Por ISMAIL XAVIER*
Considerações sobre o filme de Glauber Rocha
O teatro e a literatura brasileiros apresentam uma forte tradição de textos voltados para a representação da decadência, no sentido econômico ou moral, de determinadas oligarquias rurais sob o efeito geral da modernização do país em seus diferentes estágios. Há, por exemplo, a crônica do declínio de um estilo de vida ligado ao sistema açucareiro do Nordeste, tema que notabilizou um autor como José Lins do Rego; e há a crônica da dissolução precoce das aspirações aristocráticas dos barões do café, focalizados satiricamente no modernismo de Oswald de Andrade.
Em outro tom, no teatro de Jorge Andrade, a classe alta da economia de café é alvo de uma anatomia mais de tipo sociológico e, na mesma época, Abílio Pereira de Almeida, autor teatral que trabalhou na Vera Cruz como roteirista e ator, trouxe para o cinema a questão da decadência das famílias proprietárias de fazendas em certas regiões do interior de São Paulo – ver especialmente Terra é sempre terra (1952), dirigido por Tom Payne com roteiro de Abílio[i]. Além da cultura do Nordeste e do complexo cafeeiro do Sudeste, a zona do cacau, no sul da Bahia, e o interior de Minas Gerais também produziram material para essa ficção voltada para a crônica da decadência.
Jorge Amado tematizou o mundo do cacau em vários livros, dos quais Terras do sem fim tem clara incidência em Os deuses e os mortos, realizado por Ruy Guerra em 1970.[ii] Regiões estagnadas do interior mineiro ganharam uma representação entre o trágico e o melodramático na lida com a decadência familiar no romance de Lúcio Cardoso, A crônica da casa assassinada, adaptado por Paulo Cesar Saraceni no filme A casa assassinada (1971).
Os exemplos citados sugerem o interesse dos cineastas nesta tendência recorrente da ficção literária e, observando a filmografia, pode-se dizer que o diálogo com a literatura e o teatro, sob o signo da representação da decadência, teve seu momento de maior densidade entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1980. O cinema brasileiro moderno apresenta muitos exemplos desse interesse por tal tipo de experiência familiar ou social e, ao lado de títulos referidos acima, há que se lembrar toda a série de filmes baseados em Nelson Rodrigues entre 1972 e 1980, além da presença do tema da decadência em trabalhos não propriamente apoiados na adaptação literária, como Os herdeiros (1969), de Carlos Diegues, A culpa (1971), de Domingos de Oliveira, Pecado mortal (1970), de Miguel Faria Junior, e Crônica de um industrial (1976), de Luiz Rosemberg, entre outros filmes que marcam a incidência da tradição teatral na elaboração de seus universos ficcionais e em suas formas de encenação.
Quando digo “momento de maior densidade”, considero o fato de a relação do cinema com o tema da decadência familiar ou regional, presente de forma significativa na Vera Cruz, se instala, em verdade, desde o período do cinema mudo. Já havia claros sinais de melancolia pelo que está em vias de se dissolver na forma como Humberto Mauro, já nos anos 20, tratava o mundo das fazendas, especialmente em Sangue mineiro (1929), e esta melancolia mauriana também não deixou de incidir sobre os filmes que realizou no período do Estado Novo, de modo a imprimir uma tintura de nostalgia arcaizante em trabalhos que respondiam a uma demanda do Poder interessado em representações mais positivas da nação e de suas esperanças progressistas.[iii]
Ao lado disto, o próprio Cinema Novo, ainda em meados dos anos 1960, deu relativa atenção a este mundo em dissolução, adaptando José Lins – Menino de engenho (1965), de Walter Lima Junior – e criando uma narrativa com um clima crepuscular para traduzir o poema de Drummond no filme O padre e a moça (1966), de Joaquim Pedro. No entanto, a tônica daquele período eram filmes mais voltados para a dramatização de problemas sociais, inventário das condições do oprimido e de sua resistência na história brasileira, não havendo muito espaço para a composição de rituais em “laboratório fechado”, com nítida inclinação para processos de dissolução, que passamos a ver a partir do final da década.
Sim, porque foi no período que se inicia após o AI-5, de 13 de dezembro de 1968, que o cinema brasileiro tornou tais questões mais freqüentes nas telas, de modo a transformar o tema da decadência num traço marcante da produção, quando Cinema Novo e Cinema Marginal partilharam um diagnóstico pessimista da nação, observando os aspectos da experiência brasileira capazes de evidenciar processos de perda, deterioração, morte.[iv]
Seja na observação das famílias tradicionais, seja na observação da invasão da natureza brasileira – em particular a Amazônia –, seja na definição dos destinos de migrantes pobres que se dirigem à cidade para enfrentar a degradação ou o aniquilamento, o cinema brasileiro lidou com este sentimento de transição para o pior vivido por uma personagem ou por uma classe, compondo um quadro dentro do qual a dimensão alegórica de A idade da terra (1980) ganha maior expressão.
De um lado, ao contrário dos filmes que o antecedem, este não se detém em decadências localizadas, referidas a experiências sociais bem precisas. Na sua tônica, Glauber Rocha totaliza, e sua representação das elites busca certa generalidade, nacional e global, própria ao seu alegorismo. Deste modo, ele amplifica o que já se anunciou na figura de Fuentes em Terra em transe, no eixo da moralidade, e se inscreve na tradição, presente na literatura e no cinema, que associa decadência de classe com deterioração dos costumes, exacerbação hedonista, vícios alimentados pelo luxo, enfraquecimento das novas gerações catalisado pelo caráter vil das figuras da autoridade. Lembro esta particularidade porque as representações de processos de decadência nem sempre exigem percursos de dissolução moral, e filmes podem desenhar um espaço nacional marcado por trajetos de dissolução de práticas e traços de cultura, seja na esfera de uma classe, de uma região ou de um “tipo característico”, sem retomar tais clichês.
É o que acontece, por exemplo, em filmes realizados em 1980, praticamente contemporâneos de A idade da terra, como Bye bye Brasil, de Carlos Diegues, e O gigante da América, de Julio Bressane. Cada qual em seu estilo, estes dois filmes travam um diálogo com o filme de Glauber porque colocam em pauta o Brasil como um todo, fazem itinerários voltados para um diagnóstico geral, numa tônica diferente, porém com a mesma postura inventariante. Narrativa mais convencional Bye bye Brasil define uma itinerância pelo território nacional apta a nos trazer imagens e dramas variados de um Brasil em vias de extinção.
Filme experimental, O gigante da América não compõe o seu inventário percorrendo uma geografia, mas viaja pelo imaginário da cultura brasileira, notadamente de um cinema que acumulou palcos arruinados de uma travessia que, no filme, ganha ancoragem na figura do herói-malandro, protagonista de episódios que não chegam a termo, sujeito de um recomeço reiterado que tem como desfecho uma aposentadoria melancólica à beira da praia.
O filme de Carlos Diegues refaz o caminho da Amazônia a Brasília para testemunhar a dissolução de um Brasil rural atingido por transformações econômicas e pela mídia eletrônica, acompanhando a caravana Rolidei que reúne as mentalidades de duas gerações de artistas ambulantes que, embora mais atrelados ao país do circo, do cinema modesto da pequena cidade e do imaginário anterior à TV, acabam por demonstrar disponibilidade para os sincretismos da vida cultural pós-moderna. Esta não aparece propriamente como um mar de corrupção e dissolução moral, e a passagem do que é obsoleto para o que já tem um pé no futuro se apresenta como fato a constatar sem maiores especulações.
A decadência econômica e profissional de grupos modestos e pobres que dependem de práticas condenadas pela modernização funciona como metáfora para o próprio cinema brasileiro, suas vicissitudes e reiteradas crises. No entanto, à exceção da imagem patética do grupo mais aniquilado pela ordem das coisas – os indígenas que se apresentam imóveis e derrotados diante das coisas – os indígenas que se apresentam imóveis e derrotados diante das câmaras – tudo o mais se tempera com um toque de bom humor, e as melancolias partilhadas, entre cineasta e desempregados, se desdobra numa despedida dos projetos nacionais condenados que cuida de evitar o tom resignado e convida a um pragmatismo sem ressentimentos e voltado para o futuro.
O inventário das efemeridades nacionais feito em O gigante da América envolve a ideia de incursão por algo equivalente a um penetrável de Oiticica, cujo interior vai revelando uma memória de cenários do cinema e suas experiências truncadas, suas promessas não cumpridas que Bressane insere numa reflexão sobre a cultura que retoma o seu experimentalismo, acentuando os traços mais característicos de um trajeto que, neste particular, marca uma convergência decisiva com A idade da terra: há em ambos a montagem descontínua a compor um mosaico de situações trabalhadas como blocos independentes, com frágil concatenação narrativa, de modo a ressaltar o corpo a corpo entre câmara e mundo, movimentos do olhar voltados para uma exploração ininterrupta da textura das coisas, sejam corpos, objetos ou a própria luz.[v]
O gigante da América atualiza, em fragmentos, percursos variados do cinema, do gigantismo da superprodução kitsch, à Griffith ou Cecil B. de Mille, ao perfil em “arte menor” da chanchada brasileira, mundos imaginários que se pautaram por intersecções inesperadas – como o próprio filme de Bressane, com sua mistura de exotismo, história do cinema e evocações da poesia maior (Dante), uma descida aos infernos que desemboca num show de variedades. No centro de uma possível narrativa, ou de uma viagem em torno do imaginário, o herói-malandro-melancólico faz a travessia dos cenários cariocas e fluminenses que tanto pode incorporar a angústia que evoca Limite, com seu estilo característico, quanto à palavra burlesca da comédia erótica. Tal herói se encarna em Jece Valadão, uma figura-símbolo das intersecções do cinema brasileiro: o favelado de Rio 40 graus, o cafajeste, o Boca de Ouro, o machão do filme erótico e Cristo ameríndio de A idade da terra.
Tais inventários que tematizam, com um misto de ironia e melancolia, o cinema perdido e o país desmontado, exploram terrenos que evidenciam sinais corrosivos da história, a presença do tempo como erosão, dado que o filme de Glauber repõe com ênfase, mas mudando o ponto de vista. Pois a sua reação diante de um contexto em que se acumulam histórias centradas em transições para pior é de tentar recuperar um impulso utópico que alimentara seus filmes no início dos anos 1960. Trata, portanto, de tornar abundantes as imagens contrastantes cuja função é evidenciar uma nova intensidade em ebulição, força emergente que se destina a expulsar e tomar o lugar do que decai. Seu olhar para a decadência se concentra na desejada queda do Ouro e não há o que lamentar nas mortes que o filme anuncia.
Por isso mesmo, sua energia maior se dirige à tarefa de tornar visíveis promessas que, para um olhar cético não passariam de hipóteses. A idade da terra, neste sentido, condena à morte a elite mundial que detesta, trazendo como antídoto um inventário das manifestações populares que compõem o espaço da dignidade e da vitalidade. Em seu impulso totalizante, ele precisa desta oposição, de modo a associar o lado negativo do presente a algo que parece agonizar, mesmo que tal agonia só se faça ver a partir do ângulo da moralidade e dos clichês que colam a ideia de decadência nos corpos e permitem se tomar o eixo da sensualidade como a baliza divisória entre dois terrenos estéticos bem demarcados: o do sublime (popular) e do grotesco (burguesia).
Tal operação, já esboçada em O dragão da maldade contra o santo guerreiro, perpassa os filmes feitos por Glauber no exterior, desde a feição grotesca dos colonizadores em O leão de sete cabeças (1970) até o ritual de parricídio e corrosão familiar da elite romana em Claro (1975), passando pela enlameada decadência de Diaz no exílio, em Cabeças Cortadas (1970). Os anos 1970 foram compondo um quadro de deterioração das elites e uma exacerbação do gosto do cineasta pelas grandes pinceladas que terminaram por receber articulações bem distintas daquelas evidenciadas nos filmes feitos no Brasil nos anos 1960.
Minhas observações sobre A idade da terra visam ajudar a compreender esta faceta do “grande teatro”, cósmico e barroco, que Glauber montou em seu último ato, parte como resultado de uma lógica interna de sua obra, parte como resposta a demandas trazidas pela sua posição frente ao cenário político brasileiro, uma vez que sua desconfiança diante de soluções liberais e civilistas não favorecia um envolvimento com as questões da redemocratização, da anistia e das mobilizações de classe que eram então decisivas no encaminhamento do futuro imediato da política nacional.
Reiterando o que foi uma tendência de suas alegorias, Glauber preferiu olhar para os sinais de esperança de longo prazo, e sua maneira de se relacionar com a história, enquanto história mundial exigiu a mediação das grandes matrizes teóricas. Sua crítica aos poderosos do presente terminou por se pautar pela categoria da decadência entendida dentro de uma lógica muito especial, aquela que lhe oferecia ao mesmo tempo uma saída, o afastando de estilo de observação assumido pelos outros cineastas cuja representação de experiências bem localizadas não implicava na colocação de perguntas tão universais sobre o destino da humanidade.
Segundo Julien Freund, a noção da decadência se aplica, em sua forma geral, a toda e qualquer formação social ou cultura que se mostra incapaz de repor as condições de sua existência, seus pressupostos em termos de valores. Para que se construa um conceito de decadência é necessário que se tome como premissa a ideia de um movimento presente na sociedade e se tome a oposição progresso-decadência como um par antitético que envolve nações interdependentes, com a diferença de que “progresso” se refere ao polo ascendente da mudança, enquanto que “decadência” se refere àquela fração da sociedade que se torna incapaz de repor as premissas de sua existência e é empurrada para a periferia, perdendo sua posição, poder, regalias.[vi]
Jacques Le Goff nos lembra o quanto a noção está comprometida, em sua formação (mais cristã do que grego-latina), com a ideia de corrupção moral, pecado e subseqüente castigo, nos termos da analogia com a primeira queda da humanidade. Mesmo antes da estabilização do termo “decadência” na era cristã, os gregos, embora não tivessem termo equivalente, expunham suas observações sobre processos de dissolução e declínio na mesma chave da corrupção dos costumes, vícios engendrados pelo luxo, traços de um hedonismo desenfreado que relaxaria a disciplina. Enfim, os traços que, mais tarde, seriam vistos como responsáveis pela corrosão interna do Império Romano. Esta é uma constelação de ideias que, para bem ou para mal, tenderam a permanecer na história, mesmo quando outros aspectos do fenômeno da decadência se tornaram igualmente relevantes, como a queda dos regimes (de natureza política) ou a decadência de classe, correlata ao esgotamento de sistemas econômicos.
Na tradição ficcional que me interessa aqui, a tendência não foi a de um alinhamento incondicional às ideias de progresso e modernização, associado à visão crítica daqueles que, em princípio, resistem ao imperativo da mudança e são incapazes de uma “adaptação” aos novos tempos que solapam seus princípios e os fazem mergulhar numa queda observada com sarcasmo. O esquema foi mais sutil e envolveu, desde Oswald de Andrade, uma visão mais nuançada do avanço técnico-econômico. Se este é tomado como eixo maior porque efetivamente sua vocação é de consolidação e expansão, por força da ordem capitalista, isto não impediu os autores de observarem tal imperativo em sua ambivalência-cristalizada no processo de “destruição construtiva” e em seu compromisso com as invasões descontroladas e predatórias.
Deste modo, a literatura e o cinema não tenderam a compor a imagem dos setores sociais e dos traços de cultura que sucumbem à mudança apenas a partir de uma ideia de sua iniqüidade ou desvalor, mas também a partir do lado, digamos lamentável, de sua derrota em função de uma diferença ou de uma virtude aí contida. Tal é o caso das elegias a mundos em extinção cuja versão mais nobre tem sido a reiterada incorporação das culturas indígenas como emblemas de uma identidade condenada pela expansão do capital. Filmes como Brasil ano 2000 (Walter Lima Jr, 1969), Uirá (Gustavo Dahl, 1974), Ajuricaba (Oswaldo Caldeira, 1977), Mato Eles? (Sergio Bianchi, 1983) e Capitalismo selvagem (André Klotzel, 1993) são exemplos, variados no estilo e nos propósitos, desta vertente da produção que toma o progresso como violência e trabalha o dilaceramento do índio em meio a um mundo que destrói suas referências.
Num outro polo, há a representação da agonia de setores da elite branca, os filhos dos colonizadores, centrada em regiões que já viveram melhores tempos dentro dos ciclos econômicos, mas sofreram uma deterioração gerada pelo isolamento, pela estagnação que transformou famílias rurais em autarquias distantes dos pólos dinâmicos da vida social, autarquias bastante vulneráveis ao ataque do polo moderno, em geral figurado como invasão que põe o agente corrosivo dentro da Casa – em geral uma mulher vinda da cidade – cuja presença precipita uma dissolução já em andamento.
Neste caso, podemos ter uma representação que oscila entre o elogio e a crítica ao mundo arcaico desvitalizado, e o ficcionista faz um balanço detalhado de suas condições, suas formas de resistência. Seu objetivo é acentuar os dramas, observar a queda “de dentro”, atenta à feição particular de um “estilo de vida” que dá testemunho de fenômenos sociais mais amplos e permite projeções para uma escala universal por meio de estratégias alegóricas. A crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, é um exemplo de tal tipo de representação que acentua fatalidades, exacerbações de sentimentos, gestos extremos de figuras ressentidas e já voltadas para o lado mais destrutivo das paixões, grupo que se fecha em laboratório e observa o mundo externo com hostilidade de modo a contribuir para que tudo se desdobre em desastres domésticos sem maior ressonância externa.
Aí a queda se desenha de um ponto de vista não aderente à festa do progresso e que, portanto, não pode assumir a experiência dos derrotados como comédia, nem celebrar a invasão do novo como um caminho de salvação, atentando mais para o estilo de vida elaborado no seio da decadência, quase sempre voltado para uma forma de estetização do inevitável.[vii] Traduzindo o romance, o filme de Saraceni teve enorme desafio na adaptação de uma narrativa alentada, complexa em seu olhar para a crise familiar, narrativa cujo efeito se ancora na força do estilo do escritor ao desenhar os melodramas a partir dos movimentos das subjetividades envolvidas, ponto maior de interesse na anatomia do processo.
A procura de um olhar interno dirigido à decadência se exercita em outros filmes do período, dentro de outras tonalidades, seja em São Bernardo (Leon Hirszman, 1972), seja em Joana, a francesa (Carlos Diegues, 1973), além das obras já citadas acima. Tal movimento, confirmando aquela tendência a acentuar a corrupção dos costumes, a crise da família, o mergulho nos desregramentos e transgressões incestuosas, colocou o cinema brasileiro na trilha de processos de decomposição que procurou representar a partir da vida doméstica e, nos casos de exacerbação do grotesco, a partir do que se fez visível nos corpos, com a exceção de Leon Hirszman cuja tradução de Graciliano Ramos implicou o direcionamento do olhar para um mundo ascético, alheio ao hedonismo e à curtição do luxo próprio aos contextos do declínio.
Em geral, a motivação política do mergulho do cinema na decomposição favoreceu um tipo de laboratório ficcional onde sexo e violência tenderam a convergir como figuras da dominação de classe e ensejaram espetáculos deliberadamente agressivos. Às vezes, o objetivo de tais espetáculos – como acontece em A crônica de um industrial (1978), de Luiz Rosemberg Filho – foi a anatomia do fracasso de uma burguesia que, mesmo quando aparentemente progressista e industrial, se enredou em estratagemas que traem princípios mas garantem o poder e o comando de um sistema montado em cima da violência e do sacrifício dos jovens numa ditadura militar, violência que Rosemberg trabalhou na chave de um “teatro da crueldade” que, por sua vez, dialogava com a postura agressiva do Teatro Oficina na montagem de rituais que se tornaram mais dramáticos e desconfortáveis depois do fase mais satírica de O rei da vela (1967) e Rodovia (1968).
A resposta alegórica aos tempos sombrios gerou a agressividade e, às vezes, o sarcasmo dirigido às elites ou às classes médias, numa ampla investida contra a política das famílias. Numa tônica mais satírica do que o sério-dramático de Rosemberg, muito do que vemos no cinema lembra, em alguns casos por filiação direta, aquela postura a que o Oficina deu início com encenação de O rei da vela, principalmente na performance do segundo ato. Claro que o ponto de partida é o texto e a postura de Oswald de Andrade que esperaram desde os anos 1930 para encontrar tradução em cena, mas vale destacar o quanto a iconografia e a gestualidade ativadas na montagem deste ato da peça figuram como matriz de muitas representações da elite encontradas no cinema, onde a comédia de classe se fez pela exploração do lado grotesco de uma galeria de perversões sexuais – os tipos excêntricos da família de Heloysa de Lesbos – tomadas como sintoma da crise.
Corpos ridículos, e gestos não menos, são projetados num teatro de revista que representa a dissolução dos pressupostos do mundo patriarcal dentro da tradição a que aludi – a do ataque pelo flanco moral. É como se o caráter abstrato e a “invisibilidade” da crise propriamente econômica solicitasse esta iluminação peculiar da esfera doméstica dos poderosos, seja para destacar obsessões, práticas corruptas, desordem amorosa, seja para tomar o cinismo escancarado, o deboche e a auto-depreciação como traços visíveis da falta de consciência de uma classe em sua cegueira diante da distância entre suas aspirações e sua performance.
Desde a encenação de O rei da vela, a tônica da “espinafração” ganhou força no cinema, onde a sexualidade se tornou objeto de um olhar “clínico” que subverte o decoro e se ajusta ao projeto estético de uma cultura jovem disposta a uma revanche diante das classes responsabilizadas pelo regime autoritário, seja através das adaptações de Nelson Rodrigues, seja em radicalizações da patologia do grupo familiar, como em Os monstros do Babaloo (1970), de Eliseu Visconti.
Este é um modo de observar as classes dominantes que vemos retomados em A idade da terra, mas condensado e como que posto em suspensão, pois Glauber tinha de expor, para efeito de sua filosofia da história, o oposto-correlato, ou seja, o mundo de ascensão e vitalidade capaz de sugerir alguma boa nova numa conjuntura histórica que efetivamente o sufocava. E esta oposição entre degenerescência (dos de cima) e regeneração (vinda de baixo) inscreveu a experiência contemporânea num grande plano, terminado por repor, à letra, o paradigma maior da própria formulação da ideia da decadência dentro da tradição historiográfica: a queda do Império Romano e a emergência do cristianismo como religião popular na periferia da ordem mundial. A iconografia da corrosão do poder reencontra, com Glauber, a sua formulação de origem e sua base religiosa.
O painel da vida brasileira – festas populares onde desfilam os sincretismos e as etnias formadoras do que é vida no país – se insere no grande teatro em que figuras alegóricas repõem episódios da vida de Cristo – aqui um Cristo multiplicado, branco, negro, índio – e episódios da vida política Romana, numa alusão à grande transição na história do Ocidente. Considerados a energia das festas, os comentários de Glauber e o retrato da decadência, fica a sugestão de que se pode olhar para a crise do mundo moderno nos moldes da crise antiga, fazendo a analogia entre os dois tempos na base de um paradigma que articula a crise moral do poder à expansão de um movimento religioso a partir da periferia do sistema. Não há propriamente uma narrativa a compor tal cenário, mas um conjunto de episódios esparsos deixa clara a semelhança, inclusive visual e discursiva, entre as figuras que estão no centro do teatro de A idade da terra e figuras célebres da Antiguidade.
A viagem de Brahms ao Brasil – eixo do resíduo de narrativa – é a ocasião para que ele exiba a decadência familiar, o sexo neurótico, a demagogia cínica, e a tristeza pessoal de um Nero por detrás do seu hedonismo e do seu falso cabelo loiro, tão artificial como tudo o mais em torno da mulher que o acompanha, espécie de cortesã atraída pelo poder. Brahms é caricato, predador, um verdadeiro câncer a se expandir pelo território. Seu filho, supostamente rebelde, desfila uma grotesca figura de punk-indígena, importante diante dos jogos de poder e das humilhações vindas do teatro sádico da madrasta debochada. Ironicamente, Geraldo del Rey, o Manuel de Deus e o diabo, faz o papel, e sua inadequação etária ao tipo confirma a ausência de promessas que cerca a sua figura. Não parece dar consistência nem mesmo à delegação de tarefa expressa em sua última declaração, no final do filme: “o povo tome o seu lugar”.
Na esteira de outros jovens do cinema brasileiro, ele é incapaz de uma relação efetiva com a amante do pai, compõe uma personagem patética que cristaliza, de novo, o sintoma da decadência. Seus momentos de “conquista da palavra” são um arremedo de libertação, tal como na galeria de tipos de nova geração que teatro e cinema lançaram no impasse, na apatia alimentada pela mistura de ressentimento e incapacidade para a revolta ou para superação da figura paterna. Há algo nele de equivalente ao que vemos nos jovens de Arnaldo Jabor dos anos 1970, ou em filmes como Os herdeiros, onde é patente o esquema pelo qual o mais jovem, dotado de pretensa modernidade, falha no seu movimento de afirmação e, muitas vezes, se mostra uma flor de estufa sem a fibra necessária para os enfrentamentos exigidos pela sua ambição.
A anatomia moral da decadência e as inspirações bíblicas de Glauber marcam seu tratamento da sexualidade desregrada desde Terra em transe, onde as orgias comandadas por Fuentes compõem uma via de desqualificação da burguesia antes mesmo de sua traição ao movimento nacional-popular. Em O dragão da maldade contra o santo guerreiro, ele observa que o problema da decadência já atingiu os coronéis do sertão, cuja vinda se vê cercada de uma desordem amorosa que põe no centro a figura da femme fatale vinda da cidade. Os processos de corrosão são identificados com o arremedo de modernização que é também decadência precoce do universo que o cineasta observa.
Aponta-se aí o conflito entre o sublime e o grotesco que vai se amplificando até chegarmos a A idade da terra, terreno de uma guerra total da vida contra a morte a definir os destinos da humanidade. A desqualificação do poder no eixo da moralidade atinge, em 1980, o ponto adequado para a incorporação da iconografia da decadência do Império. Esta se corporifica num teatro que lembra o que vemos em Othon (1969), de Jean-Marie Straub, quando ele encena a tragédia de Corneille em pleno centro da Roma moderna, contrastando os trajes da Roma Antiga com o burburinho da cidade moderna, sugerindo a conexão entre uma coisa e outra, mas deixando a interrogação pelo enunciado político implicado na rigorosa mise-en-scène e nesta superposição dos tempos históricos.
A diferença, em Glauber, é que a armadura alegórica se faz mais nítida, de modo a explicitar o eixo da analogia. E o presente nacional ganha um diagnóstico capaz de inseri-lo num perfil da história mundial, mas de modo tal que termina por pagar o preço de uma generalidade excessiva. Há, sem dúvida, alguma especificação na figura do homem branco de boas maneiras como peça da coleção glauberiana dos políticos hesitantes, potenciais traidores; aqui, tal figura expõe seus temores diante de um “abalo cósmico” que leva a sério, talvez porque esteja mais próximo do ethos religioso coletivo e, ao contrário do imperialista, não pode olhar tudo em volta com um ar de deboche.
Esta referência local, no entanto, é apenas uma mediação para que o paradigma do Cristo se desenhe num horizonte de salvação multinacional diante de questões que têm escala planetária. Como num teatro medieval, Brahms se apresenta ao publico como encarnação do demônio, proclamando sua missão de destruir o planeta, numa imagem em que se destacam o globo terrestre e um aparelho de TV. Ele é o Anti-Cristo que dispensa a especificação das tramas políticas, dos movimentos sociais, das lutas de classe; figura que, pelo desgaste do paradigma, termina por atrofiar o que, em A idade da terra, é observação lúcida do contemporâneo enquanto espaço de dissolução das fronteiras e emergência de novos focos de alinhamento político. Embora haja um território nacional como cenário da peregrinação do filme, este não parece conter os dados essenciais do jogo.
Eu disse “termina por atrofiar” em função dos desníveis gerados pela analogia, a começar pelo tratamento das figuras que compõem o teatro do poder. De um lado, desenha-se a personificação da elite local interpretada por Tarcísio Meira como porta-voz de uma noção do nacional já instituído pela tradição que ele representa, dado que não lhe traz problemas ao compor o conglomerado que habita o território como “comunidade imaginada” (noção cunhada por Benedict Anderson para pensar o estatuto da nação na história moderna).[viii] De outro, contraposta à nação de “Tarcísio”, prevalece no filme a sugestão de que “comunidade imaginada” é algo para construir e a promessa de tal construção se encontra na esfera do popular. A atrofia do esquema começa quando a analogia evangélica e o paradigma cristão associam a ideia de uma comunidade futura à reposição de um princípio de unidade conceituado exclusivamente a partir de uma forma de coesão, curiosamente pré e não pós-nacional gerada desta luta contra o Anti-Cristo.
Projeta-se sobre tudo a tônica essencialmente religiosa, pois não é outro o principio da união que se vislumbra a partir da constelação visível de experiências. Nesta ambiguidade, entre a moldura nacional e a religião planetária, o filme consegue especificar de forma mais interessante suas ironias quando trata da figura de “Tarcísio” que, embora menos presente no filme, ganha maior rendimento em suas intervenções do que Brahms, o representante do Império e a encarnação do mal.
O percurso do americano grotesco no Brasil envolve algumas cenas em Brasília, com a perambulação por locais simbólicos, e no Rio de Janeiro, quando então sua figura imperial é vista no desfile das Escolas, no Maracanã, na Lagoa Rodrigo de Freitas, na escadaria da Biblioteca Nacional, local em que “Tarcísio” passa por ele e grita “não vá ao Senado” em alusão à morte de César nos tempos romanos que, em verdade, ele encarna em sua feição mais decadente, objeto e ao mesmo tempo sujeito ativo de um deboche escancarado. “Tarcísio” solicita uma ironia mais sutil, pois sua figura encerra tensões que não escapam ao olhar crítico que o filme dirige.
Enquanto a cafonice de Brahms mostra, de saída, sua alteridade de gestos frente ao carnaval e à festa popular (ele não é carnavalesco, embora seja, na forma de representação, carnavalizado), “Tarcísio” tem uma relação mais ambivalente, digamos assim, com o popular, um pouco como figura tutelar na tradição de um paternalismo que o filme parodia. Ele é o senhor que intui ameaças, mesmo quando estas não se traduzem em ação política direta, e vaticina o apocalipse em proclamações histéricas sobre a “cloaca do universo” e as “estruturas abaladas”, revelando-se uma versão insegura, já não tão convicta, de uma classe dominante que aprendeu seus limites internos e externos (destes, a figura de Brahms dá testemunho).
Para interpretar tal figura, Glauber escolheu um ator associado ao mundo da telenovela. E seu gesto e aparência, contrastando com o comportamento obsceno do imperialista, trazem um registro mais elaborado, capaz de em poucas cenas condensar a ideia do branco, descendente dos colonizadores da terra, que está no topo da pirâmide local, mas depende de Brahms. Sua tensão mais peculiar, porém, não se define na impossibilidade de atender ao apelo “mate Brahms”; ela provém de sua condição de figura a meio caminho, parte integrante desse mundo dos trópicos que desfila na tela, mas trazendo os sinais de sua alteridade diante da festa popular e do tecido de rituais que carregam aquele fundo religioso ecumênico tantas vezes celebrado no cinema de Glauber como a fonte maior da energia transformadora do Terceiro Mundo.
Em sua primeira aparição, o branco civilizado está lá em pleno carnaval, em meio aos figurantes da Escola de Samba que se prepara para entrar na avenida, parecendo supervisionar o samba (como presença fiscalizadora, não como executor de tarefas ligadas à performance propriamente dita). No meio dos sambistas, ele, quando visto mais de longe, parece estar à vontade – aquele mundo lhe pertence. Mais de perto, em close-up, percebe-se que o seu sorriso procura disfarçar um esgar, uma tensão no rosto que repuxa a boca. Tal rigidez trai uma força interior em dissonância com o ritmo que seu corpo parece discretamente acompanhar. Sua postura lembra o que já vimos na expressão de Vieira nos momentos de autoconsciência que o fazem recuar de seu teatro nos comícios de Terra em transe.
O tremor do rosto de “Tarcísio” diz muito claramente sua condição de figura cindida, dual em seu cerne. Pertence ao tecido social e não pertence; está no centro aparente do poder, mas olha para o mundo que o cerca como alguém que reconhece, no canto da consciência, sua exterioridade. Como figura que “sobra”, ele intui sua vulnerabilidade, o que torna mais intenso seu teatro de celebração das conquistas dos ancestrais entendidas como construção da unidade nacional, parte de uma tradição local que prevalece sobre todos os seres que estão ao alcance do olhar e que, a seu ver, trabalham e dançam como seus súditos, valendo a ordem que emana de sua presença como herdeiro dos patronos da Independência. No início, sua figura dissonante, porém assimilada em meio ao sambista já tem efeito extraordinário, mas outra seqüência para mais perto do final do filme resume de forma magistral sua auto-imagem e as condições dentro das quais ela se mostra necessária.
Trata-se do plano-sequência do Amarelinho, o bar no centro do Rio de Janeiro. Parecendo mais à vontade do que em outros momentos, Tarcísio Meira está sentado ao lado de Danuza Leão e cercado do “povo” que acompanha diegeticamente sua fala de estadista, concretamente a própria filmagem, como dóceis figuras curiosas que não se movem enquanto o ator repete a mesma fala várias vezes, com diferentes entonações. Sua recapitulação do papel das elites (“nós” fizemos isto e aquilo) evoca a história do Brasil – Independência, República – e seu elogio à sua classe, pela repetição da fala e pelo seu tom cada vez mais contaminado por uma ironia involuntária, resulta ao contrário, produzindo um esvaziamento que vem arrematar o que o espectador já percebeu em suas tensões diante da festa e em sua fraqueza diante de Brahms.
A teatralidade nobre de Paulo Autran se mostrou fundamentalmente para compor a máscara grotesca de um autoritarismo patriarcal, racista e excludente em Terra em transe, quando seguíamos um homem que falava em público. Em A idade da terra, o esquema inverso exige um ator com outra história, e Tarcísio, falando em público como quem fala para si mesmo, traz aquele misto de convicção e canastrice de alguém acostumado à eloqüência em surdina da telenovela, compondo a máscara perfeita da retórica de bacharel dono de escravos, aí desconstruída por esse jogo de repetição e diferença.
Jogo que a montagem reitera ao longo do filme, seja quando a “cortesã”, de nome Maria Madalena, o incita, como Lady Macbeth, a matar o americano, seja em suas proclamações de fim de mundo em plena Baia de Guanabara. Quando chegamos no Amarelinho, tudo está pronto para a nossa divertida recepção da cena que, como dentro do filme, vale mais como exemplo de composição lúcida de tableaux independentes, destes cuja força exalta a obra, do que como elo de uma articulação bem resolvida.
Abrigando cenas antológicas como esta, A idade da terra se apóia, acima de tudo, numa intensidade pontual, seja no teatro das elites, seja em sua exposição do Brasil das festas populares que expressa a fé do cineasta na redenção da humanidade num momento em que as esperanças contidas no processo de descolonização ou de liberação nacional já estavam em crise, pelo menos naquela acepção que havia marcado as utopias dos anos 1960-70. Mas Glauber confia na beleza da festa religiosa ou do carnaval, entendido como oposição popular a uma pulsão de morte encarnada nas elites, e a associa claramente a um desejo de unidade, sentimento oceânico e comunitário que se promete – talvez seja melhor dizer, que se postula no filme. O cineasta está ciente que os rituais sincréticos, embora pelas próprias sobreposições tragam uma inscrição do tempo e atestem resistência, não sustentam tais projeções histórico-revolucionárias apenas pelo teor de sua experiência concreta ou de sua face visível.
E o discurso sobre os caminhos da história pede o suplemento da própria fala do cineasta, em voz over, cuja locução não deixa esboçar, mesmo na angústia e no atropelo da sintaxe, uma “narrativa mestra” que a textura mesma do que se vê e se ouve não comporta. Aqui, a ameaça de dispersão é conjurada pela autoridade da voz do cineasta, na ausência de articulações capazes de fazer o teatro barroco do Poder, os fragmentos evangélicos e os rituais afro-brasileiros interagirem concretamente, a par da analogia já comentada. As tensões próprias ao estilo de Glauber parecem, em A idade da terra, ultrapassar o limite dentro do qual tal interação poderia ganhar maior especificidade.
Nos anos sessenta, Glauber inventou seu extraordinário estilo ao combinar um espaço dramático ritualizado – lugar das esquematizações políticas nos moldes de um teatro barroco – com a profusão de movimentos em câmera-na-mão, montagem descontínua e trilha sonora agressiva, elementos aptos a criar a pulsação original que marcou seu cinema. Performances teatrais escancaradas eram observadas por uma câmara em estilo de reportagem, esta forma do olhar que se dramatiza ao se debater com a riqueza dos eventos diante da objetiva, como se os acontecimentos que compusessem a narrativa não fossem ainda do domínio do narrador.
O confronto entre olhar táctil – a interrogar o rosto, as mãos e a superfície dos objetos – e o grande cerimonial dos atores era uma característica formal que traduzia de modo expressivo as tensões entre impulsos contraditórios, como é próprio do barroco: o movimento rumo à abstração, com suas imagens conceitualizadas, e o mergulho no mundo sensível, com seu desejo de tudo incluir no corpo a corpo com os detalhes de cada experiência. Esta contradição encontrou em Terra em transe uma resolução extraordinária, mas já anunciava o fosso existente entre esperança, típica ao primeiro momento de paixão pela história que se cristalizou numa expectativa de mudanças urgentes, e o desencanto. A partir de então, o sentido da paixão se configurou a partir daí como um padecimento da história, logo expresso no nível do estilo, como acontece com todo grande artista.
