Notas sobre a conjuntura

Imagem: Elyeser Szturm
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Por William Nozaki*

Enquanto a atenção se concentra sobre as sandices das declarações de Guedes, Araújos, Weintraubs e Damares, algo mais profundo e perigoso pode estar acontecendo na arena lato sensu do Estado

Na última semana observamos alguns acontecimentos conjunturais de grande relevância que foram pouco ou mal interpretados pela maior parte dos analistas de conjuntura: (i) a divulgação dos cenários para a política nacional de defesa até 2040, (ii) a nomeação do general Morão para o Conselho da Amazônia, (iii) a morte do miliciano carioca que chefiava o Escritório do Crime, (iv) a substituição de Onyx Lorenzoni pelo general, chefe de Estado-Maior, Braga Netto no Ministério da Casa Civil, (v) o incremento orçamentário da defesa e da estatal da Marinha, (vi) a revelação de que o general Heleno teria impedido a demissão de Sérgio Moro.

1.

A divulgação dos cenários para a política nacional de defesa até 2040 foi acompanhada pelo espanto e pela surpresa sobre o apontamento da França como uma ameaça estratégica para o Brasil. Uma boa parte dos analistas enxergou a avaliação apenas como sinal da decadência ou de irresponsabilidade das Forças Armadas. Entretanto, cabe aventar uma hipótese que busque lógica no caos. Se levarmos em conta que o golpe no Brasil também foi informado por interesses petrolíferos, há que se considerar que a mais recente fronteira de exploração e produção de petróleo offshore se encontra na região da Costa da Guiana, Suriname e Guiana Francesa, área onde há presença e influência da França. Além disso, o pré-sal brasileiro está numa área cuja proteção deveria ficar a cargo do submarino nuclear construído em parceria com a França. Diante do alinhamento automático entre Brasil e EUA, não seria absurdo imaginar que as forças norte-americanas se incomodem com essa presença francesa no Atlântico Sul e que isso se reflita nesse documento.

2.

A Amazônia azul, área marítima estratégica, se localiza, justamente, entre o território Venezuelano e a costa Brasileira, em uma região Amazônica que também segue na mira de novas prospecções petrolíferas e minerais. Trata-se de uma região com ocupação militar russa, na área da Venezuela, e com avanço de interesses mercantis, minerários e predatórios, na área Brasileira. Essa talvez esteja se tornando uma área estratégica demais para permanecer apenas sob a guarda dos ministros civis de Bolsonaro, donde a nomeação do general Mourão para capitanear o Conselho da Amazônia, formalmente esvaziado da participação civil dos governadores da região.

3.

A recomposição dos militares no governo Bolsonaro pode sinalizar uma reversão na derrota da farda para o olavismo, sintetizada na demissão do general Santos Cruz, não por acaso o primeiro a indicar que os militares conteriam os excessos e disparates da ala ideológica do bolsonarismo. Tal mudança de quadro, entretanto, só poderia ocorrer diante de um fato novo, e, talvez, esse ocorrido tenha sido justamente a morte de um dos chefes da milícia carioca. Segundo se tem noticiado, Adriano Nóbrega era peça chave para o esclarecimento das relações entre o clã Bolsonaro, a morte de Marielle Franco e a ação de milicianos. Talvez os serviços militares de inteligência e defesa tenham informações impublicáveis sobre esse acontecimento, o que colocaria as Forças Armadas em outro patamar diante dos bolsonaristas.

4.

Em se admitindo que a hipótese acima é exequível, a chegada do general Souza Braga – justamente o responsável pela intervenção no Rio de Janeiro – talvez não tenha sido uma livre escolha de Bolsonaro, mas resultado da pressão das Forças Armadas sobre uma família presidencial envolta em casos truncados e nebulosos. Nesse sentido, a Casa Civil (agora Casa Militar?), talvez esteja também sob discreta “intervenção”.

5.

Além disso, há que se considerar que, nas últimas semanas, se, por um lado, a Casa Civil perdeu o PPI (programa de parcerias e investimentos) para o Ministério da Economia, por outro lado, o governo aumentou os gastos discricionários com Defesa e com a estatal militar Emgepron (aliás, responsável pelo incremento da frota naval de defesa do mesmo Atlântico Sul supracitado).

6.

Uma operação da monta que se descreve nos itens acima não poderia ser viabilizada com o integral desconhecimento do Ministério da Justiça. Nesse sentido, chama a atenção um relato descrito recentemente no livro “Tormenta: o governo Bolsonaro, crises, intrigas e segredos”, segundo a autora, o general Heleno teria impedido a demissão de Sérgio Moro sob a alegação de que o governo acabaria. Se verdadeiro, tal indício comprova que o militarismo e o lavajatismo são duas forças coesionadas, por interesses internos e externos.

As linhas acima, como já se disse, esboçam apenas um conjunto de hipóteses. Mas elas partem de algumas premissas, que, infelizmente, não são corroboradas pela maioria dos “conjunturalistas” do campo progressista, quais sejam: (i) a Amazônia Azul e a Amazônia Verde estão no centro do tabuleiro geopolítico global e norte-americana; (ii) o governo Bolsonaro tem menos relação com o presidencialismo de coalizão do que com o fortalecimento das milícias; (iii) o centro da economia política bolsonarista está na área de minas e energia e não no tripé macroeconômico; (iv) militarismo e lavajatismo são duas faces da mesma moeda e operam a serviço de um projeto estratégico com conexões internacionais; (v) os acontecimentos recentes obedecem à construção de uma nova institucionalidade estatal, autoritária, de longo-prazo, e não a questões eleitorais e de políticas públicas de curto-prazo.

Enquanto a atenção se concentra sobre as sandices das declarações de Guedes, Araújos, Weintraubs e Damares, algo mais profundo e perigoso pode estar acontecendo, e o centro desse algo também não está, essencialmente, na esfera stricto sensu da economia, mas sim na arena lato sensu do Estado. Não se trata com isso, é bom que se diga, de diminuir a importância das agendas econômica, eleitoral e cultural, espaços de disputa permanente, de acúmulo político e de mudança na correlação de forças. Mas sim de saber que a estratégia em curso e o inimigo em combate talvez estejam mobilizando armas bem mais cortantes do que aquelas utilizadas quando vigia plenamente o ciclo findado da Nova República. Os tempos mudaram.

*William Nozaki é professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e pesquisador do Programa de Economia Política Internacional do IE/UFRJ.

Publicado originalmente no site Jornal GGN

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