Por TADEU ALENCAR ARRAIS*
Como nos tornamos o mais fértil campo de experimentação neoliberal desde o Chile de Pinochet
Wendy Brown cunhou o conceito de “cidadania sacrificial” para destacar uma das principais características da racionalidade neoliberal. A responsabilização e a culpabilização dos indivíduos aparecem como pilares dessa racionalidade. Maurizio Lazzarato concentrou suas energias para decifrar o que classificou, brilhantemente, de o “governo do homem endividado”.
Os dois conceitos, construídos com elegância e clarividência, são fundamentais para compreendermos como nos tornamos o mais fértil campo de experimentação neoliberal desde o Chile de Pinochet. A institucionalidade, tanto lá quanto cá, justificou a adesão. Vejamos o que consta no Artigo 6º da Lei Número 14.431, de 3 de agosto de 2022.
“Art. 6º-B. Os beneficiários de programas federais de transferência de renda poderão autorizar a União a proceder aos descontos em seu benefício, de forma irrevogável e irretratável, em favor de instituições financeiras autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, para fins de amortização de valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos e financiamentos, até o limite de 40% (quarenta por cento) do valor do benefício, na forma estabelecida em regulamento”.
É improvável que rentistas, a classe média e até mesmo aquela parte bem remunerada do funcionalismo público, entendam o significado da penhora de benefícios sociais como o Benefício de Prestação Continuada e o Auxílio Brasil. Essas siglas (BPC, Bolsa Família, Auxílio Brasil, LOAS, Seguro Defeso, Auxílio Gás, Aposento Rural etc.), para uma fração da sociedade, não passam de abstrações. Não sabem ou fingem não saber, já que indiferença e a ignorância fertilizam o neoliberalismo, que existe uma relação inequívoca entre a fome e a pobreza e, também, entre a redução da renda e o desemprego.
A renda real domiciliar per capita real em 2021, segundo o IBGE (2022), foi de R$ 1.353,00, o menor valor registrado desde o ano de 2012. Ao exército de gente com baixa remuneração podemos adicionar uma legião de 14 milhões de desempregados. A maior parte composta por jovens. Essa equação ainda é agravada quando incluímos 40 milhões de pessoas trabalhando na informalidade. A redução da renda, o desemprego e a informalidade pavimentaram o caminho para o endividamento. Não é por falta de talento empreendedor que 66,8 milhões de brasileiros, equivalente a 41,4% da população, estejam inadimplentes, como indicado na Figura 1.
Essa dívida, que corrói o caráter e alimenta o desespero, não é resultado da jogatina ou mesmo de momentos de prazer nos cabarés na Asa Sul, em Brasília. Acreditem. Mais de 41% do volume da dívida tem relação com bancos, cartões e financeiras. É dinheiro tomado emprestado para matar a fome. É empréstimo que produz fome.
Figura 1: Evolução da inadimplência dos consumidores
Fonte: SerasaExperian (2022)
Esses dados, encontrados em qualquer diagnóstico econômico e social, são suficientes para demonstrar a pressão no nosso sistema de Seguridade Social. A pobreza e, por consequência, a fome, seria ainda mais avassaladora não fossem os sistemas públicos de transferência de renda direta. São emitidos, todos os meses, 2,1 milhões de benefícios para idosos em situação de pobreza e outros 2,59 milhões de benefícios na modalidade portador de deficiência. É esse recurso, de um salário mínimo, que livra milhões brasileiros da absoluta indigência. São idosos pobres, doentes e esquecidos, crianças com microcefalia largadas aos cuidados de mães abandonadas etc. Gente invisível que habita as periferias urbanas e os municípios pouco populosos.
Ao lado deles, e também sobrepostos, existem um outro grande conjunto de vulneráveis que sobrevivem com o Auxílio Brasil. Em agosto de 2022 foram beneficiadas 20,2 milhões de famílias. O valor do benefício médio do Auxílio Brasil, em junho de 2022, foi de R$ 210,39, passando para, em julho de 2022, R$ 607,85. Um aumento significativo não fosse o destino reservado, como veremos, de 40% do valor dos benefícios. Todos os meses, apenas para o BPC e o Auxilio Brasil, são destinados aproximadamente 18 bilhões de reais para pessoas com algum grau de vulnerabilidade.
A cifra ultrapassa, por ano, duas centenas de bilhões de reais. É, ao juízo de alguns, muito, muito, mas muito dinheiro. Dinheiro “nosso” derramado, como argumentam, no lodo do assistencialismo público. É preciso parar com isso. Os pobres e potencialmente miseráveis, agora, também devem dar sua parcela de sacrifício para a nação. Chegou a vez de recompensar o mercado financeiro com dinheiro bruto, moeda corrente.
Não basta mais, apenas, extrair, como um vampiro, o “sangue coagulado” do trabalhador, para lembrar o economista alemão. Aumentar a Taxa Selic ou inflar as “operações compromissadas” também não será mais suficiente. O pobre jamais entenderá essa gramática. Oferecer empréstimos com juros estratosféricos para os mais vulneráveis, com garantia de pagamento, falindo o comércio local de inúmeras pequenas cidades, será uma boa saída. O efeito bumerangue será, a partir de agora, perverso.
Figura 2. Total de benefícios e valor total dos benefícios do BPC e do Auxílio Brasil emitidos no mês de julho de 2022
Fonte: INSS (2022), MDS (2022)
Esse foi, não tenho dúvidas, o espírito daquele conjunto de pessoas que se dedicaram a dar forma ao Artigo 6º da Lei Número 14.431, de 3 de agosto de 2022. Imaginaram que os milhões de miseráveis, diferente dos banqueiros e financistas, não fizeram sacrifícios suficientes para superar a crise e, portanto, devem ser punidos. Nenhuma sutilidade. Sabiam bem, os cretinos, que o endividamento, que antecede a mendicância, é um dos últimos recursos do miserável.
O miserável, antes da sala da indigência, tenta sobreviver se endividando. Será totalmente disfuncional, quando indigente, porque perde a capacidade de endividamento. Os barões entendem desse jogo. Agora, imaginem, podem se endividar em pequenas parcelas e tudo patrocinado por um governo que, ironicamente, também se diz endividado. O benefício social, penhorado, será repassado para instituições financeiras via crédito consignado de forma irrevogável e irretratável. Imaginem a ginastica do assédio aos pobres e famintos! Não explicarão, é claro, que os juros podem ultrapassar os 70% por ano. Isso, no entanto, não é novidade alguma. Aqui devemos procurar a genealogia do nosso neoliberalismo.
Recordemos o artigo Art. 192 da Constituição Federal de 1988 que foi, em 2003, excluído por uma Emenda Constitucional. Assim estava grafado no § 3º do referido artigo: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”.
O frágil pacto de solidariedade, outrora representado pela Constituição Federal de 1988, pereceu. O crime de usura saiu, completamente, do radar. O crédito ofertado pelos bancos, o endividamento do consumidor e a culpabilização dos pobres alimentam o neoliberalismo brasileiro. As mulheres, os homens e os jovens, endividados, passam a incorporar a liturgia do sacrifício. São, agora, governados pelo endividamento. É o fim da política. Batatinha frita 1,2,3 …
*Tadeu Alencar Arrais é professor titular de geografia na Universidade Federal de Goiás (UFG).
Referências
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília, Saraiva, 1988.
BROWN, Wendy. Cidadania sacrificial: neoliberalismo, capital humano e política de austeridade. São Paulo, Zazie, 2018.
IBGE. Notícias. Rendimento domiciliar per capita cai ao menor… In:https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/34052-em-2021-rendimento-domiciliar-per-capita-cai-ao-menor-nivel-desde-2012.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro, IBGE, 2022. In.: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9127-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios.html?=&t=destaques.
INSS. Estatísticas Mensais. In.: https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/dados-abertos-previdencia/previdencia-social-regime-geral-inss/dados-abertos-previdencia-social.
LAZZARATO, M. O governo do homem endividado. São Paulo: M1 Edições, 2017.
SERASAEXPERIEAN. Estatísticas. In.:https://www.serasaexperian.com.br/conteudos/indicadores-economicos/.
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