O direito de ir à praia

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Por LUIZ EDUARDO SOARES*

Uma peça chave dos entraves ao desenvolvimento da democracia foi e continua sendo o “inimigo interno”, seja como imagem e símbolo, seja como categoria e ideia, seja como prática e valor

Dedicado a Manuel Domingos, Pedro Celestino e André Castro

Li com perplexidade e indignação a entrevista ao Globo do governador do estado do Rio, Claudio Castro, publicada em 16 de dezembro de 2023: “Estamos pegando menores que estão desacompanhados de responsáveis, que não têm documentação, e levando para que a gente faça a pesquisa social deles. Não há nada de mais nisso, não há cerceamento na praia. Quer ir à praia, leve seu documento, vá com seu responsável, você vai poder curtir a praia numa boa”.

A quem se dirige a ordem do governador, a qual condiciona o acesso à praia de menores de 18 anos à apresentação de documentos e à presença de responsáveis? A frase é muito clara: dirige-se a todos que desejem ir à praia. Entretanto, nenhuma informação suplementa a ordem.

Claudio Castro não diz, e estranhamente o repórter não pergunta, como agentes do Estado montarão guarda nos calçadões para verificar documentos e atestar a presença de responsáveis, os quais, por sua vez, seriam identificados a partir de quais critérios?

Todo o efetivo da PM seria mobilizado? Muros seriam erguidos com catracas e guichês? A medida seria aplicável a todas as praias fluminenses? Quantos recursos materiais, humanos e financeiros seriam investidos? Quais bases legais sustentariam a iniciativa? As prefeituras das cidades envolvidas haviam sido consultadas?

Disponibilizariam guardas municipais e outros funcionários públicos para viabilizar o controle previsto na ordem do governador? Quais, exatamente, as faixas etárias alcançadas pela ordem restritiva? A questão em pauta é, realmente, o acesso à praia ou se estende aos bairros contíguos ao litoral? Jovens podem visitar livremente esses bairros? Quaisquer bairros? Ou haveria também condicionantes restritivos à circulação que não envolvesse as praias?

Não, nada disso: o que a estrutura lógica e gramatical da frase indica no plano semântico (a ordem é universal, dirigida a quem reside no estado do Rio) inverte-se no subtexto (a ordem se dirige a alguns e algumas, não elencados, explicitamente, mas subentendidos – não há dúvidas sobre quem são).

Por outro lado, o acesso em tela de juízo não corresponde à chegada à praia, mas ao deslocamento cujo destino seja a praia – deslocamento que seria interceptado na origem ou em algum ponto do itinerário.

Acesso pode ser concebido como um bem (a ser potencialmente usufruído – sendo comum, o benefício individual não reduz seu potencial de fruição), um direito (a ser exercido), uma possibilidade (física, material, desde que haja cidadãos e o bem de que trata o acesso, no caso, a praia) ou um ato (estar na praia, aproveitar o que ela oferece, o que pressupõe tê-la alcançado, ter chegado a ela) e um fato (a praia ocupada).

As ações policiais que constituem a referência implícita da declaração de Castro ocorrem no trajeto dos ônibus que transportam para a Zona Sul, nos fins de semana, moradores das áreas mais pobres da cidade e da região metropolitana. É nessas abordagens policiais que a triagem se faz.

Os escolhidos são recolhidos a abrigos onde aguardam averiguações até o anoitecer — digo escolhidos porque não caberia aqui a categoria suspeitos, pois sequer há crimes em marcha, em preparação, ou indícios de organização para seu cometimento – e ainda não contamos com a antecipação paranormal dos investigadores de Minority report, filme de Steven Spielberg, inspirado no conto de Philip K. Dick.

Percebam: ao anoitecer, usualmente, esgota-se o prazo de validade da praia como espaço de diversão. Portanto, Castro reconhece que a pena – sim, pena sem crime, sem acusação – aplicada aos jovens antecede e independe do resultado das tais “pesquisas sociais”.

Voltemos à sua declaração: “Estamos pegando menores que estão desacompanhados de responsáveis, que não têm documentação, e levando para que a gente faça a pesquisa social deles”.

A frase do governador é maliciosamente elíptica, sob a forma do discurso universal: em primeiro lugar, sob aparência de uma relação diádica (emissor, o governador, e receptor, a audiência universal pela mediação do repórter e, portando, do jornal), estipula, na prática, uma relação triangular, ao operar uma distinção entre dois tipos de receptores: aqueles a quem realmente a ordem é dirigida e os demais, não visados pelas restrições, que apenas testemunham o ato de fala governamental e cujo silêncio obsequioso (o repórter cala as interrogações cruciais) confirma, simbolicamente, a legitimidade e a autoridade do comunicado emitido.

Observe como a ironia mal dissimulada mascara a duplicação dos tipos de receptores: “Quer ir à praia, leve seu documento, vá com seu responsável, você vai poder curtir a praia numa boa”.

Você remete a quem jamais se exigirá documentos ou o acompanhamento de responsáveis e, simultaneamente, a quem será alvo da exigência. A superposição mal disfarça o facciosismo e o enviesamento da ordem do governador sob a evocação do interlocutor universal.

Em segundo lugar, o discurso é inquietantemente elíptico e dissimulado. Cito, novamente: “Estamos pegando menores (…) e levando (…) Não há nada de mais nisso, não há cerceamento na praia”.

Não, nenhum cerceamento na praia, de fato. Na praia temos atos (modalidades ativas do estar naquele local) e fatos (a ocupação da praia) tautologicamente comprobatórios da presença, presença que é o avesso da exclusão.

Sendo assim, o acesso como um bem não foi negado, enquanto fato, ato ou possibilidade (uma vez que quem não estivesse na praia poderia, em princípio, lá estar — ninguém, em princípio, estaria impedido de exibir documentos e fazer-se acompanhar de responsável — e o caráter discriminatório da aplicação das exigências não macularia a afirmação do acesso como possibilidade universal).

Daí se deduziria que o direito fora preservado, o acesso como direito permaneceria respeitado, protegido, tutelado, garantido.

O pulo do gato violador está justamente na confusão intencional e ardilosa entre acesso como direito abstrato (correspondente ao não cancelamento da possibilidade de fruir) e direito objetivo (correspondente à sustentação da equidade na distribuição das condições efetivas de experimentar a possibilidade).

Ninguém, no Brasil, está impedido, em princípio, de beneficiar-se da educação pública, ou seja, o acesso à educação, do primeiro ao terceiro graus, é possível – e esta possibilidade é um bem precioso tutelado pelas autoridades responsáveis (do MP ao Executivo, passando pela Defensoria e a Justiça).

No entanto, há políticas afirmativas, como as cotas, e elas foram consideradas constitucionais pela Suprema Corte, em decisão unânime.

Para que servem as cotas? Reduzir a iniquidade que se verifica, concretamente, na distribuição das condições em que os grupos sociais experimentam a possibilidade.

O governador do Rio está introduzindo fatores que reduzem a equidade na distribuição das condições efetivas de vivenciar a possibilidade.

Sua decisão confronta princípio axial da Constituição, a equidade no acesso a bem público – ele criou a anti-cota ou a cota para a exclusão. Trata-se de um experimento perverso na linha do apartheid, com aspectos sociais e raciais.

Confesso que as palavras do governador produziram em mim um efeito devastador: se não há mais nenhum limite, nenhum pudor, se o cinismo pode se expor sem pejo, se a racionalidade não é mais parâmetro para argumentos, se o discurso da autoridade máxima do Executivo pode sacrificar qualquer compromisso com o respeito à inteligência dos interlocutores, o que esperar dos cidadãos que o escutam?

O pacto que estabelece as condições mínimas para o diálogo no espaço público democrático estava rompido, unilateralmente.

No vácuo, prosperam o negacionismo e o niilismo, venenos corrosivos, armas de destruição em massa daquilo que, um dia, com boas intenções (embora, idealistas), foi chamado senso comum: o consenso mínimo indispensável à vida em comum, substrato que não impede as diferenças, ao contrário, as torna possíveis e lhes dá sentido.

O governador atirou no que viu e atingiu o que não viu: alvejou a crítica do MP às ações policiais e implodiu os alicerces inter-subjetivos da linguagem e da cultura.

Castro declarou guerra (sem quartel e bandeiras, a guerra hobbesiana pela subordinação do sentido à força, a guerra de todos contra todos) ao minar o campo do mútuo entendimento, ao implodir o discurso como espaço público da argumentação racional. E, como disse Shakespeare: quando falta a linguagem, prevalece a violência.

Minha perplexidade se agravou ante o posicionamento do TJRJ.

A manifestação do governador foi apoiada pelo presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargador Ricardo Rodrigues, que, conforme O Globo, em 16 de dezembro de 2023, “revogou (…), neste sábado, a liminar concedida pela juíza Lysya Maria da Rocha Mesquita, titular da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital. Nela, a magistrada determinou que o governo do estado e a prefeitura se abstenham de apreender ou conduzir crianças e adolescentes a delegacias ou a unidades de acolhimento, a não ser quando flagrados cometendo crimes. A medida fazia parte de ações preventivas da Operação Verão que reforça a segurança nas praias do Rio (sic)”.

Segue a reportagem: “O presidente do TJRJ também considerou que os casos de encaminhamento de adolescentes abordados à instituição de acolhimento não violam seu direito de ir e vir (…) A ação foi movida pelo Ministério Público que questionou a motivação das abordagens. O MP afirmou que, nos dias 25, 26, 29 e 30 de novembro e 2 e 3 de dezembro, a Operação Verão encaminhou 89 adolescentes para a Central de Recepção Adhemar Ferreira de Oliveira (Central Carioca), na Cidade Nova, após abordagem de agentes de segurança. Esses jovens, de acordo com a Promotoria, relataram que foram levados sem qualquer explicação e que a equipe técnica constatou motivo para o acolhimento de apenas um deles”.

Mas a escalada de ataques à equidade prosseguiu. O principal órgão de imprensa fluminense, O Globo, defendeu, em editorial, no dia 21 de dezembro, a decisão do governador e as ações policiais.

Referindo-se aos princípios constitucionais e aos limites legais, o texto ponderava: “Todos esses aspectos devem ser levados em conta. Mas não se pode perder a noção da realidade.”

De que realidade se trata?

A violência dos assaltos que vêm assustando sobretudo os moradores de Copacabana. Essa violência é real, é repulsiva, deve ser repelida, contida e previnida.

Mas há outra realidade: a violação dos direitos de adolescentes negros e pobres, a humilhação arbitrária, a violência do bloqueio à livre circulação e da subjugação discriminatória — eles pagam não por crimes que perpetraram, mas porque têm a mesma cor e origem social de alguns dos perpetradores; eles pagam para que governo e polícias prestem contas a quem, com razão, cobra punição e controle, e ocupam o lugar dos verdadeiros culpados, que a polícia não identificou e não prendeu. Eles pagam pela incompetência das polícias.

Se há duas realidades a considerar, elas não são equivalentes e uma não serve para justificar a outra, porque deter aleatoriamente não constitui política de segurança, a violação racista da equidade não garante a segurança em Copacabana.

Aprofunda, isso sim, a apartação, objetiva e subjetivamente: por um lado, endereçando o medo dos moradores da Zona Sul à população alvo das apreensões policiais nos ônibus e, por outro lado, intensificando o sentimento de injustiça e o justificado ódio contra policiais (e as instituições que os respaldam) dos jovens impedidos de transitar até a praia.

É esse o método do Estado democrático de direito para esvaziar a tão criticada polarização que fratura a sociedade?

É assim que se promove a redução da violência e da criminalidade?

O editorial conclui: “Claro que policiais precisam ter critério, não podem sair por aí detendo adolescentes negros e pobres só para justificar seu trabalho. Mas cobra-se da polícia justamente que aja preventivamente, antes que os crimes aconteçam. Isso pressupõe abordagens, revistas, checagens. O MP e a Justiça têm papel importante para coibir excessos e cobrar respeito à lei. O trabalho da polícia, porém, não pode ser cerceado. Isso só beneficiaria os infratores, que se sentiriam livres para delinquir”.

A superficialidade, a estreiteza e o clichê ideológico dão o tom. Custa crer que um jornalista responsável tenha redigido uma frase tão inacreditavelmente enviesada, de fundamento tão insensível à dimensão racista de suas palavras: “Isso (o cerceamento do trabalho policial, entendido aqui como a execução das ações objeto deste artigo e daquele editorial) só beneficiaria os infratores…”

Não beneficiaria todas e todos os inocentes que sofrem o abuso autoritário?

Não beneficiaria o conceito de Justiça e a segurança jurídica, ao demonstrar que as instituições se recusam a negociar o valor central da equidade no balcão demagógico de medidas voluntaristas?

Em 17 de dezembro, reagindo à decisão do presidente do Tribunal, as deputadas do PSOL Renata Souza e Talíria Petrone entraram com representação no Ministério Público do Rio e no MP Federal contra a apreensão e a condução de adolescentes sem flagrante nas praias ou a caminho das praias.

No dia 21 de dezembro, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro recorreu ao instituto da “reclamação”, dirigida ao STF, alegando que, na AdI 3446, o próprio STF já decidira exatamente no sentido de proibir essas apreensões arbitrárias e discriminatórias.

O objetivo da Defensoria foi garantir a autoridade do Acórdão unânime da ADI 3446. Ainda está sendo aguardado o posicionamento definitivo do STF.

Enquanto prossegue a esgrima jurídica, o mais triste é constatar que não saímos do lugar.

Em 1993, publiquei artigos e pesquisas sobre o mesmo tema. No final de 1992, ocorreu o que viria a se denominar “arrastão” e o tema do acesso às praias invadiu as manchetes.

Nesses trinta anos, o Rio foi laboratório para a brutalidade policial letal e as violações mais diversas, sempre sob o discurso de que se o método não funciona é porque não o aplicamos com energia suficiente: seria preciso mais do mesmo com mais força.

A estupidez, o desprezo por evidências, o negacionismo, a obsessão com a guerra às drogas e o encarceramento em massa nos lançaram no precipício da barbárie.

É fácil apontar o dedo para gestores e políticos, ante a decadência do estado do Rio.

Governadores e políticos presos, erosão institucional, aumento da violência armada, avanço das milícias, declínio econômico, expansão da informalidade e o eterno retorno das mesmas dinâmicas degradantes.

É fácil acusar os outros, mas e aqueles que se sentem representantes da consciência imaculada das elites?

Qual sua dose de responsabilidade nesse processo lamentável?

Aplaudindo a violação de direitos elementares, endossando a humilhação da juventude pobre e negra, aceitando o pacto fáustico, é assim que será revertida a queda no abismo? Não creio.

Pelo contrário, agindo assim, aplicando golpe parlamentar contra a presidenta Dilma para entronizar uma agenda neoliberal (a ponte para o futuro), apoiando atropelos de princípios legais para prender Lula e exclui-lo da disputa de 2018 — abrindo passagem ao fascismo –, tolerando o jeitinho para adequar a Constituição aos interesses utilitários do momento, higienizando as praias de presenças inconvenientes, silenciando sobre 20.791 mortes provocadas por ações policiais, no estado do Rio, entre 2003 e 2022, das quais menos de 10% chegaram aos tribunais, nessa toada, o poço será cada vez mais fundo e nossa deblacle irrefreável.

Por pacto fáustico me reporto à tentativa de obter a segurança a qualquer preço, mesmo que seja vendendo a alma da democracia, mesmo que seja rasgando a Constituição, mesmo que seja pela via do golpe, do jeitinho ou de um drible nos marcos legais.

Sustento — e fiz dessa crença o lema de minha militância– que a segurança não será alcançada por esses meios, pois ou ela existirá para todos, ou ninguém estará seguro.

Antes de finalizar, seria interessante uma visita ao passado. Já fomos diferentes. Tudo poderia ter sido diferente. Portanto, por que não pensar a sério em mudanças profundas?

Pois bem, era uma vez um lugar em que fez-se a luz — ou melhor, o sol imenso do verão carioca. Mas quem pôs a rota do sol no mapa da democracia emergente foi Leonel Brizola.

Eleito governador, em 1982, apressou-se a abrir caminho a pobres e negros. Além de inscrever no programa de governo compromissos antirracistas, inspirados por Abdias Nascimento, Lélia Gonzales, Caó e Darcy Ribeiro, criou novos acessos à cidade (Linha Vermelha), à educação (Cieps), à cultura popular (Sambódromo) e à praia (o espaço público em que — supostamente — nos despojamos dos signos da distinção e celebramos a igualdade).

Eleger o líder gaúcho não significava apenas reatar o presente às lutas que antecederam o golpe de 64, retomando o fio da história; representava também afirmar uma perspectiva cosmopolita e generosa, a melhor autoimagem que o Rio poderia oferecer a si mesmo: acolhedor e avesso ao espírito rancoroso dos regionalismos provincianos.

O ensaio de uma social-democracia tropical à beira mar, reduzindo distâncias — sociais, materiais e simbólicas– para promover o grande encontro: a festa como utopia.

Por isso, em certo sentido, o acesso universal à praia estava no projeto de Brizola como o parangolé na obra de Helio Oiticica: o experimento sensível para novas sintonias com a natureza e a coletividade; a aposta em cidades sem cancelas, trânsito fluente, de norte a sul; espaços abertos e acessíveis; arenas urbanas franqueadas à dança do convívio democrático.

A esquerda menos inflexível e dogmática já tinha intuído o sentido profundo da declaração dos titãs, na canção “Comida” de 1987: a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte.

Em 1982, quando a população brasileira voltou a eleger governadores, embora sob condições restritivas, a sociedade mudava e o mundo se aproximava de grandes transformações: a derrocada da União Soviética e o surgimento da ordem neoliberal globalizada.

Enquanto isso, a ditadura brasileira, ao ritmo lento da distensão gradualista, concluía sua obra, transferindo ao futuro um legado ruinoso: dívida externa, inflação galopante, concentração de renda, medo, veto à participação, censura, perseguições, torturas, assassinatos políticos e licença ilimitada à violência policial com viés de classe, cor da pele e território.

Governar os estados, naquele período em que a ditadura tolerava o funcionamento de algumas instâncias democráticas, exigia prudência e audácia, paradoxo desafiador representado poeticamente sob a forma da “esperança equilibrista” — retrato de época e tema da canção memorável de João Bosco e Aldir Blanc, que se convertera numa espécie de hino da anistia.

Havia um eleitorado com mil e uma demandas reprimidas e acumuladas a contemplar; recursos escassos a administrar; parâmetros legais impostos pela ditadura a observar; ambiente político instável a enfrentar; incerteza jurídica e, no ar, ameaças tácitas de intervenção: a espada de Dâmocles do retrocesso erguida sobre a cabeça das lideranças de oposição ao regime militar.

Nessa atmosfera de esperanças, promessas, tensões e incertezas, em pleno verão de 1984, Brizola determinou a criação de três linhas de ônibus, ligando a Zona Norte à Zona Sul, passando pelo Túnel Rebouças: 460, 461 e 462.

As praias tornaram-se acessíveis aos moradores dos bairros mais pobres da capital. A experiência de cidade mudou para quem estivera até então confinado à aridez do que se chamava subúrbio.

Mudou também para os frequentadores tradicionais, que passaram a conviver com uma diversidade antes apartada e invisibilizada. Reações racistas pipocaram e estão registradas em reportagens e documentários.

O governador foi criticado, circularam propostas de revogação das decisões sobre o transporte no fim de semana e houve até quem sugerisse cobrança de ingresso para “filtrar” frequentadores e esvaziar as praias daquela gente indesejada. Indesejados, claro, eram os pobres, os negros, os “suburbanos”.

A tal democracia então emergente começava a ser posta em cheque, nesse caso não pela ditadura, mas por suas mais profundas condições históricas de possibilidade: o racismo estrutural e a naturalização da hierarquia de classes, legados do colonialismo e da escravidão, marcas atávicas do capitalismo autoritário.

Uma peça chave dos entraves ao desenvolvimento da democracia foi e continua sendo o “inimigo interno”, seja como imagem e símbolo, seja como categoria e ideia, seja como prática e valor.

A doutrina de segurança nacional instituiu a categoria inimigo interno, que vinha sendo gestada pelo menos desde os anos 1940, no rastro da guerra fria e da expansão da influência estadunidense.

Operava-se assim, pela mediação dessa figura conceitual, a sobreposição entre as áreas de incidência de dois tipos de instituição: Forças Armadas e Polícias, as primeiras projetando sua autoridade sobre as segundas — e não o inverso, naturalmente, por razões eminentemente políticas.

O papel de pivô dessa categoria (inimigo interno) é chave porque produz um duplo giro: primeiramente, desloca os comunistas do lugar de oposição política, desqualificando-os como atores legítimos na disputa ideológica e os redefinindo como infiltração estrangeira, destinada a abalar a soberaria nacional.

Mas não para aí. No mesmo movimento, subrepticiamente, reposiciona os detentores circunstanciais do poder e as Forças Armadas como expressões permanentes da própria nacionalidade, manifestações imanentes do substrato essencial da nação, que, por algum passe de mágica metafísico, ter-se-ia consolidado como unidade territorial e institucional.

