Lulismo versus bolsonarismo

Imagem: Fidan Nazim qizi
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Por LUIZ MARQUES*

A eleição entre o ímpeto golpista de Bolsonaro e o espírito republicado de Lula

O que é a política? Se fosse um affaire de interesses, deveria se chamar economia. Se abordasse as estruturas sociais, sociologia. No século 19, costumava invocar a metáfora de uma correlação de forças energéticas. Na verdade, a política transcorre no campo do simbólico, isto é, da luta pela legitimidade de crenças, esperanças e memórias validadas no imaginário dos concidadãos. Tal é o lieu reservado à esfera da política, de acordo com Lucien Sfez, em La symbolique politique (PUF). Nesta sintética formulação, que confere uma absoluta centralidade aos símbolos nos duros cotejos políticos, como entender o lulismo e o bolsonarismo?

 

O lulismo

Para André Singer, em Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador (Companhia das Letras), o lulismo equivale a um “reformismo fraco” incapaz de promover mudanças profundas na sociedade brasileira. A crítica talvez seja demasiado ácida, considerando os condicionamentos histórico-sociais da realidade nacional e o fato de que os governos Lula da Silva (2003-2010) não estavam amparados por mobilizações massivas para incrementar ações participativas concretas, que desenhassem a reordenação das classes no período.

Com certeza, teria sido diferente se a liderança sindical do ABC paulista fosse eleita em 1989, no bojo das maiores agitações registradas na história do Brasil. À época, apesar de contar com representantes minoritários na Constituinte, a esquerda soube se beneficiar da onda que retomou pautas sufocadas num ambiente de turbulências econômicas e lutas ascendentes das redivivas classes trabalhadoras. Sem o que as conquistas progressistas da “Constituição cidadã”, como a genial criação do Sistema Único de Saúde (SUS), não sairiam da nuvem de boas intenções. E aquela, sempre questionada, não seria alvo constante dos raivosos disparos da direita por acenar, supostamente, para “muitos direitos e poucos deveres”.

A crítica de André Singer se adequa à descrição da social-democracia europeia, que conseguiu gerar um consenso público a favor do Estado de Bem-Estar e, com o novo senso comum estabelecido, desperdiçou a chance de andar com determinação na direção de um paradigma pós-capitalista. O Partido Socialista (PS) e o Partido Comunista Francês (PCF), desafiados pela crise revolucionária desencadeada pela insurreição do Maio de 1968, com o apoiamento ativo dos estudantes e do proletariado, puxaram o freio com medo de dar o passo à frente do “capitalismo de rosto humano”. Nem a greve geral com a adesão de dez milhões de assalariados, na França, sensibilizou as frouxas direções partidárias – que boicotaram as mobilizações.

Quem ousou o passo à frente foi a presidenta Dilma Rousseff no pronunciamento do 1° de Maio de 2012, em cadeia de rádio e TV, ao atacar os juros escorchantes cobrados pelo sistema bancário por sacrificarem os segmentos produtivos da economia. Importante: sem que existisse um movimento organizado na sociedade civil para sustentar a corajosa iniciativa, por isso mesmo, voluntarista. Foi o impactante e surpreendente erro, não conjuntural, mas histórico, que principiou o abalo no pacto de classes deflagrado em 2002 com a Carta aos Brasileiros, de Lula, tendo por vice o empresário têxtil José Alencar. Ao tentar consertar o erro crasso, mais tarde, a emenda ficou pior do que o ruim soneto com a indicação do Chicago Old Joaquim Lewy ao Ministério da Fazenda. Que haja uma vontade do governante não é o bastante, se a autoridade não contar com condições objetivas e subjetivas para assumir posições arrojadas, mudancistas.

O diagnóstico sobre o reformismo fraco acerca das gestões lulistas tampouco se mostra convincente associado à caracterização pejorativa de um “liberal-desenvolvimentismo”, que implicaria a possibilidade irrealista da matriz neoliberal se arranjar com um propósito desenvolvimentista de índole social. Nem parcialmente seria factível, exceto se ignorada a natureza de todo antissocial do neoliberalismo. O epíteto depreciativo, acima, resulta de diatribes com o Partido dos Trabalhadores (PT), o que não ajuda em nada a entender o neoliberalismo em zonas semiperiféricas e, logo, o desenvolvimento desigual e combinado da Terra brasilis.

A figura do animal que mistura distintos tipos de evolução (ave, mamífero, réptil), bolada por Francisco de Oliveira, em Crítica da razão dualista / O ornitorrinco (Boitempo), para explicar a dualidade da economia brasileira, que articula o atraso com o avanço, propicia uma decodificação melhor das dificuldades, não somente para interpretar o verbo, mas para modificar com um vetor humanista as relações interclasses. A exótica imagem do ornitorrinco tem inspirado monografias na economia, na sociologia, na antropologia e na psicologia social, reforçando a importância intelectual do economista pernambucano. O estranho dorme ao lado.

O eleitorado do PT, no que a reflexão de Andé Singer é precisa, antes baseado nas classes médias com destaque para o funcionalismo público, depois do escândalo batizado “mensalão”, nomenclatura de fantasia inventada por um ardiloso condenado por corrupção – incentivou o realinhamento eleitoral que cimentou o carisma de Lula junto ao “subproletariado”. As eleições de 2006 e 2010 confirmam a tese, ao se analisar a procedência dos votos petistas. As atividades do subproletariado compõem o que Francisco de Oliveira designou de “trabalho sem-formas”. Trata-se da massa que, historicamente, vive com um pé “dentro”, outro “fora” do capitalismo.

Conforme José de Souza Martins, em A política do Brasil: lúmpen e místico (Contexto), as tensões e vacilações desse enorme contingente social “são determinadas pela própria dinâmica do capital, enquanto o entendimento que das tensões têm é determinado pela visão de mundo tradicionalista e mística, que é o que lhe resta do passado histórico dissimulado pela superfície de formas sociais modernas. Um característico caso de anomia”. Um belo prato para o evangelho da prosperidade. Explica-se o pêndulo das intenções de voto em 2018, e o que prenunciam as pesquisas em 2022. A ausência / presença de Lula muda o cenário das eleições.

Fenômeno que era do conhecimento do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, quando em decisão monocrática proibiu o ex-presidente, injustamente preso, de dar entrevistas e frequentar os programas de campanha da candidatura do substituto na legenda, Fernando Haddad. O sequestro da soberania do povo atentou contra a Carta Magna e coroou a espúria e suja articulação midiático-judicial-militar, iniciada na 13° Vara Federal de Curitiba e ratificada pelo Tribunal Regional Federal (TRF-4 / Porto Alegre), com o aval do STF em Brasília. A Suprema Corte se portou como Mínima Corte à retirada dolosa de Lula do pleito em que liderava todas as pesquisas, por larga margem. O nome do conluio é simples: golpe.

Se dirigentes têm o arco de deliberações limitado pela desmobilização popular, o povo também não logra o atendimento de suas demandas represadas diante de uma situação de apatia generalizada. A criminalização e a desmoralização da seara política, pela solapa da mídia corporativa, enfraqueceu a reação possível ao golpismo, por apagar as diferenças ideológico-partidárias. O general Eduardo Villas-Bôas, Comandante do Exército, saiu da coxia e entrou na peça teatral de triste final, com a unção de Jair Messias, como aquele ator que trouxe de volta ao palco as Forças Armadas (FFAA) para o papel de usurpadora dos poderes dos civis. Não espanta o inchaço da administração central, com mais de oito mil perdidas criaturas das casernas.

 

Símbolos do lulismo

Aqui, o principal é salientar alguns dos símbolos políticos ligados ao PT e ao lulismo. Em primeiro lugar, o pertencimento à família política que começa com Getúlio Vargas e passa por João Goulart e Leonel Brizola para chegar em Lula e Dilma. Ciro Gomes não quis se integrar à linhagem; preferiu defenestrar a Greg News e rezar missa para satanás. Nenhum militante da estrela-guia contesta a filiação na árvore genealógica socialista / trabalhista, o que é positivo por trazer à tona a memória de governos que se empenharam em saldar dívidas antigas com as classes laboriosas, bem como para enfrentar o ranço atávico do colonialismo (racismo) e do patriarcado (sexismo), que servem de suporte à dominação capitalista. A compreensão das interseccionalidades – que oprimem e exploram os negros / negras, as etnias nacionais originárias e as mulheres – expõe a segunda notável vitória do espectro simbólico que ora distingue o PT e o lulismo.

Na lista, constam a preocupação com o resguardo da Petrobrás e o pré-sal como símbolos da independência econômica nacional. A melhoria das condições de subsistência da “ralé”, através de programas de assistência social condensados no Bolsa Familia. O programa “Minha Casa, Minha Vida”, que empregou mão de obra na construção civil. O Luz Para Todos, que aportou eletricidade para quem permanecia nas trevas do medievo. a valorização do salário mínimo além da inflação, pari passu, com as aposentadorias que movem a enferrujada roda da economia nos pequenos e nos médios municípios. O respeito às comunidades quilombolas, a demarcação das terras indígenas e a aprovação da Lei Maria da Penha, com a criação de mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e o feminicídio – que são itens libertadores.

Ainda, a instalação de cotas étnico-raciais para o acesso ao Ensino Superior, com a inauguração de dezoito novas instituições públicas, acompanhadas pela ampliação dos campus universitários para cobrir as regiões do mapa territorial. As reparações alavancaram a mobilidade social de indivíduos com extração na fatia populacional dos excluídos do saber. Já a recuperação da indústria naval e a benfazeja transposição do rio São Francisco diminuíram as velhas diferenças regionais, sendo gatilho para os novos pólos de crescimento econômico.

Em suma, “a vida era melhor” ao tempo de Lula que, ao cabo do segundo mandato, desceu a rampa do Palácio do Planalto com formidáveis e estonteantes 87% de aprovação. Esses elementos ungiram Luiz Inácio em “mito” para o subproletariado. Em paralelo, enrijeceram o escudo do PT perante o massacre padecido após as manifestações de 2013 e os processos de lawfare, que minaram o partido e os movimentos na última década. Ao ponto de O Estadão elucubrar a “escolha difícil” que era ter de optar entre o vil fascista, que admirava os seres abjetos de um regime covarde, e o democrata com uma experiência bem-sucedida em gestão pública.

 

O bolsonarismo

“O bolsonarismo frutificou-se no solo adubado pelo movimento cultural dito pós-modernista e pela reconfiguração da subjetividade, e da identidade individual promovida pela sociabilidade neoliberal”, relata Ricardo Musse em Governo Bolsonaro – retrocesso democrático e degradação política (Autêntica). Levantamentos estatísticos revelam que o apoio ao famigerado desgoverno está concentrado nas classes médias e altas. Engloba uma multidão de ressentidos que – real ou imaginariamente – creem ter sofrido um descenso na escala social, em função das políticas públicas acionadas pelas administrações populares. Gravitando em torno dos consuetudinários privilégios do topo da pirâmide, porém, não canalizaram as frustrações, insatisfações e recalques para um enfrentamento às estruturas sistêmicas de exclusão, senão que para as esquerdas com destaque para o PT e o Lula.

O antipetismo e o antilulismo converteram-se nos inimigos a esmagar, nesta estreita faixa de renda, consumo e soberba neoescravagista. Os temores aos “comunistas” ouvidos no fatídico 1964 foram reatualizados, embora a Guerra Fria tenha encerrado o ciclo com o esfacelamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (ex-URSS). A fratura da sociedade não é o problema. O mote do igualitarismo, sim, é encarado como um obstáculo às ardentes preces de ascensão pelos bolsões de ressentimentos, que perfazem as bolhas de fel e rancor.

“O comunismo é um fantasma retórico, usado por demagogos de várias tendências políticas como arma na luta ideológica, sem nenhuma correspondência com o quadro geopolítico global. O discurso anticomunista, por exemplo, não apenas faz parte das ideologias de extrema-direita, mas também galvaniza o imaginário de parcelas das classes médias temerosas de perder sua posição relativamente confortável na sociedade”, afirma Newton Bignotto, em Linguagem da Destruição: a democracia brasileira em crise (Companhia das Letras). O bolsonarismo se alimenta num pântano fantasmático. Frações da pequeno-burguesia saúdam as chacinas das comunidades de Jacarezinho e Cruzeiro no Rio de Janeiro, ou da Cracolândia em São Paulo. Pobre é bacana na bateria da Mangueira, no carnaval. Em shopping center faz rolê. Na praia, vexame, com farinhada. Perto é um bandido perigoso.

