanistas. Deveríamos tratar isto como uma etapa a mais da evolução social? Não acredito. Deveríamos tentar evitá-lo, limitar sua propagação e esperar até que a sociedade supere esta epidemia moral? Ou deveríamos combatê-lo ativamente, levando a maioria da humanidade a aderir aos chamados valores ‘conservadores’, ou, para dizer de forma simples, aos valores humanos normais?”. Cara leitora, caro leitor, peço-lhes um favor: antes de continuar lendo, pensem no perfil ideológico do autor das linhas precedentes e imaginem quem as poderia ter escrito na Argentina. Depois vão para o fim da página e encontrem a resposta correta[i].

 

“Podemos conseguir muito e conseguir de tudo”[ii]

O que é a Ucrânia para o presidente Vladimir Putin? “… não é simplesmente um país vizinho. É parte integral da nossa própria história, cultura, espaço espiritual. (…) a Ucrânia moderna foi criada na sua totalidade pela (…) Rússia bolchevique e comunista”. Linhas depois, afirma que Josef Stalin pelo menos propôs que se outorgasse às “nações” do império um estatuto de autonomia dentro do Estado, mas infelizmente Lênin triunfou e, num gesto antirusso, aplicou o princípio da autodeterminação das nações[iii]. “A Rússia não pode ser uma grande potência quando está sufocada por uma Ucrânia cada vez mais difícil de lidar, uma entidade política criada por Lenin e que se expandiu posteriormente para oeste sob Stalin”[iv]. A Ucrânia deve ser fundida com a Rússia.

 

As razões da invasão segundo o presidente Putin.

(1) O genocídio da população russa que vive na Ucrânia. Felizmente para essa população, Putin não pôde fornecer qualquer prova.

(2) A história. Antes de se tornar independente, disse Putin, a Ucrânia era inseparável da Rússia; é hora de atualizar essa história. Em 2016, o presidente celebrou a memória do príncipe Vladimir de Kiev por sua conversão ao cristianismo e por ter batizado a Rússia em 988 na Crimeia. Ele acrescentou: “é nosso dever apoiar-nos nos preceitos espirituais e nas tradições de unidade para seguir avançando, assegurando a continuidade de nossa história milenar (…) Sua realização mais importante foi batizar a Rus (nome coletivo dos principados que se estendiam do Mar Branco ao Mediterrâneo). Esta escolha tornou-se uma fonte espiritual comum para os povos da Rússia, Bielorússia e Ucrânia, estabeleceu os fundamentos morais e éticos que determinam nossas vidas até o dia de hoje”[v].

Sobre a continuidade dos valores, não sei o que o presidente realmente pensa, mas lhes deixo um excelente exemplo desses valores de Vladimir de Kiev: depois de derrotar o príncipe Rogvolod, estuprou sua filha Rogneda na frente dos pais, depois matou-os e tomou Rogneda à força como sua esposa. Em dezembro de 2014, com a Crimeia já anexada, o presidente afirmou que a conversão de Vladimir é “a fonte espiritual” da “formação do Estado centralizado russo”[vi]. Precisemos também que entre essa “fonte” (século X) e “a formação do Estado” (séculos XV-XVI) se passaram alguns anos e que é estranho ver na conversão de um príncipe medieval a fonte de uma ordem jurídico-política fundada na soberania do povo e na representação democrática.

Depois: “Tomamos consciência da continuidade e indivisibilidade do caminho milenar da nossa pátria”. Suscita perplexidade esta “continuidade milenar” constantemente invocada por Putin, especialmente quando a utiliza para justificar sua noção de inseparabilidade entre a Rússia e a Ucrânia – inseparabilidade em que uma dirige e a outra obedece (ver acima: “a Ucrânia é difícil de lidar”). Para além da Ucrânia, se o presidente refere-se, por continuidade, à dimensão geográfica, trata-se de um desejo piedoso: desde que Moscou se consolidou no século XV até hoje, tem uma longa história de expansão e perda de territórios (Novgorod, Pskov, Sibéria, países bálticos, Polônia, Cáucaso, Finlândia, Ásia…). Mas como seu ataque a Lenin e ao princípio da autodeterminação dos povos sugere, “continuidade” se refere à expansão, enquanto as perdas são percebidas nos erros ou traições dos líderes.

Aceitemos o critério de Putin: a continuidade justifica a anexação. Tomemos o marco histórico que ele propõe: desde o início da era cristã. Vamos aos dados.

Crimeia: até ao século IV sob o domínio do Império Romano, depois do Império Bizantino até 1204, seguindo-se várias potências não russas (mercadores venezianos, genoveses e tribos locais). Ao mesmo tempo, uma parte da Crimeia tinha ficado sob o controle de Kiev desde o século X. Em 1239, foi conquistada pelos mongóis, seguidos pelo Império Otomano. Apenas em 1783, é conquistada pela Rússia. Em 1954, passou à jurisdição ucraniana. Contamos? A Crimeia pertenceu durante 1500 anos a diferentes potências não russas. Por pouco mais de 200 anos, foi intermitentemente dominada por Kiev. Por 171 anos, pertenceu à Rússia.

Ucrânia. Desde o século X até às vésperas do jugo mongol (século XIII), o principado de Kiev foi o principal centro da Rus, embora tenha enfraquecido gradualmente, à medida que o de Vladimir-Suzdel ganhava importância. Em 1321, Kiev tornou-se vassalo dos príncipes lituanos. Em 1471, foi dissolvido. Desde então e até 1654, quase a totalidade da atual Ucrânia passou a fazer parte sucessivamente do reino da Polônia, do Grão-Ducado da Lituânia e finalmente da Rech Pospolita, ou seja, a União Polaco-Lituana. De 1654 a 1991, pertenceu primeiro à Rússia, depois à URSS. Contemos a partir da data indicada pelo presidente como a fonte do Estado russo, ou seja, o século X, embora, repito, nesse momento a Rússia não existia: 400 anos como territórios independentes, 333 anos sob domínio lituano-polaco, cerca de 260 anos sob a coroa imperial e 70 na URSS. No total, cerca de 330, mas nem o Império nem a União Soviética eram “Rússia”, o primeiro era de “todas as Rússias” (por isso se chamava Rossiiskaia e não Russkaia), ou seja, Rússia, Bielorrússia e Ucrânia, e a segunda era uma “União de Repúblicas”, constitucionalmente com os mesmos direitos. Mesmo se contarmos estes 330 anos como inseparável da Rússia, é apenas 30% do tempo total.

Como o presidente Vladimir Putin enfatiza a história e sua continuidade para fundar a inseparabilidade entre Rússia e Ucrânia, a história volta-se contra seus interesses. Polônia e Lituânia poderiam adotar a lógica de Putin e reivindicar a Ucrânia para elas, enquanto a Ucrânia, cuja capital é Kiev, poderia reivindicar a Rússia como sua. Translademos a lógica putiniana para nossas terras: Buenos Aires era o centro político do vice-reinado do Rio da Prata, portanto a Argentina teria o direito de anexar o Uruguai, Paraguai, Bolívia e uma parte do Chile. Ou, olhando o mapa do império de Carlos Magno, a França deveria fazer o mesmo com a Alemanha… O argumento histórico da continuidade é uma construção imaginária invalidada pelos dados e profundamente contraditória em si mesma.

(3) A OTAN. É um leitmotiv constante: a Rússia sente-se ameaçada caso a Ucrânia entre na OTAN. Os ocidentais repetem que a adesão não está na ordem do dia. Conhecendo a história dos EUA e da OTAN, concordo que não há qualquer razão para acreditar neles. Fizeram todo o possível para acercar-se da Rússia. Ao mesmo tempo, todos/as que sustentamos que os povos devem determinar sua própria história não podemos nos fazer de distraídos/as: a integração à OTAN e sobretudo às instituições supranacionais europeias não é uma simples decisão dos governantes – legítimos – desses países, mas o clamor dos povos com memória de colonizados e oprimidos. A visão dos atuais líderes russos que receberam com beijos (literalmente) Marine Le Pen, convidada por Putin para uma entrevista pessoal a poucos dias das últimas eleições presidenciais na França, é outra. Dirigindo-se aos ucranianos, Putin exclamou: “Renunciam a seu passado? À assim chamada herança colonial do império russo?” [vii] Deixemos de lado o desprezo pelos povos, uma qualidade bem compartilhada pelos líderes mundiais.