Houve, no percurso de Glauber, o lance inicial do primado da narrativa, em Deus e o diabo, cuja alegoria fechou o espaço do sertão para afirmar, ali mesmo, uma ordem do tempo teleologicamente estruturada nos tempos do alegorismo figural de raízes cristãs. Depois, a crise da história se expressou no drama barroco, plenamente benjaminiano de Terra em transe, onde o tempo era corrosão, queda, decepção. Em outra chave, esta crise se reiterou em O dragão da maldade, filme em que o teatro pedagógico da revolução, com sua teleologia, e as circularidades do mito foram atropelados por um movimento implacável, mais enraizado no solo da história: a linearidade do avanço técnico.
Em 1969, Glauber já expunha, em imagens, processo pelo qual a modernidade tornara reversíveis mito e simulacro, impondo a narrativa mestra da expansão técnica impulsionada pela ciência e pelo capital. A resposta que ofereceu, ao longo dos anos 1970, foi a de amplificar o esquema presente em O dragão da maldade, cuidando de sublinhar a questão moral e de lapidar o seu correlato estético – a oposição do sublime e do grotesco, esta que expressa o conflito entre promessas (populares) e decadências (de elites colonialistas). Com isto, consolidou a face religiosa da revolução social que nunca saiu do seu horizonte, mas seu quase descarte de um espírito analítico voltado para a questão da luta de classes se traduziu na reiteração da matriz colonial em termos cada vez mais esquemáticos.
Do ideário da esquerda de 1960, Glauber preservou mais do que tudo uma noção populista e genérica de imperialismo. Curiosamente, quando chegou a A idade da terra, a alegoria era já resultado de uma sedimentação que expulsara a teleologia como dado formal da obra, embora o filme, até por isto mesmo, revele uma ancoragem notável no momento vivido pelo cineasta cujo tom confessional e autenticidade dizem bem do sujeito cindido e de sua circunstância. Ele resiste, no plano da vontade, ao esvaziamento das grandes narrativas míticas e repõe Cristo na história, mas a sua intuição mais funda da crise o conduz, como havia feito nos anos 1970, a uma recusa em especificar um tempo interno à obra calçado numa narrativa.
Prevalece então nesse período um cinema dissolvente da diegese, mais concentrado num diário de bordo que ganha força quando alcança a interação com o presente, sempre apostando sua possível consistência nesta abertura para o cotidiano onde a coleção de anotações de passagem se costura pela referência ao sujeito e à hora. Confiando na força do fragmento e nas justaposições afastadas da polidez do cinema comercial, ele lança um desafio tanto mais produtivo ao espectador quanto menos tenta monumentalizar (sacralizar) tais procedimentos.
De tal sintaxe feita de justaposições de momentos, o exemplo mais expressivo no trajeto de Glauber foi Claro (1975), realizado na Itália, quando ele radicalizou a informalidade e registrou sua experiência de quem observa o dia-a-dia da política européia como um estrangeiro. A idade da terra tem muito deste registro in loco, do inventário sugestivo do presente, mas a concepção do filme se estendeu por anos e a filmagem interminável deu espaço excessivo ao principio de inclusão que sempre atormentou o cineasta, de tal modo que a armadura alegórica ficou acanhada demais para articular o afluxo de imagens e a mise-en-scène fragmentária. A experiência visual deste filme é um exemplo extraordinário da radicalização dos procedimentos de câmera-na-mão colada aos objetos (quase como Stan Brakhage, em certos momentos). Explora os corpos e os tecidos como talvez nunca antes na sua obra, mas esta experimentação com a descontinuidade não vivifica os paradigmas da grande narrativa evangélica. Em suma, a vigorosa dialética de fragmentação e totalização, marca de Glauber, não encontra resoluções com a mesma força de antes.
Já apontei este problema em artigo publicado na época do lançamento do filme, e apontei também o lance, a meu ver, mais decisivo: o fato de o próprio filme inscrever na sua forma e expressar com lucidez o caráter multifocal, in progress, da obra, trazendo sinais claros deste inacabamento, na recusa de simetrias que estavam à mão e poderiam criar a aparência de que o cineasta fechou o seu discurso. O dado mais evidente está na ausência de créditos e de uma assinatura tipo “um filme de…”, mas o decisivo é a textura mesma de imagem e som, principalmente no final quando a ação se dissolve em discreta sucessão de planos gerais que tem tudo menos a aparência de um fim. Como observei naquela ocasião, Glauber não tentou maquear os impasses, pelo contrário, os projetou como o princípio formal que domina o seu filme.[ix]
Traço interessante desta incorporação do impasse são os momentos em que a montagem ganha ritmo e os cortes criam uma pulsação que aparece projetar a festa ou o carnaval para outro espaço, esboçando-se aí a incidência do transe que, no cinema de Glauber, consagra o instante maior da experiência das personagens. Digo “esboçando” porque a profusão de dados sensoriais cria aqui a constelação pregnante, mas esta, em sua carta duração, não ganha ressonância enquanto momento “epocal” que separa o antes e o depois, não mostra sua capacidade de determinação sobre o destino das personagens. O transe se configura e a constelação logo se dissolve; os agentes do grande teatro se dispersam para novo período de monólogos solipsistas, difíceis de unificar mesmo que se apele para o clichê do cortejo barroco enquanto “constante nacional” heteróclita que se constrói no sincretismo e na variedade dos rituais.
O mosaico de ensaios visuais se expande pelas várias regiões, abrigando até um esquema simbólico que evoca o nacional, pois os locais escolhidos são as três sucessivas capitais, Salvador – Rio de Janeiro – Brasília, pontos em que se condensam as articulações étnicas e religiosas, a diversidade que envolve as festas do largo, o culto de Iemanjá, o carnaval no Rio, as pregações religiosas em Brasília, a umbanda, tudo ajudando a construir um efeito de busca coletiva, religiosa em sua natureza. A festa é, no entanto, o ponto de coesão, de qualquer modo, problemático, pois transforma a estética no polo exclusivo de enunciação de promessas que não encontram eco em nenhum outro terreno, demandando a profissão de fé explícita do profeta.
O traço de união salvacionista introduz a passagem do mundo sincrético da diferença e do diálogo para a supremacia do Mesmo pois, sobreposta ao senso da união na diversidade, surge a figura do Messias, força homegenizadora, centro da ideologia do amor, como talvez o Palácio da Alvorada seja a figura espacial de uma imantação messiânica que o Cristo negro celebra ao tomar Brasília como foco de uma nação a construir. Tal supremacia do mesmo, representado pelos seus avatares, efetivamente ocorre, mas seria, em verdade, inadequado projetá-la categoricamente na figura de um poder central estabilizador, pois A idade da terra, na deliberada fragmentação e descontinuidade, dissolve os marcos de referencias arquiteturais que, em dado momento, parece eleger como “origem”, tal como acontece com o Palácio da Alvorada. Em verdade, o filme oscila entre um impulso de monumentalização, projetado nas suas próprias dimensões, e um impulso utópico-democrático do ritual de rua, da festa do corpo e da informalidade. Dentro desta oscilação, a camisa-de-força mais efetiva acaba sendo imposta pelo analogismo que envolve a ideia de repetição, de consumação de ciclos de ascensão, apogeu e decadência.
O historicismo culturalista de grandes escalas, formulado num nível máximo de generalidade, termina por esvaziar um dos pólos do cinema de Glauber – o da história concreta – deixando todo o trabalho de fundamentação da esperança para o polo mítico-estético. A marca dessa incorporação desmedida própria a A idade da terra torna difuso o terreno prático da política e, ao mesmo tempo, sugere tal desfocalização como inevitável, como que correlata ao nítido desconforto, para além do olhar sintonizado com a energia popular, diante do caráter, esgarçado do tecido nacional.
Este é um “fantasma” presente na sua angústia nacionalista desde os anos 1960, e seu cinema trabalhou reiteradamente a ideia de um ponto de amarração ainda fora do alcance, algo de que tinha certeza no inicio do percurso, mas que foi se tornando cada vez mais abstrato para que se pudesse definir os termos de constituição da comunidade imaginada. Em qualquer hipótese, seria preciso mais do que a riqueza e unidade do campo simbólico de religiões partilhadas para que o senso do nacional ou de qualquer entidade social equivalente ganhasse contornos mais definidos.
Posto isto, o princípio ativo de regeneração, embora tenha face popular e se oponha à dominação de classe, abre o flanco para um torneio conservador quando se apóia demais na analogia de fundo religioso para fundamentar um diagnóstico geral curiosamente articulado em torno da busca do líder, da procura do Pai que chega aqui a seu termo máximo, radicalizando as tensões entre os pólos africano e cristão de sua metafísica. Podem-se descrever à exaustão as bipolaridades deste filme, destacando a duplicidade dos focos de luz em cenas de campo aberto, a diversidade cenográfica, as novas aparências de deus e do diabo, a textura barroca de sua mise-en-scène; pode-se evocar a figura da elipse com seus dois pontos focais de atração como traço emblemático de uma “condição latino-americana”, mas resta aí sempre a subsunção da variedade, ou da bifocalidade, à categoria do mesmo, pois a postulação do Salvador nos termos bíblicos prevalece na alegoria, por mais africanos ou ameríndios que sejam os adereços e os corpos que compõem os rituais celebradores da religião regeneradora.
O esquema cíclico de decadência e regeneração tem versões variadas na história das ideias deste século, e tendeu mais a se afirmar em pensadores de feição conservadora como, por exemplo, Oswald Spengler, o autor de A decadência do Ocidente (1918-22). Seu quadro de vida e morte das culturas se apóia na ideia de que estas têm o seu momento emergente, de maior tonicidade vital, na fase de ascensão de um novo surto de espiritualismo, religiosidade, e caminham em direção a seu apogeu até que o excesso de progresso material e hipertrofia da técnica na sociedade reduz a cultura à civilização – seu aspecto mais propriamente material corporificado nas realizações da ciência e na dominação da natureza.
O renascimento e revitalização dependeriam exatamente da esfera de experiência privilegiada por Glauber em sua representação, onde o painel das festas e rituais comunitários promete a regeneração, em contraposição à esterilidade dos grupos dominantes perdidos em suas obsessões sexuais e atomizados por um individualismo exacerbado. Esta referência, é claro, não envolve aqui a afirmação de uma identidade entre A idade da terra e a tradição conservadora européia; apenas quer apontar o cruzamento de caminhos que um tipo de diagnóstico da crise social termina produzindo, dado inscrito com ênfase no trajeto dos críticos da cultura neste século. Apropriações ou simplesmente afinidades são, ao mesmo tempo, um dado “normal” do processo e um dado histórico a evidenciar, pois definem o flanco da ambiguidade de muitos projetos de mudança, aquilo que, uma vez caracterizado, esclarece certos desdobramentos, as trocas “surpreendentes” de sinal conforme a conjuntura.
A crítica da cultura, em Glauber, envolve outras variáveis; sua armadura cristã-popular o afasta de um Spengler, por exemplo, e o teor proclamadamente não eurocêntrico do seu sincretismo confere outro teor à esperança. No entanto, não impede que esta termine na hipótese do Messias, supondo enfim uma sobrevida para o ciclo civilizatório apoiado nas premissas do Ocidente Europeu (desculpem o chavão). Por outro lado, há na constelação temática glauberiana um feixe interessante de contradições que fazem eco, saindo da referência européia, com o debate político religioso cujo ponto de acumulação e violência tem sido, na história recente, de novo o Oriente Médio, exemplo tão contundente quanto o da Europa Central nas tragédias implicadas no imbróglio de política e religião ancoradas em bases messiânicas.
Sei muito bem que o caráter sincrético – não fundamentalista ou “fiel à letra” – da religião que informa a ideia de salvação em A idade da terra traz outro percurso face os exemplos evocados, pois a postura de recolher os ensinamentos das fontes populares confere nítida peculiaridade à “narrativa mestra” de Glauber. Isto, no entanto, está longe de evitar outros imbróglios. A começar pela convivência sui generis de messianismo e matriarcado como referências utópicas. Curiosamente com e contra Oswald, o discurso identitário oscila. Ora se apóia em utopias matriarcais e exaltações hedonistas, como no Paraíso do início do filme ou na feição dionisíaca dos momentos de festa que sinalizam um princípio de unidade; ora se apóia em seu contrário, ao afirmar uma filosofia messiânica de evocação autoritária e pouco à vontade com alteridades (pelo menos até onde a história nos oferece evidências).
Para um exercício de limites, já lembrei aqui a experiência dos nacionalismos carismáticos que, em outros contextos, tornaram efetivo seu potencial autoritário e levaram ao extremo um monumentalismo feito de ordem e geometria. Foram projetos de incorporação do povo como peça de uma máquina social inclinada à eficiência (de tipo messiânico) e, culturalmente, encontram expressão estética em festivais onde a massa foi ornamento, para lembrar a expressão de Kracauer. Obviamente, no caso de Glauber, trata-se de outra história, formação social e conjuntura. E seu filme marca, dentro mesmo de seu percurso de estetização da política, sua diferença em face de tais exemplos, pela natureza da experiência que privilegia, pela forma de articular o estético e o religioso, pela informalidade e “incontinência de raiz” em tudo alheias ao mundo da disciplina industrial que marcou o autoritarismo messiânico de feitio europeu.
Enfim, a coesão em A idade da terra não implica em princípios de exclusão social ou em repetições mecânicas, pois o filme percorre um sem número de festas não vetorizadas, não havendo um corpo doutrinário-textual dogmático a organizar o campo da história. Avesso à disciplina, recusando simetrias e percursos geométricos, o filme se afasta do arquitetural (associado aí com cidade, túmulo e morte), o que “salva” da condição de monumento nacional clássico. Em verdade, as dissoluções e atropelos ajudam A idade da terra em seu desejo de reconciliar a ideia de democratização, sempre problemática, com o princípio do carisma.
Por vários caminhos o esquema culturalista de A idade da terra procura aberturas, assimilação das diferenças, e afirma uma vontade de imersão efetiva no vale de dispersões que o território oferece à vista, rico de imaginários e de performances. Estas, em alguns momentos, ensejam uma montagem em que tudo parece se encaixar na direção de um êxtase que se mostra, de fato, fora do alcance, prejudicado por interferências que o dissolve antes da cristalização, sintoma de uma crise que encontra resposta no domínio da palavra messiânica, seja de Pitanga, Jece Valadão ou mesmo Glauber.
Tal palavra é necessária porque o gesto do cineasta implica em julgamento, demarcação moral, o que tenciona suas imagens e abre espaço para a grade evangélica que exige, pelo teor de sua leitura da vida no Império, a matriz da decadência como polo a partir do qual contrapõe a sua mensagem de amor. Como há problemas nos encaixes variados, o filme se obriga a gerar oximoros que não são novos na afirmação da peculiaridade desta formação nacional de “grande futuro”. O Cristo no seio do povo é hedonista, o matriarcalismo é messiânico, o regime é autoritário, mas o tecido da vida é antecipação de um futuro democrático.
Resumindo, a concepção do nacional implicada em A idade da terra não afirma propriamente a nação como um princípio de unidade de caráter laico e moderno, apto a substituir princípios de coesão apoiados em dinastias ou em fundamentalismos religiosos. O que temos aí é muito mais o retorno da identificação do nacional com o campo da religião popular, pois um e outro se constroem mutuamente, contra a opressão do capital e do imperialismo. No entanto, fica a pergunta: não cumpre aí a alegoria um dos seus papéis recorrentes na história, como forma de reapropriação das diferenças? Concordam os sujeitos da festa com esta inscrição nacional-messiânica de seus rituais? Não há aí a repetição daquela apropriação primeira dos signos do paganismo, uma entre outras re-semantizações operadas pelo cristianismo em sua ideia de uma história universal?
Glauber não quer descartar este horizonte de uma história universal, o que define a estabilidade, no seu cinema, da nação do imperialismo. A dificuldade é que esta noção tendeu gradualmente a se encarnar em agentes por demais caricatos, meio que em suspenso e aquém do que exigiram as novas estruturas narrativas pautadas pela descontinuidade. Daí o fosso existente entre a inspiração estético-religiosa da alegoria, com seus ciclos de ascensão e decadência, e a concepção acanhada de tal alegoria requer dos pressupostos econômicos das manobras de Brahms para que sua figura assuma o papel de Anti-Cristo que lhe cabe no esquema. O problema é que não há nenhum motivo para, dentro da dinâmica montada (a par do que dizem as palavras), imaginar que a continuidade da festa e a afirmação plena do sagrado produzam o colapso do imperialismo, como se o dinheiro já não tivesse mostrado sua intimidade com a religião, e como se esta, por natureza, fosse inimiga do capital.
No entanto, o filme propõe o ritual popular como uma espécie de revolução em estado prático, e seu arco dispensa considerações sobre tudo o mais que estava em pauta nas lutas sociais sobre tudo o mais que estava em pauta nas lutas sociais no final dos anos 1970, reduzindo-se a uma evocação ligeira da conjuntura local trazida pela entrevista, sobre o golpe de 1964 e a ditadura, com o jornalista Carlos Castello Branco. A conversa é rasa e às vezes acaciana em suas observações sobre o regime militar, valendo mais como justaposição irônica tipo “documento de época”, interlocução inserida no diário de bordo do cineasta, anotação de momento feita com um senso de relativização da fala pelo comportamento da câmara e pelo tom da seqüência.
De qualquer modo, é sintomático que A idade da terra prefira a mediação do jornalista para falar da conjuntura política, reservando, para a palavra direta do cineasta, os temas gerais do plano de salvação da humanidade. Claro que, na junção destes dois gestos, há a confiança no poder de alegoria para comentar a vida política presente, mas creio se manifestar aí a mesma dificuldade, neste momento, de encontrar o melhor balanço entre as referências empíricas e as figurações que, por sua vez, já tinham cumprido o extraordinário papel de revisão da historiografia em outros filmes do cineasta.
Por ironia, sua concepção da política como batalha de carismas e sua utopia de comunhões democráticas sancionadas pela religião o pouparam das ilusões próprias a quem entendia, naquele momento, a redemocratização como panacéia. No entanto, reafirmaram o seu compromisso com outras formas de mitologia que sempre atuaram no seu teatro barroco, aqui projetado no terreno da batalha entre cultura e civilização. O que observei sobre o seu analogismo não remete a Spengler tout court, como vimos, mas repõe no horizonte uma convergência de política e religião de feição regressiva. Aspecto que só não ganhou dimensão concreta no debate porque a conjuntura lhe oferecia, no Brasil, a possibilidade de pensar a religião enquanto cultura do oprimido, não enquanto religião do Estado (não preciso lembrar aqui as histórias de autoritarismo e opressão aí implicados).
Depois de sua explosão exasperada na redação dos Cahiers du Cinéma ao gravar depoimento sobre a morte de Pasolini, Glauber acabou por se encaminhar para uma espécie de agonia de herói desgarrado, cobrando de si respostas ambiciosas, e cada vez mais fora do alcance, diante de uma conjuntura inaceitável. Sua retomada do tema do Cristo, em parte inspirada em Pasolini, deu expressão a seus impasses, à mescla de compromissos e rebeldias que o enredou com as várias forças e ordens em confronto no planeta. Entre a grande escala do projeto e senso claro das fraturas não resolvidas no caminho, o seu filme derradeiro nos oferece mais um exemplo deste primado da contradição que sempre marcou o cineasta: de um lado, o inflado painel alegórico, o ritual em cinemascope, uma estética de grandes blocos coreográficos; de outro, o festival de desmedidas que afasta a disciplina correlata às ideologias messiânicas e dissolve qualquer senso de rigidez formal e centralidade.
Em A idade da terra, Glauber recusa o polimento de uma imagem idealizada e desejável de si, destas que se propõem como um monumento à posteridade. Deixa como testamento a exposição implacável de uma crise.
*Ismail Xavier é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome (Editora 34).
Publicado originalmente na revista Cinemais, no. 13, set.-out. 1998.
Notas
[i] Para uma análise de Terra é sempre terra, ver o texto de Maria Rita Galvão em Burguesia e Cinema – o caso Vera Cruz (Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1981).
[ii] Para uma análise detalhada deste filme de Ruy Guerra, ver meu texto “Os Deuses e os Mortos, maldição dos deuses ou da história?”, em A Ilha do Desterro número 32, 1997, revista editada pela Universidade Federal de Santa Catarina.
[iii] O filme Argila foi objeto da tese de doutorado, de Cláudio Aguiar Almeida. “O cinema como agitador de almas’: Argila, uma cena do Estado Novo”, defendida junto ao Departamento de História da FFLCH-USP, em 1993; Os Bandeirantes foi analisado na tese de doutorado de Eduardo Morettin, “Cinema e História: uma análise do filme Os Bandeirantes”, defendida junto ao Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da E.C.A.-USP, em 1994.
[iv] Ver “Alegorias do Desengano”, tese de Livre-Docência USP, 1989; e Alegorias do subdesenvolvimento – Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal (São Paulo, Brasiliense, 1993). Para as relações entre cinema e Nelson Rodrigues, ver “Pais humilhados, filhos perversos”, em Novos Estudos – CEBRAP, número 37 (1993), e “Vícios privados, catástrofes públicas“, em Novos Estudos – CEBRAP, número 39 (1994).
[v] Nos dois filmes, a atenção ao gesto e ao engajamento do corpo, seja numa performance observada pela câmera, seja nos movimentos da própria câmera, define um impulso de dissolver o mundo da representação e da narrativa que traz conexões com outras práticas da arte visual no Brasil, especialmente com o trabalho de Hélio Oiticica. Este é um traço comum de Glauber e Bressane, mais ou menos acentuado conforme a época (e eu poderia acrescentar Arthur Omar neste eixo da primazia do gesto como forma de diálogo com as experiências derivadas do neoconcretismo). Embora com perspectivas diferentes, são cineastas que procuram momentos de desestabilização do quadro e de sua geometria para explorar texturas e uma tactilidade que privilegia um engajamento do corpo, a passagem ao ato, um cinema que se quer experiência sensorial aquém das ilusões de tridimensionalidade, ritual de outra ordem que não a do ilusionismo clássico.
[vi] Para a discussão detalhada da noção da decadência, ver Julien Freund, La décadence (Paris, Éditions Sirey, 1984). E também Jacques Le Goff, “Decadência” em História e memória (Campinas, Editora da UNICAMP, 1994).
[vii] A ficção dedicada a este tipo de experiência tem sido objeto de muitos estudos, mas são raros os trabalhos que envolvem literatura e cinema, como é o caso, que vale destacar, da tese de doutorado de Denilson Lopes, Nós os mortos, defendida em março em 1977 na Universidade de Brasília, Depto. de Sociologia.
[viii] Ver Benedict Anderson, Noção e consciência nacional, São Paulo, Ática, 1989.
[ix] Ver Ismail Xavier, “Evangelho, terceiro mundo e as irradiações do planalto” em Filme Cultura 38/39, 1982.