Na falta de ideais programáticos para a construção de uma verdadeira nação, para todas e todos, e de uma república que defenda a igualdade formal e, num crescendo, material – o projeto encampado pelo desgoverno Bolsonaro é o da desconstrução dos inusitados avanços conquistados com as diretrizes do PT / Lula. Nenhuma novidade. O anúncio foi feito em março de 2019, nos Estados Unidos, em reunião com direitistas norte-americanos. “Nós temos é que desconstruir muita coisa”. O antipetismo e o antilulismo levam à política antipovo.

A política antipovo, por extensão, antinacional conduz as privatizações que não diferem de doações do patrimônio público à ganância e à rapinagem do capital privado, com o desavergonhado endosso presidencial. A nomeação do incompetente general Eduardo Pazuello ao Ministério da Saúde, em plena pandemia, somou a péssima gestão da crise sanitária à sabotagem contínua de procedimentos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), deixando faltar oxigênio hospitalar e aumentar, de maneira cruel e vertiginosa, o número de óbitos evitáveis. Plantavam-se as sementes das privatizações.

A composição ministerial do desgoverno, transformado num pária internacional, evidencia o traço mais saliente das ações negativas de Bolsonaro – o emblema destrutivo. Os ministros pinçados são antagonistas das áreas em que atuam. Os que passeiam na Educação são desqualificados, que detestam agendas de interesse dos reitores. No Meio Ambiente, um exterminador tirava fotos sobre troncos desmatados na Amazônia. Na Cultura, o secretário guardava arma no gabinete. O generalato não ficou atrás. As pastas que pisam, perdem importância.

Não contentes com as barbeiragens na Esplanada, as FFAA comportam-se como um partido político e, por intermédio dos Institutos Villas-Bôas, Sagres e Federalista apresentam agora um “Projeto de Nação: o Brasil em 2035”, que pretende colocar o ponto terminal na gratuidade do SUS e cobrar mensalidades nas universidades federais. Projeto coordenado pelo general Luiz Eduardo Rocha Paiva, que carrega no currículo uma repulsa à Comissão Nacional da Verdade e uma exaltação à Organização Não-Governamental (ONG), Terrorismo Nunca Mais, criada pelo coronel torturador condenado por crimes hediondos na ditadura militar, Carlos Alberto Brilhante Ustra. A aliança entre o neoliberalismo e o neofascismo delineia o próximo quadriênio de assalto aos direitos e ampliação das desigualdades. Onde aprendem tantas maldades?

O ímpeto golpista não é disfarçado pelo mandatário-mor, de plantão. O completo desmonte da institucionalidade é uma ideia fixa da malta de seguidores fanatizados. Seu movimento se sente apartado das concessões lesa-pátria, qual as sigilosas emendas parlamentares no Congresso. As concessões indecorosas ao Centrão não são desnudadas como uma capitulação institucional ou um rompimento com os compromissos de campanha. São cobertas pela catatônica indiferença extra-institucional devotada à política tradicional. O fascismo mussoliniano e o neofascismo bolsonariano não se importam com traquinagens interpares, obcecados que estão pela vã promessa de transmutar os respectivos países em grandes players no futuro.

As incongruências das agremiações convencionais cedem espaço às batalhas renhidas das hordas bolsonaristas, nas redes sociais e nas ruas, pela posse de um poder ilimitado que permita destruir qualquer vestígio da herança democrático-republicana. Esta, é repudiada e lançada no lixo, na expectativa de que algo indefinido ocupe o pódium na corrida e revolucione o mundo. “Eles” não devem governar; “nós” queremos governar. Eis a consigna que preenche as cabeças acéfalas dos cruzados obscurantistas, imbuídos da sagrada missão.