Tudo se passa como se a nacionalidade emanasse do espírito do povo e se encarnasse nos militares – conforme nos ensinou Manuel Domingos.

Continuamos sem saber o que significam nacionalidade, espírito e povo, mas compreendemos muito bem o que está em jogo: quem se opuser a esse amálgama ideológico-místico-político — amálgama identificado com a própria nação — será considerado inimigo da nação.

A etiqueta inimigo traz consigo consequências práticas, na medida em que militares adotam linguagem e procedimentos bélicos para enfrentar inimigos. Ao contrário do adversário, que põe em risco a manutenção do poder, o inimigo representa ameaça existencial e deve ser eliminado, aniquilado, abatido, extinto, neutralizado.

Aos adversários, a disputa de eleições; aos inimigos, a morte.

Duplo giro, insisto: o mesmo gesto conceitual que desqualifica o outro qualifica quem o performa.

Além disso, essa operação semântica engendra a tese das almas gêmeas: a nação e as Forças Armadas; ambas emanações de uma essência comum, destinadas ao enlace eterno.

Por tudo isso, dissolver a categoria “inimigo interno” (abandonando, portanto, a doutrina de segurança nacional) teria de ser a tarefa mais urgente e decisiva da Nova República, gestada ao embalo do movimento “Diretas, já”, cujos contornos foram ganhando corpo e voz ao longo da década, e que seria inaugurada, finalmente, com a promulgação da Constituição cidadã, em 1988.

Era preciso desatar o nó que amarrava a política à guerra — isto é, aos militares –, destravar o mecanismo que sobrepunha segurança nacional à segurança pública, militares aos policiais.

Em outras palavras, o compromisso número um do Estado democrático de direito, para merecer esse título, no ato mesmo de sua instalação, teria de ser afastar os militares da política e das polícias, ou seja, desmilitarizar a política e a segurança pública.

Caso contrário, as Forças Armadas continuariam tutelando a vida política, enquanto a ordem social da cidadania, fundada na garantia dos direitos individuais e coletivos, permaneceria confundida com estabilidade do poder econômico hegemônico sobre o Estado.

Desse modo, a democracia estaria condenada a simplesmente encenar o revezamento no governo de expoentes do mesmo projeto hegemônico, assim como as polícias e o sistema penal seguiriam regidos pelo “combate” aos “inimigos” (da “sociedade” ou dos “homens de bem”).

Cumprimos a tarefa número um? Não, os constituintes enfrentaram limites impostos pela correlação de forças — e, nas décadas seguintes, a prática deitou raízes, seguindo o rastro das tradições mais sombrias, oriundas do fundo mais remoto de nossa história.

A ditadura se eclipsava mas ainda mantinha suas garras cravadas na defesa não só corporativista, também ideológica e política, das Forças Armadas.

Daí o veto à Justiça de transição e à própria extensão da transição democratizante às três forças e às polícias — cujo modelo forjado na ditadura permaneceu intocado na Carta de 1988.

Criamos um monstro, que conviveu com muitas conquistas cidadãs, mas as limitou. O monstro é um enclave institucional de dupla face, refratário à autoridade política e civil. O gênio das Forças Armadas parecia aos incautos ter voltado definitivamente à garrafa, até que um capitão a destampou.

Já as polícias nunca sequer simularam a contenção, a subordinação a controles externos (nem mesmo do MP) ou ao comando dos governadores.

Engendramos um duplo enclave, no meio da sala de visitas do Estado democrático de direito, que respira por aparelhos, volta e meia esperneia e se afirma, outras tantas se recolhe, acuado, concede, transige, recua.

No horizonte, livre, leve e solto, o personagem endiabrado caçoa de nós, e suja de sangue a República: o famigerado “inimigo interno” — esse amálgama prático-moral-conceitual, que traz consigo forte apelo emocional.

Na praia, é ele que expulsa a galera e grita “suburbanos”, chicote na mão, vociferando: “não há inocentes na periferia, nas favelas não há, assim como em Gaza. Cancelem as linhas de ônibus, murem os morros, invadam as favelas, exterminem os malditos. Pau nos moleques, essa é a língua que eles entendem”.

Que tal retomarmos daqui o fio da história?

*Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e escritor. Ex-secretário nacional de segurança pública. Autor, entre outros livros, de Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. Boitempo: 2019. [https://amzn.to/4754KdV]

Publicado originalmente no site Viomundo.


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