Carta aos eleitores de Ciro Gomes e Simone Tebet

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Por JEAN MARC VON DER WEID*

Pensem bem, reflitam muito e esqueçam suas antipatias, críticas e revoltas, certamente parecidas com as minhas

Votei em Ciro Gomes três vezes, mas não nestas eleições. Por outro lado, só votei em Lula no primeiro turno em 1989 e há duas semanas atrás. Acho que Ciro Gomes deveria ter sido o candidato dos democratas em 2018 e, a recusa do PT em apoiá-lo, nos levou a uma derrota para a extrema direita que poderia, talvez, ter sido evitada. Poderia ter nos livrado dos horrores pelos quais passamos nestes quatro anos e que não vou aqui desfiar. Se vocês votaram em Ciro Gomes ou Simone Tebet não precisarei demonstrar todas as barbaridades que ele cometeu. Vocês não fazem parte dos que acham Jair Bolsonaro bom, mas entendo perfeitamente que vacilem em dar seu voto a Lula. É exatamente isso que quero discutir.

O PT e o Lula recordam os seus oito anos de governo como se tivéssemos vivido no paraíso e prometem mais do mesmo. Não acho que tenha sido o paraíso e muito menos que aquela receita seja aplicável neste momento. Mas acho que Lula (Dilma menos) fez um governo que foi, em muitos aspectos bastante bom, em particular para a economia como um todo e, sobretudo, para os mais pobres. Tenho inúmeras críticas em relação a questões específicas do desenvolvimento sustentável, as mesmas que fiz aos governos de Fernando Henrique Cardoso, meu saudoso professor do mestrado na Sorbonne, em Paris. Mas comparando com o desgoverno total de Jair Bolsonaro, as lembranças dos tempos de Lula ficam mesmo paradisíacas.

Sei que muitos de vocês se preocupam em não dar o que estão chamando de “cheque em branco” para um novo governo Lula fazer o que quiser. A ausência de um programa mais claro, com uma definição de prioridades orçamentárias seria fundamental. Ciro Gomes se preocupou em formular um programa completo e orçamentado e, embora tenha várias divergências com suas propostas, acho que ele inaugurou um procedimento que deveria ser obrigatório nas nossas eleições. Os candidatos deveriam ter que apresentar programas e orçamentos para exame dos eleitores, evitando o que se vê agora, quando se promete a lua ou um lote no paraíso, sem qualquer vínculo com a realidade.

Simone Tebet alinhou alguns pontos programáticos, assim como Marina Silva e o PDT, em nome de Ciro Gomes. Foram pontos importantes e que Lula incorporou nos itens genéricos do seu próprio programa indicativo.  Nada disso substitui um programa articulado e orçamentado (é no orçamento que se distingue, de fato, o que é prioridade e o que é promessa de campanha). Mas é tarde para que isto possa ser formulado em detalhe e negociado entre os que estão se alinhando contra Bolsonaro. E, convenhamos, não se trata de “cheque em branco”.

A aliança entre a chapa de Lula e seus novos aliados vai ter que se debruçar sobre a definição de prioridades e de meios para executá-las logo após as eleições e isto não só não vai ser uma decisão de Lula ou do PT, como terá que incorporar as posições de outros partidos que não se alinharam com o atual presidente, inclusive, é claro, se eles se dispuserem, Ciro Gomes e Simone Tebet. Vai ser uma negociação complexa e difícil com a UB, o MDB, o PSDB, o PDS e outros menores. Mas esta composição é uma imposição da realidade do Congresso eleito, onde o bolsonarismo extremista vai ter uma força significativa, e o Centrão também sai fortalecido, com o uso sem peias do “orçamento secreto”, que está sendo apelidado de “bolsolão”.

Minha expectativa é a formação de um governo de salvação nacional, unindo a esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita não bolsonarista. E acho que devemos reconhecer, com toda justiça, que Lula é o político mais pragmático e mais hábil para construir esta frente. Não vai ser um governo “vermelho”, embora esta cor predomine nas manifestações de apoio ao Lula, por enquanto. Será um governo conservador que vai ter que andar pisando em ovos, sem quebrá-los.

Lula já mostrou que é capaz de unir interesses tão contraditórios como os dos agricultores familiares e os do agronegócio, dos assalariados e dos industriais e dos banqueiros. Vai ser mais difícil pelas circunstâncias da herança deixada por Jair Bolsonaro, que arruinou a economia e destruiu os serviços públicos na educação, saúde e pesquisa, além de debilitar a nossa rica produção cultural. O Estado quebrado e endividado vai ter que ser reconstruído e, as carências mais importantes da população empobrecida, desempregada e faminta enfrentadas com foco preciso.

Acho que não preciso me estender sobre o outro “cheque em branco”, o do voto em Jair Bolsonaro. Jair Bolsonaro também não apresentou programa de governo. Como Lula, o que tem para mostrar são os resultados do seu governo e a promessa de mais do mesmo. Se no caso de Lula podemos discutir os prós e os contras, eu desafio quem pode me apontar algum ponto positivo nos quatro anos do governo de Bolsonaro. Economia estropiada, erário arrombado, destruição ambiental gigantesca, uma “gestão” absurda na pandemia de COVID, produzindo quase 700 mil óbitos dos quais mais da metade evitáveis, corrupção desenfreada no governo e na família do presidente, desmonte da educação em todos os níveis, recuo desalentador na pesquisa científica, número de famintos triplicado e o dos mal-nutridos duplicado, chegando a 33,1 milhões e 94 milhões, respectivamente, cultura desincentivada, favelização dobrada, desemprego, subemprego e desalento, somando 65% da população ativa, queda constante da renda das famílias, 80% de famílias endividadas, sendo que 30% inadimplentes, aumento dos crimes de ódio contra mulheres, negros, lgbtqia+, umbandistas etc. Em outras palavras, não há comparação possível.

Outra objeção que sei que vai perturbar e dificultar a opção de vocês pelo voto em Lula é o tema da corrupção dos governos do PT. Quero lembrar alguns fatos duros neste tema. O primeiro é que houve corrupção nos ditos governos. O segundo é que, ao contrário da propaganda anti-Lula e PT, esta corrupção não foi inaugurada nestes governos e ela foi até bem menos significativa do que nos governos anteriores e muito menor do que nos governos de Michel Temer e, sobretudo, de Jair Bolsonaro.

É bom também lembrar que foi nos governos de Lula e de Dilma que foram criados instrumentos de controle da corrupção e que acabaram por se voltar contra eles. Mas nem Lula nem Dilma constrangeram a PGR ou a Polícia Federal para proteger seus governos e suas famílias. O mesmo não se pode dizer do governo e da família de Bolsonaro. Quanto à condenação que levou Lula ao cárcere, ela foi fruto de um processo judicial criminoso que acabou sendo desqualificado dentro da lei.

Tudo isto não me leva a crer que Lula e Dilma Rousseff não tenham tido responsabilidades no mensalão e no petrolão, nem que seja porque presidiam o país. Se Lula tivesse sido julgado por ter sido leniente com todos os seus aliados, inclusive os partidos que se alinharam depois a Bolsonaro, eu diria que justiça foi feita. Mas o processo que condenou Lula foi uma evidente armação da operação lava-jato, que queimou a oportunidade de se fazer uma ampla limpeza na política brasileira ao usar o aparato judicial para atacar um adversário político.

Mas voltando às perspectivas de um novo governo Lula, devo dizer que ficou evidente para o ex-presidente e para o PT os riscos de “fazer o que sempre foi feito no Brasil”, isto é garantir maiorias no congresso através da corrupção, apelidada de caixa dois. Por outro lado, este governo estará sob escrutínio severo tanto da justiça, como da população e não acredito em novos desvios. Já no caso de um governo Jair Bolsonaro, a prática dos últimos quatro anos mostrou que ele teve força para paralizar os inúmeros processos abertos nos casos de corrupção gigante na saúde, na educação, na defesa e no orçamento secreto, ou bolsolão.

Finalmente, quero dizer que a razão mais importante para se votar em Lula não será o seu programa, mas o que a eleição de Lula significa do ponto de vista da defesa da democracia. A senadora Simone Tebet, no discurso em que declarou o apoio a Lula no segundo turno, disse tudo. O que está em jogo é a continuidade das instituições democráticas e as liberdades fundamentais do povo. Bolsonaro nunca escondeu que ele é um defensor de ditaduras e, por mais que ataque as ditaduras ditas de esquerda, como Nicarágua e Venezuela, ele elogia e procura os neoditadores como Vladimir Putin (que ironia!), Viktor Órban e o autoritário mor, Donald Trump, que não virou ditador porque as instituições democráticas americanas foram capazes de contê-lo.

A escolha que temos pela frente neste segundo turno é imensamente maior do que qualquer restrição que possamos fazer a Lula. Jair Bolsonaro não esconde sua intenção de domar o STF, um grande baluarte, embora eventualmente claudicante, contra algumas das piores propostas de Jair Bolsonaro. Para ter o STF na mão, Bolsonaro já anunciou que vai pedir o impeachment de Morais, Fachin e Barroso, e propor uma mudança na constituição para alargar o número de ministros para 15, com os 4 novos nomeados por ele. Com a composição do congresso favorável a ele tudo isso é bem possível.

Nos próximos quatro anos Jair Bolsonaro teria o controle do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. O passo seguinte é propor uma emenda constitucional para permitir a sua reeleição por tempo indefinido, tal como fizeram Putin e Órban. Ou, ironicamente, Ortega e Maduro. Ditaduras, de direita e de “esquerda” (ponho entre aspas porque não acho que estes dois ditadores tenham qualquer cacoete socialista), tem este perfil nos tempos que correm. São aparentemente democracias pois as instituições republicanas continuam existindo, mas quem manda é o ditador.

É o que queremos para o Brasil? Um governo que arrasou o país prolongado indefinidamente? Vocês acham que neste modelo autocrático a liberdade de imprensa vai ser respeitada? Ou que os direitos de manifestação ou de greve serão mantidos?

Nos países citados tudo isto desapareceu e a repressão é a tônica da política. Não só viveremos em estado de medo permanente, como no tempo da ditadura militar que Jair Bolsonaro tanto admira, como vamos ver repetir-se a escalada de prisões, torturas e assassinatos de opositores políticos. Lembrem-se de que Bolsonaro já defendeu a tortura e afirmou que a ditadura errou por não ter matado “uns 30 mil”. Não se pode dizer que o presidente esconda as suas ideias e intenções.

Com todas as críticas que tenhamos contra Lula e os governos do PT, o fato é que eles nunca foram uma ameaça para a nossa democracia e, certamente, não o serão. Quero ver todo tipo de opinião, de direita ou de esquerda poder se manifestar sem receios e repressões. Quero poder me opor ao presidente em exercício sem temer pela minha liberdade e até pela minha vida, como foi o caso no tempo da ditadura militar. Lula é uma garantia da liberdade para todos, até para os bolsonaristas que lutam contra ela.

E se algum de vocês acha que a economia pode andar para frente no quadro de um regime autoritário, como foi o caso (por breves 6 anos) durante a ditadura militar, lembro que o rescaldo do “milagre econômico” (1967/1973) dos militares foi uma imensa desigualdade de renda e uma crise econômica brutal, que levou à queda do regime em 1985. No momento internacional em que vivemos hoje, nem esta possiblidade de um crescimento acelerado e fugaz será possível, pois os investimentos externos vão desaparecer, em busca de lugares menos tóxicos. Basta ler os jornais e revistas de economia pelo mundo afora para saber que a torcida contra Bolsonaro tem o aval dos grandes capitalistas. Vamos ter a nossa economia estrangulada por restrições aos investimentos e às importações de nossos produtos.

Aqui chegamos ao último ponto da minha argumentação. Você pode não estar informado sobre o tema do aquecimento global e pode até achar, como Bolsonaro, que isto não existe. Mas certamente você já ouviu falar dos movimentos cada vez mais amplos, tanto entre consumidores como entre financiadores da Europa, Japão e Estados Unidos, que sim, acreditam que o aquecimento global existe e que os desmatamentos e queimadas no Brasil têm uma importante responsabilidade no seu crescimento. E, como você não pode ignorar, Bolsonaro deu todo o apoio à ação predatória de madeireiros, grileiros, pecuaristas, agricultores e garimpeiros provocando recordes de desmatamento e queimadas na Amazônia, Cerrado, Pantanal, Caatinga e Mata Atlântica. O presidente nega o óbvio e desqualifica os organismos estatais que registram cientificamente estes fatos, mas os satélites da NASA têm as mesmas informações que o IMPE, e ainda mais precisas.

Você pode não se importar com essas coisas que se passam longe do seu quotidiano. A fumaça das queimadas pode não estar te sufocando. Você pode não ver que o futuro da nossa agricultura está ameaçado com as mudanças climáticas que já estão acontecendo e se acelerando. Pode até achar que tudo isto vai demorar a virar um problema direto para você, como começar a faltar água potável nas cidades. É um erro, porque esta realidade está chegando a toque de caixa. O chamado ponto de virada na Amazônia, momento a partir do qual a floresta não consegue mais se regenerar e entra em colapso a caminho de virar, em menos de uma geração, uma savana semiárida, depende de apenas mais 4 ou 5 anos no ritmo atual do desmatamento. E com a Amazônia seca, a humidade que ela produz deixará de trazer chuvas para o resto do Brasil. Com Bolsonaro no poder esta catástrofe, não só para nós, mas também para o mundo, estará garantida.

Espero ter ajudado na reflexão sobre em quem votar e sobretudo em quem não votar no dia 30. Pensem bem, reflitam muito e esqueçam suas antipatias, críticas e revoltas, certamente parecidas com as minhas. Não temos outra opção, se quisermos ter um futuro, neste país que já foi alcunhado de “país do futuro”.

*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).

 

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