Aceitemos o argumento “a OTAN nos agride. Vai instalar-se na Ucrânia, um país fronteiriço. Portanto, devemos preventivamente invadi-lo”. Mas será que a anexação da Ucrânia resolveria alguma coisa? Em sua fronteira ocidental, tem como vizinhos quatro países membros da OTAN: Romênia, Hungria, Eslováquia e Estônia, com bases aéreas e escudos antimísseis em vários deles, como Polônia e Letônia, que também fazem fronteira com a Rússia.

Estes últimos teriam então que ser considerados muito mais perigosos do que a Ucrânia. Então por que não os invade? No caso de um ataque da OTAN, quanto tempo mais demorariam os mísseis ocidentais para alcançar Moscou se fossem lançados a partir da Polônia em vez da Ucrânia? O mesmo tempo. Além disso, como salientam os especialistas militares, os mísseis mais perigosos são aqueles lançados a partir de submarinos. Repito: os escudos antimísseis já estão colados na fronteira ocidental. Mas então: qual é a razão da invasão?

“Não se trata realmente da Ucrânia. a OTAN não é uma ameaça imediata”.[viii]

 

Os resultados esperados da invasão.

O meu objetivo aqui é transmitir as declarações oficiais de Putin e de sua equipe. Citarei as frases dos textos que me parecem essenciais. O que não está entre aspas é porque resumo frases longas.

 

Política externa[ix]

“A Rússia entrou numa nova era de sua política externa, vamos chamá-la de ‘destruição construtiva’ do modelo anterior das relações com o Ocidente”. “O antigo sistema é um obstáculo, pelo que deve ser desmantelado”. Não atacaremos ninguém “com uma exceção”: Ucrânia. “O próximo passo é ‘unir as terras’”.

“O Ocidente está a caminho de uma lenta mas inevitável decadência” (Ocidente: os povos, as nações, nós), está “desesperado”. Perderá esta “nova Guerra Fria”. Tornar-se-á “mais razoável”.

“Nossa diplomacia com o Ocidente tornar-se-á secundária em relação à eurasiática”. A aliança é com a China.

“Durante a próxima década, a Rússia será relativamente invulnerável” e capaz de triunfar em caso de conflitos nas regiões dentro de sua esfera de interesses”.

“Erros que cometemos: ter assinado numerosos acordos que já não correspondem à nossa força.

A Europa é uma ameaça militar para o subcontinente e para o mundo inteiro. “A História exige que tomemos medidas”. Deveríamos utilizar vários instrumentos de política externa, incluindo os militares, para estabelecer certas linhas vermelhas.

“À medida que o sistema ocidental continua rumo à sua degradação moral, política e econômica, as potências não ocidentais (tendo a Rússia como ator principal) inevitavelmente verão fortalecidas suas posições”.

“Aumentar a pressão político-militar, psicológica e inclusive técnico-militar, não tanto sobre a Ucrânia, mas sobre o Ocidente coletivo”. Sei com certeza que os Estados Unidos nunca implementarão armas nucleares para “proteger” seus aliados se houver um conflito com um estado nuclear.

 

Política interna

“Restrição das liberdades políticas”.

“Liberdade individual absoluta” (a contradição é apenas aparente: não diz respeito à política, mas, implicitamente, à economia).

Defender a dignidade nacional e reforçar as fronteiras face à futura imigração em massa, a partir de territórios que serão dificilmente habitáveis, como a Índia, Paquistão, etc.

“Elaborar uma ‘ideia nacional’ que una e ilumine o caminho para o futuro. Descartar e reformar a base ideológica obsoleta e muitas vezes prejudicial das nossas ciências sociais e da vida pública para implementar esta nova política”. “As ciências sociais que estudam as formas de vida pública e privada devem ter em conta o contexto nacional”, “princípios científicos e ideológicos nacionais claros: outra vez, não pode ser outra coisa”.

“A Rússia sempre foi construída em torno de uma verticalidade rígida e executiva. Estas terras foram sendo acopladas durante séculos e não há outra forma de governá-las”[x].

 

Um novo unilateralismo

Neste ponto poderíamos perguntar em que tipo de sociedade futura pensam os líderes russos, que, além do mais, se referem constantemente aos preceitos do passado. A resposta é dada pelo presidente do Conselho Constitucional da Federação Russa, o mais alto tribunal em matéria de direito, num artigo de 2014, em que situou suas reflexões no marco dos “acontecimentos relacionados com a Ucrânia”.

Os problemas do Estado russo corresponderiam em grande parte ao “processo fatídico” que em março de 1861 “abriu a porta à emancipação da servidão”. “Com todos os custos da servidão, era ela o principal laço que sustentava a unidade interna da nação”. “A ligação interna entre as elites e as massas foi quebrada”. “E isso tornou-se uma das razões essenciais para o crescimento dos processos revolucionários e ameaçou a existência de um Estado estável”[xi].

Em outras palavras, afrouxaram as rédeas das massas camponesas e estas, ingratas!, voltaram-se contra o generoso czarismo. Agora fica mais clara a rígida verticalidade, a rejeição da democracia liberal, a restrição das liberdades políticas, a condenação do feminismo e outros valores que os animam.

O processo paralelo prognosticado pela atual liderança russa – a inevitável decadência moral, econômico e institucional do Ocidente e a transferência da hegemonia para o “espaço euroasiático com a Rússia à frente e ajudando” a China – deveria, segundo a claque messiânica, conduzir a um unilateralismo em que todos os povos do mundo terão que ser “razoáveis”. Porque passei a minha vida estudando a história e a cultura do povo russo, que respeito, admiro e amo, quero ser explícito: a luta internacional não é entre bons e maus. É para definir quem serão os senhores do mundo no século XXI e em que tipo de servidão viveremos os povos. Mas, por muito que desagrade os nostálgicos do czarismo e da servidão, assim como os portadores do neoliberalismo de todos os lados, os povos, inclusive o russo, podem mostrar-se ingratos com seus senhores.

E se não acreditam nisso, perguntem ao Nicolau II.

*Claudio Sergio Ingerflom, Coordenador do Centro de Estudos dos Mundos Eslavos da Universidade Nacional de San Martin.

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente na Revista Antibia, Universidade Nacional de San Martin, Buenos Aires.

 

Notas


[i] Serguei Karaganov, “Russia’s new foreign policy, the Putin Doctrine”, https://www.rt.com/russia/550271-putin-doctrine-foreign-policy. Publicado no dia 23 às 13h50, antes da invasão. Consultado no mesmo dia. Karaganov é o fundador e presidente de honra do Conselho de Defesa e Política Externa, criado por decreto presidencial em 2010. Putin frequenta suas reuniões.

[ii] Discurso anual (4 de dezembro de 2014) do presidente Vladimir Putin no Kremlin, diante da Assembleia Federal, na presença de mais de 1.000 convidados. http://www.consultant.ru/document/cons_doc_LAW_171774/ (em russo).

[iii] Discurso do presidente da Federação Russa, 21 de fevereiro de 2022. Consultado no mesmo dia. http://kremlin.ru/events/president/news/67828 (em russo).

[iv] Karaganov, “Russia’s new foreign policy, the Putin Doctrine”, art. cit.

[v] “Nosso dever é avançar, confiando nos preceitos espirituais e nas tradições de unidade, assegurando a continuidade da história”. 4 de novembro de 2016. https://er.ru/activity/news/putin-nash-dolg-opirayas-na-duhovnye-zavety-i-tradicii-edinstva-idti-vpered-obespechivaya-preemstvennost-istorii_148174. (em russo).  Consultado em 20 de janeiro de 2022.

[vi] Discurso anual (4 de dezembro de 2014). Doc. cit.

[vii] Discurso do presidente da Federação Russa, 21 de fevereiro de 2022. Doc. cit.

[viii] S. Karaganov, “It’s not really about Ukraine”, 8 de fevereiro de 2022. https://www.rt.com/russia/548630-decades-long-standoff-nato/. Consultado em 10 de fevereiro de 2022.

[ix] O pontos 1-15 são de S. Karaganov, “Russia’s new foreign policy, the Putin Doctrine”, doc. cit.

[x] Dmitri Medvedev, ex-presidente (2008-2012), atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia. https://www.gazeta.ru/politics/elections2008/2008/02/18_a_2640649.shtml (em russo).

[xi] Valeri Zorkin, “Um julgamento correto e igual para todos”, Rossiiskaia Gazeta, 26 de setembro de 2014. https://rg.ru/2014/09/26/zorkin.html (em russo).

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