O pior negacionismo

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por EUGÊNIO BUCCI*

Quando a autoridade máxima desta terra ardente vai à ONU e pronuncia tudo o que pronunciou, em nosso nome, e nada lhe acontece, é sinal de que alguém aqui abdicou da dignidade

Na ressaca do descalabro que foi o discurso do presidente brasileiro na abertura Assembleia Geral das Nações Unidas, na terça-feira, em Nova York, a gente se acabrunha. O grau do vexame extrapolou as piores expectativas. Em meio a mentiras ofensivas, distorções estúpidas e apologia de fármacos abstrusos, a saraivada de despautérios não convenceu a ninguém e constrangeu o mundo inteiro. Aos conterrâneos do orador – dito mito, mas, de fato, mitômano –, só restou engolir a humilhação. “Vergonha” – este foi o título do editorial do jornal O Estado de S. Paulo, em sua edição de 22 de setembro. Palavra bem aplicada.

Somos uma nação envergonhada, com as costas pensas sob o próprio fracasso. No ritmo em que as florestas deste país fumegam delirantemente, a esperança vira cinzas. O desastre ecológico e a tragédia sanitária se adensam num malogro político depressivo. Quando a autoridade máxima desta terra ardente (“qual fogueira de São João”) vai à ONU e pronuncia tudo o que pronunciou, em nosso nome, e nada lhe acontece, é sinal de que alguém aqui abdicou da dignidade.

Nessas horas, pouco adianta o sujeito sacar o celular e “postar” nas redes que o chefe de Estado é genocida. A inquietação lamurienta dos descontentes é seu triunfo. Cuspindo ácido sulfúrico, ele desfila sobre cadáveres de gente e de sonhos. Chamado de negacionista, ele mostra os dentes: negacionistas são vocês.

Talvez seja isso mesmo. Como já se percebeu o pior negacionismo não é o dele, que rejeita a ciência, o saber e o diálogo, mas o daqueles que se negam a ver que estamos diante de um inimigo declarado da democracia, obcecado em preparar um golpe de Estado. O pior negacionismo é aceitar a permanência do governante que aí está e, nessa aceitação tácita, assinar um pacto de sangue com o projeto de ditadura que ele pretende pôr em prática.

O pior negacionismo vicejou (e ainda viceja) nas mesas de financistas sem princípios, que decidiram fazer vistas grossas para o que tinham recursos óticos para enxergar. Por uma fatalidade, mas não propriamente por acaso, o pior negacionismo encontrou meios de se disseminar a sociedade, contaminando até mesmo algumas artérias das redações profissionais.

A contaminação ficou evidente já na campanha de 2018. O presidente que aí está, então candidato, subia em palanques para idolatrar torturadores, amaldiçoar a liberdade de imprensa e elogiar a ditadura militar. Com essa postura, afrontou diretamente os fundamentos da nossa democracia. Embora cumprisse as formalidades jurídicas para obter o seu registro regular na Justiça Eleitoral, como se fosse um candidato normal, declarou guerra contra o Estado democrático de direito. Esse fato – rigorosamente um fato, não uma ilação opinativa – ficou sem o registro devido.

Sejamos mais precisos. A Constituição de 1988, o documento-base da frágil ordem democrática que este país foi capaz de estabelecer, pode ter suas contradições internas e seus acochambramentos mal costurados, mas está assentada sobre um consenso pétreo ao qual todas as forças políticas devem lealdade. Esse consenso se materializa numa tripla recusa: a recusa da ditadura, da tortura e da censura. Ora, foi justamente para glorificar essas três formas de barbárie que aquele candidato se lançava em campanha e, não obstante, foi tratado em boa parte da cobertura da campanha eleitoral como se fosse, à parte seu destempero fascistóide, um candidato candidamente normal. Haja negacionismo. A vitória de Jair Bolsonaro está para a democracia brasileira como a vitória de um político declaradamente nazista estaria para a democracia alemã. Não foi e não é algo corriqueiro. Não é normal.

O mais aflitivo é constatar que, apesar de todas as provas em contrário, o negacionismo de pior tipo não cede. É repetidamente desmoralizado pelos acontecimentos, mas não cede. Seus estilhaços, como detritos ideológicos, ficam espalhados no chão da mídia e logo se reagrupam, em sucessivas e ridículas tentativas de dar crédito ao inacreditável. Uma das mais recentes veio na sequência dos atos golpistas de 7 de setembro.

No feriado, em comícios anabolizados por dinheiros estranhos, o presidente prometeu, aos brados, desobedecer às determinações do Supremo Tribunal Federal. No dia seguinte, para escapar aos processos que viriam, encenou mais um de seus recuos cínicos e assinou um texto mal escrito prometendo respeitar a separação e à harmonia entre os poderes. Como de costume, ele se desdiz sem pejo, como se fôssemos uma nação de bobos. Mesmo assim, seu documento de rendição obteve calorosa acolhida em certos escaninhos do jornalismo. Sem memória e sem caráter, o negacionismo que beneficia o negacionista se restaura.

Quanto aos endinheirados alienados, que resolveram acreditar no fantasma do comunismo com o mesmo fervor que devotam ao lucro digital, não há o que fazer. O chefe de Estado, ao ler aquelas barbaridades na ONU, os representa fielmente. A imprensa, porém, que tem vida racional, poderia pensar um pouco mais a respeito, mesmo que seja tarde demais.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, em 23 de setembro de

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Alcançando ou ficando para trás?
Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: O desenvolvimento desigual não é acidente, mas estrutura: enquanto o capitalismo promete convergência, sua lógica reproduz hierarquias. A América Latina, entre falsos milagres e armadilhas neoliberais, segue exportando valor e importando dependência
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES