Fascismo no Brasil?

Imagem_Stela Maris Grespan
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Luciana Aliaga*

O bolsonarismo pode ser entendido como um momento de reação – assim como no passado foi a ditadura civil-militar – gestado num período de crise de hegemonia no interior das relações sociais de forças no Brasil

Existe hoje um considerável e importante esforço intelectual dentro e fora da academia para desvendar o fenômeno da emergência no Brasil de um tipo específico de autoritarismo que se caracteriza pela recorrente busca de apoio das massas por meio do amplo recurso à propaganda, empregando especialmente as mídias digitais e as fake News, que tem sido chamado, ainda sem muita precisão, de “bolsonarismo”. O bolsonarismo – assim como o fascismo –, além de ser uma forma de gestão do poder político, demonstra pretender se tornar um movimento de massas, de caráter pretensamente revolucionário (a divulgação da reunião ministerial de 22 de abril de 2020 mostra claramente um discurso anti-establishment de Bolsonaro e de seus ministros), com forte acento no belicismo e no ataque às instituições democráticas. Em função das evidentes similaridades com formas autoritárias do passado, em especial com o fascismo italiano da primeira metade do século XX, a bibliografia tem recorrido frequentemente a conceitos como neofascismo ou protofascismo para compreender o contexto político e social brasileiro.

As dificuldades de caracterizar um fenômeno antes que ele desenvolva e manifeste todas as suas características são enormes e a utilização de terminologias ou conceitos conhecidos para desvendar fenômenos novíssimos é recorrente na história do pensamento. Bernardo Ricupero, em “Notas sobre o bonapartismo, o fascismo e o bolsonarismo” (Carta Maior, 11/12/2019), mostra como o fascismo em seus primórdios foi entendido por diferentes intelectuais da época como uma forma de bonapartismo, isto é, como parte de uma “mesma família de regimes políticos, ambos sendo formas de ditaduras diretas do capital”. Como vemos, para viabilizar a apreensão intelectual de novos eventos históricos, para os quais ainda não existe um vocabulário próprio, recorreu-se à semântica do passado, relativa aos eventos já conhecidos, já apreendidos conceitualmente. Neste mesmo sentido, Karl Marx, em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte já havia chamado a atenção para o fato de que as gerações presentes tomam emprestados os nomes do passado mesmo quando parecem revolucionar a história. Diz o autor “[…] é precisamente nessas épocas de crise revolucionária que esconjuram temerosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem de combate, a sua roupagem, para, com esse disfarce de velhice venerável e essa linguagem emprestada, representar a nova cena da história universal”. Utilizar a semântica do passado para caracterizar fenômenos novos, ainda não plenamente apreendidos é, portanto, um procedimento recorrente na história dos movimentos e do pensamento político. Este procedimento, contudo, apresenta um caráter eminentemente provisório na medida em que se baseia numa analogia que ainda é muito precária em função do nível de conhecimento do fenômeno. Neste sentido, fascismo, protofascismo ou neofascismo brasileiros podem ser entendidos como conceitos provisórios, úteis para as necessidades do momento, mas, na medida em que avança o conhecimento sobre as particularidades históricas, um novo conceito provavelmente se desenhará.

Antonio Gramsci foi um dos primeiro autores a atribuir um caráter mais geral – passível de tradução para outras realidades nacionais, portanto – ao conjunto de fenômenos que definiram o fascismo, mas ao invés de definir o próprio fascismo como conceito, propôs o conceito de revolução passiva ou revolução-restauração. O autor testemunhou e desenvolveu sua atividade militante durante a crise econômica prolongada desde 1917, com a persistência da carestia, da fome e a consequente insatisfação das classes populares italianas, que foram elementos centrais da crise política que abriria caminhos para ascensão do regime fascista. Naquele cenário, os movimentos e partidos no amplo espectro da esquerda não tiveram uma direção consciente que sintetizasse e canalizasse as reivindicações econômico-corporativas em pautas políticas capazes de criar um movimento popular organizado e coeso, o que impactou na derrota dos movimentos operários do biennio rosso (1919-1920) e abriu a via para o golpe de Estado. Nos Cadernos do Cárcere, o autor recupera essas experiências e concentra sua análise no contexto político e econômico no qual o fascismo se afirmou. Gramsci aponta os holofotes para as relações sociais e políticas de forças, ressaltando que em situações de crise como essas – não apenas na Itália da primeira metade do século XX, portanto – aumentam as oportunidades para que grupos reacionários consigam aprofundar sua influência na política: “ocorre quase sempre que um movimento ‘espontâneo’ das classes subalternas seja acompanhado por um movimento reacionário da ala direita da classe dominante, por motivos concomitantes: por exemplo, uma crise econômica determina, por um lado, descontentamento nas classes subalternas e movimentos espontâneos de massa, e, por outro, determina complôs de grupos reacionários que exploram o enfraquecimento objetivo do Governo para tentar golpes de Estado” (Q. 3, §48, p. 328).

A solução para a crise de hegemonia, portanto, quando não se equaciona em sentido progressista, popular, pode vir a ser resolvida regressivamente, pelo alto, isto é, pode ocorrer por meio de um golpe aberto de Estado ou por meio de um líder carismático, sem ruptura formal das instituições liberais, mas com caráter autoritário. No caso da Itália, o fascismo foi, na leitura gramsciana, uma solução pelo alto para a resolução da crise de hegemonia que se arrastava desde o final da Primeira Guerra Mundial. O fascismo teria sido, então, uma das formas políticas específicas a partir das quais se apresentou a revolução-restauração, isto é, como uma forma conservadora de reação e resposta pelo alto à crise de hegemonia aberta pela Primeira Guerra Mundial e pela Revolução Russa. Por esta via foi possível sustentar a ordem, modernizar em certa medida o aparelho produtivo e, ao mesmo tempo, manter as massas na passividade e obediência. A definição do fascismo como revolução-restauração foi desenvolvida, portanto, a partir da análise das relações de forças, e é esta análise – cremos – que nos ajuda a compreender os fenômenos novos, a partir dela é possível perceber que as formas políticas autoritárias e/ou reacionárias – bonapartismo, fascismo, nazismo (e bolsonarismo) – emergiram em conjunturas que apresentavam três elementos comuns: 1. Uma prévia e profunda crise econômica e uma crise de hegemonia; 2. A derrota dos movimentos dos trabalhadores, movimentos populares, da esquerda, e; 3. Emergência de forças reacionárias organizadas.

O bolsonarismo, assim, pode ser entendido como um momento de reação – assim como no passado foi a ditadura civil-militar – gestado num período de crise de hegemonia no interior das relações sociais de forças no Brasil. Neste sentido, pode ser entendido como uma forma política concreta da dialética histórica revolução-restauração, proposta por Gramsci. Neste sentido, o autor nos aponta um caminho viável para compreensão do fenômeno contemporâneo brasileiro como uma forma política específica de gestão do poder que, a despeito do vocabulário revolucionário, da promessa de renovação da política, é fundamentalmente um movimento de restauração do reacionarismo ligado tanto ao militarismo quanto ao colonialismo, estruturantes da nossa cultura política ao longo dos séculos.

O bolsonarismo, diferente da personalidade individual de Jair Bolsonaro, pode ser entendido tanto como uma forma de gestão do poder quanto como um movimento reacionário de massas, incitado pela propagação das fake news, que emerge em função de uma crise política, econômica, social e ideológica, cujas origens podem ser identificadas em 2013. Não é possível dizer, contudo, que Jair Bolsonaro tenha um projeto de Estado – diferente de Hitler ou Mussolini –, mas, ao contrário, o que se torna cada vez mais evidente é que ele possui exclusivamente um projeto individual (ou familiar) de poder e claramente está em campanha para reeleição em 2022.

Contudo, para desvendar a forma política autoritária do bolsonarismo é de fundamental importância compreender os fundamentos da cultura política brasileira, como já observou Michel Löwy em “Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil”, publicado em 2015 na Revista Serviço Social, a cultura colonial “impregna atitudes e comportamentos mesmo muito tempo depois da descolonização”. O colonialismo, que é uma estrutura social, política e cultural reproduzida ao longo dos séculos na história brasileira, está sendo sistematicamente restaurado no governo Bolsonaro como política de Estado, tanto por sua manifesta e reiterada subalternidade ao presidente norte-americano D. Trump, quanto pela ausência de políticas federais de enfrentamento a uma pandemia que ceifa principalmente as vidas daqueles sujeitos secularmente marginalizados pelo colonialismo, isto é, dos negros, dos pobres e das populações indígenas, que permanecem à mercê dos efeitos devastadores da pandemia e da exploração ilegal das reservas florestais brasileiras. Reservas totalmente desprotegidas pelo Ministério do meio Ambiente dirigido por Ricardo Salles, que, como ficou explícito na referida reunião ministerial de 22 de abril de 2020, propõe aproveitar o momento de pandemia e a distração da mídia com o tema para “passar a boiada”, “passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação” das normas de proteção ambiental, numa clara política de lesa-pátria.

O militarismo, por sua vez, como outro elemento estrutural importante na política brasileira, que ainda carrega as feridas abertas por duas décadas de extrema e cotidiana violência no período da ditadura civil-militar, é restaurado no governo Bolsonaro, ou seja, ganha novo impulso e valor com o elogio reiterado da ditadura pelos bolsonaristas e pelo próprio Bolsonaro, assim como o loteamento do Estado por militares. Os militantes bolsonaristas, em suas manifestações antidemocráticas encontram na intervenção militar, e em especial no AI-5, a solução para os problemas do Brasil, que eles imaginam estar concentrados no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, na medida em que ousam impor os limites entre os poderes. Esses são, a nosso ver, os elementos mais profundos e mais deletérios para a democracia, fundamentais para desvendar as bases do bolsonarismo, que precisam ser melhor conhecidos em suas determinações específicas.

*Luciana Aliaga  é Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais (PPGCPRI) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Outros artigos de

Este é o único artigo publicado.

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Paulo Fernandes Silveira Marjorie C. Marona Remy José Fontana Marcus Ianoni Valerio Arcary André Singer Eugênio Bucci Antônio Sales Rios Neto Luciano Nascimento Marilena Chauí Bento Prado Jr. Dênis de Moraes Marcelo Guimarães Lima Julian Rodrigues Eduardo Borges Leonardo Boff Érico Andrade Valerio Arcary Leonardo Sacramento Daniel Brazil Luis Felipe Miguel Carla Teixeira Milton Pinheiro Bernardo Ricupero Paulo Capel Narvai Marcos Silva João Lanari Bo Igor Felippe Santos Fábio Konder Comparato Sandra Bitencourt Manuel Domingos Neto Lorenzo Vitral Chico Alencar Juarez Guimarães Berenice Bento Tadeu Valadares Heraldo Campos João Adolfo Hansen Afrânio Catani Yuri Martins-Fontes Annateresa Fabris Ladislau Dowbor Manchetômetro Otaviano Helene José Micaelson Lacerda Morais Daniel Afonso da Silva Paulo Nogueira Batista Jr Jorge Luiz Souto Maior João Carlos Loebens Bruno Machado Matheus Silveira de Souza Atilio A. Boron Sergio Amadeu da Silveira Gilberto Lopes Luís Fernando Vitagliano Alexandre de Lima Castro Tranjan José Dirceu Paulo Martins Vanderlei Tenório Eliziário Andrade João Feres Júnior Anselm Jappe Andrew Korybko Henri Acselrad Marilia Pacheco Fiorillo Gilberto Maringoni Rubens Pinto Lyra José Raimundo Trindade João Paulo Ayub Fonseca Luiz Bernardo Pericás Roberto Noritomi Ari Marcelo Solon Alysson Leandro Mascaro Michael Roberts Maria Rita Kehl Mário Maestri Celso Favaretto Ricardo Abramovay Luiz Werneck Vianna Gabriel Cohn Marcelo Módolo Boaventura de Sousa Santos Anderson Alves Esteves Marcos Aurélio da Silva Airton Paschoa Carlos Tautz Eugênio Trivinho Armando Boito Ricardo Musse Elias Jabbour Ronald León Núñez Liszt Vieira Francisco Fernandes Ladeira Celso Frederico Priscila Figueiredo Vinício Carrilho Martinez André Márcio Neves Soares Jean Pierre Chauvin José Machado Moita Neto Claudio Katz Lincoln Secco Dennis Oliveira Francisco Pereira de Farias Lucas Fiaschetti Estevez Rodrigo de Faria Ronald Rocha Slavoj Žižek Renato Dagnino Luiz Roberto Alves Luiz Eduardo Soares Eleonora Albano Benicio Viero Schmidt Walnice Nogueira Galvão Gerson Almeida Fernão Pessoa Ramos Mariarosaria Fabris Antonino Infranca Luiz Carlos Bresser-Pereira Henry Burnett Ronaldo Tadeu de Souza Salem Nasser Thomas Piketty Flávio Aguiar Plínio de Arruda Sampaio Jr. Denilson Cordeiro José Luís Fiori José Geraldo Couto Tales Ab'Sáber Alexandre de Freitas Barbosa Jorge Branco Fernando Nogueira da Costa Ricardo Antunes Flávio R. Kothe Luiz Renato Martins Leonardo Avritzer Samuel Kilsztajn Daniel Costa Tarso Genro Luiz Marques Chico Whitaker Rafael R. Ioris Paulo Sérgio Pinheiro Caio Bugiato Michael Löwy Leda Maria Paulani Alexandre Aragão de Albuquerque Antonio Martins Osvaldo Coggiola Ricardo Fabbrini Bruno Fabricio Alcebino da Silva Vladimir Safatle Kátia Gerab Baggio Jean Marc Von Der Weid Roberto Bueno José Costa Júnior João Carlos Salles Francisco de Oliveira Barros Júnior Everaldo de Oliveira Andrade João Sette Whitaker Ferreira Eleutério F. S. Prado

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada