Lira quer governar a saúde?

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Por PAULO CAPEL NARVAI*

A implicância obsessiva de Arthur Lira com a ministra Nísia Trindade requer, mais uma vez, o uso do bordão: “O Ministério da Saúde adverte: o deputado Arthur Lira faz mal à saúde”

Nem na semana em que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, esteve no Brasil acompanhado pelo diretor-geral da Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), Jarbas Barbosa, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), cessou os ataques que incessantemente vem desferindo contra a ministra da Saúde de Lula, Nísia Trindade e sua equipe.

Tedros e Barbosa foram recebidos em Brasília pela representante da OMS/OPAS no Brasil, Socorro Gross. Na sede da OPAS cumpriram uma agenda de trabalho, da qual participaram a ministra Nísia Trindade e o próprio presidente Lula, cuja pauta incluiu a prevenção de epidemias, o enfrentamento de doenças associadas com problemas socioeconômicos (hanseníase, tuberculose, malária e tracoma, dentre outras), a vacina contra a dengue e um acordo internacional para a segurança sanitária global, que será debatido na 77ª Assembleia Mundial da Saúde, que a OMS realizará em maio, no Nepal.

Não obstante a relevância dos temas tratados na sede da OPAS em Brasília, as declarações do presidente da Câmara dos Deputados, pedindo explicações à ministra da Saúde sobre o destino do dinheiro das emendas parlamentares ao orçamento da União, tiveram maior repercussão, impulsionadas pela mídia comercial.

No regime presidencialista vigente no Brasil, cabe ao Congresso Nacional discutir e aprovar o orçamento do governo federal, que se expressa na Lei Orçamentária Anual (LOA). O Congresso aprova a LOA a partir de um projeto de lei (PL) que é encaminhado pelo poder executivo. Mas é prerrogativa do parlamento, prevista na Constituição, propor alterações a esse PL do executivo, indicando o que querem suprimir, modificar ou acrescentar. Fazem isso por meio de emendas ao orçamento, também conhecidas como “emendas parlamentares”, que podem ser individuais, de bancada, de comissão ou do relator. Mas, como se trata de orçamento, as emendas acabam alterando tanto a arrecadação quanto a aplicação do dinheiro, interferindo, portanto, nas receitas e despesas do governo. Tudo isso tem muitas implicações no planejamento dos programas e políticas públicas do conjunto dos ministérios, vale dizer, nas ações do governo.

Resulta, porém, das “emendas parlamentares”, que o poder Executivo fica amputado de suas atribuições e o Legislativo, a quem cabe apenas elaborar leis, mas não as executar, extrapola suas atribuições violando a tripartição de poderes (executivo, legislativo e judiciário) adotada na República brasileira. Essa excepcionalidade, aparentemente uma incoerência, é tolerada no caso da LOA porque, em tese, possibilita ajustes entre o proposto no PL e o texto final da lei.

Mas a possibilidade que senadores e deputados têm de alterar o PL de que resultará a LOA tem limites, pois, como as emendas envolvem o orçamento, isso implica fazer acordos e pactuações que deveriam ter como fundamento a razoabilidade e a observância dos princípios da administração pública definidos no artigo 37 da Constituição de 1988, a saber: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Até aí, tudo bem, no caso da saúde e do SUS.

Os problemas começam quando parlamentares, contrariando o planejamento feito pelo ministério da Saúde, querem tomar decisões sobre a alocação de recursos financeiros, assumindo o lugar do poder Executivo. Não é razoável, questionando-se a legalidade dessa pretensão, a falta de publicidade (o tal “orçamento secreto”, ou emendas de relator) que marca a intromissão de parlamentares em decisões sobre programas de saúde, a violação da impessoalidade no trato da coisa pública, e o risco de ineficiência.

Ineficiência como a constatada pela Controladoria-Geral da União (CGU) em Pedreiras, no Maranhão, na aplicação de recursos provenientes de emenda parlamentar, em ações na área de saúde bucal no SUS. De acordo com a CGU, cada habitante de Pedreiras teria extraído, em média, 14 dentes em um único ano. A Polícia Federal foi acionada para apurar o superfaturamento. Também no Maranhão, em Igarapé Grande, com 11 mil habitantes, o SUS foi instado a pagar pela realização de 385 mil consultas médicas e a realização de e 12,7 mil radiografias de dedo.

Frequentemente não dá certo, pois não funciona, a intromissão de leigos em decisões sobre gestão de sistemas e serviços de saúde. Ainda está fresca na memória brasileira, a esse respeito, o desastre da gestão da saúde e do SUS nos governos Temer e Bolsonaro (2016-2022), notadamente o trágico desempenho do general da ativa Eduardo Pazuello no ministério da Saúde.

A moralidade é outro princípio da administração pública que vem colidindo com o modo como as emendas ao orçamento tem sido interpretado por alguns deputados e senadores, que simplesmente querem decidir tudo sobre a aplicação dos recursos originados em emendas que apresentaram, ignorando sua própria ignorância sobre a alocação eficiente de recursos em saúde. Geralmente, nada entendem de saúde pública, ainda quando médicos ou profissionais da área.

Chama a atenção a leniência com que o presidente da Câmara, Arthur Lira, vem lidando com essas pretensões de seus colegas. Ao invés de orientá-los a respeitar decisões tomadas no âmbito do planejamento do SUS, seja no ministério da Saúde, seja na Comissão Intergestores Tripartite, composta por técnicos do governo federal e representantes de Estados e Municípios (indicados por seus conselhos nacionais, o CONASS e o CONASEMS), Lira vem exorbitando e fazendo declarações públicas que colocam em questão o desempenho da ministra Nísia Trindade e sua equipe na pasta da Saúde. Vale registrar que o próprio Arthur Lira, embora advogado e agropecuarista, não tem formação em assuntos de saúde e de gestão de políticas públicas.

Em 5 de fevereiro de 2024, o presidente da Câmara dos Deputados protocolou um Requerimento de Informação (RIC), formalizando sete questionamentos à ministra Nísia Trindade, a respeito dos “critérios utilizados para a distribuição de recursos do ministério a estados e municípios”. Não precisava. Bastava acessar os documentos públicos sobre isso, disponibilizados pelo ministério da Saúde. Arthur Lira não quer efetivamente informações, quer apenas pressionar politicamente o governo, utilizando-se da titular da pasta da Saúde.

O presidente da Câmara apenas finge querer detalhes sobre “critérios” utilizados para definição de limites orçamentários e financeiros para transferências da União, na “atenção primária, média e de alta complexidade” e sobre a existência de “distinção na composição dos tetos de atenção primária, média e de alta complexidade” relacionados com as emendas parlamentares.

Arthur Lira poderia, se efetivamente estivesse interessado nessas tecnicalidades sobre alocação de recursos nos diferentes níveis de atenção à saúde no SUS, consultar o poder Judiciário, a quem incumbe verificar o cumprimento de leis, incluindo evidentemente a LOA. Mas ele não está mesmo interessado nisso. O que Arthur Lira quer é pressionar Lula e fazer um mimo ao “centrão”, utilizando-se da titular da pasta da Saúde.

Arthur Lira pressiona Lula para expressar desagrado com a decisão do governo federal de vetar R$ 5,6 bilhões, no conjunto das emendas parlamentares, ao sancionar a LOA 2024, em janeiro. Arthur Lira e os deputados federais, de olho nas eleições municipais deste ano, querem alguma compensação. Lula resiste, pois o conjunto das emendas parlamentares (R$ 44,7 bilhões) representa atualmente 20,1% do orçamento da União. Arthur Lira e o centrão aspiram voltar ao cenário de 2020 quando, sob Jair Bolsonaro, as emendas parlamentares correspondiam a 28,6% do orçamento do governo federal, instituindo na prática o semiparlamentarismo.

Ainda que com o veto de R$ 5,6 bilhões, a fatia do orçamento “amarrada” por emendas parlamentares chega em 2024 a R$ 53 bilhões. Mesmo em repúblicas parlamentaristas essa intromissão do legislativo em assuntos do executivo não chega a tanto. É uma exorbitância que viola o princípio da moralidade. Especialistas ouvidos pelo jornal O Globo consideram que “o nível de ingerência do Congresso brasileiro sobre os gastos públicos não tem paralelo no mundo”. Dizem que “além de dificultar o equilíbrio fiscal, isso afasta os gastos federais das políticas prioritárias definidas pelos ministérios e reduz a transparência e a fiscalização da aplicação do que é arrecadado em impostos”.

Quando, em 1995, o ministério da Saúde lançou o slogan o Ministério da Saúde adverte…, impresso em cartazes e maços de cigarro, acompanhados de imagens assustadoras, como bordão de uma muitíssimo bem-sucedida campanha antitabagista, não se poderia imaginar que a frase faria tanto sucesso e passaria a ser usada nas mais variadas situações, sempre que se quer advertir sobre algo negativo.

A implicância obsessiva de Arthur Lira com a ministra Nísia Trindade requer, mais uma vez, o uso do bordão que já é um clássico, pois não é exagero afirmar: “O Ministério da Saúde adverte: o deputado Arthur Lira faz mal à saúde”.

*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica). [https://amzn.to/46jNCjR]


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