O irracionalismo serve de estofo filosófico ao bolsonarismo, mesmo que atente contra a população. Viu-se durante a propagação pandêmica do coronavírus. Vê-se, há três longos anos, na suspensão providencial das atividades da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão que deveria avaliar a qualidade dos alimentos. A medida é necessária para esconder os efeitos maléficos da liberação de agrotóxicos venenosos, cancelados em países governados com decência. Depois da globalização, a porta que se abre recende o autoritarismo e o totalitarismo, ensaiados em um ritmo paulatino pelas provocações e transgressões à democracia constitucional, que testam a resiliência tropical da subtraída República Federativa do Brasil.

 

Símbolos do bolsonarismo

O bolsonarismo resgata a memória de ditadores de quepe e traje verde-oliva que, por vinte e um anos sem liberdade, censuraram, reprimiram, prenderam e arrebentaram com reiterados delitos valorosos rebeldes, ao revés dos direitos humanos. Se os heróis de Cazuza morreram de overdose, os pseudo heróis de Bolsonaro trocaram o certificado de Homo sapiens pelo de Homo tortuosus. Eram facínoras que se deleitavam na tortura de democratas, com sadismo, sem remorso. Sentinelas de uma distopia que despreza os valores democrático-civilizatórios. Deus, em sua boca blasfema, protege genocida e rifa espingardas calibre 12.

Os símbolos políticos cultuados pelo bolsonarismo são falsos. O nacionalismo não tem conteúdo patriótico, o governo entreguista dilapida o patrimônio estratégico acumulado por gerações. A bandeira no pescoço não denota respeito aos trabalhadores e empresas nacionais, na esteira da Lava Jato onde igual não denotava, o que tornou o juiz parcial réu em ação judicial. A pátria é um reles entreposto comercial para multibilionários espertos, que descartam a proposta do mercado interno de massas. As camisas amarelas uniformizam zumbis sem noção, que pedem selfies aos policiais militares. O fetiche da liberdade de expressão legitima o bordel da opinião contra a ciência e o politicamente correto, abole os controles sociais e solta os cachorros contra a modernidade. O brado pelo “povo-uno” não unifica; sectariza e tribaliza a nação.

A simbologia de que se orgulham tem viés necropolítico, não enaltece a vida da coletividade. Exprime uma vontade de potência que minimiza a empatia, em troca da alegoria pervertida do super-homem nietzscheano, forjado nos Clubes de Tiros entre músicas agro-sertanejas de sofrência. Suas medalhas não honram o bem comum para uma brasilidade digna; revigoram a fria lógica do senhor / escravo e a ética dos fortes / fracos – como os meninos estúpidos e mimados que, na hora do recreio, aplicam o bullying nas inteligências da escola.

Para Ruy Fausto, em Democracia em risco? (Companhia de Letras): “A vitória da extrema-direita no Brasil se inscreve em um movimento mundial de forças antiemancipatórias. Seu segredo não é a liquidação direta e imediata da democracia, mas sua ocupação. O bloqueio da alternância é sua pedra filosofal”. A descomunal comparação com os símbolos do lulismo traduz o confronto entre valores da civilização e contravalores da barbárie. O estágio superior do neoliberalismo é o neofascismo, permeado por um saudosismo conservador.

 

Conclusão

A biografia de Lula, como estampou Fernando Morais, é uma história de superações em cascata desde a infância. A ditadura metaforizou a gigantesca pedra no caminho dele e do país. A militância sindical, depois partidária em nível nacional e internacional foi o portal para a sua e para a nossa elevação de consciência. Vencer a pobreza, conquistar a democracia e projetar uma nação com altivez na arena global livrou o país da “síndrome de vira-lata”, que se refugiou na rasa cultura e sobeja empáfia das “elites” autóctones que, contritas, ao descer do avião em viagens à Miami e Orlando batem continência ao pavilhão estadunidense.

Decerto, a auto-emancipação do povo não depende da burguesia guaipeca. O complicador é que a governança lulista amiúde pareceu fazê-la depender, tão só, de políticas públicas condominiais. As mudanças nem sempre foram apreendidas pela lente da socialização de inversão de prioridades, perceptível pelos beneficiários. A capacidade de mudar o posicionamento social foi creditada ao empenho individual ou à conversão religiosa, em vez de às políticas estatais de cunho popular e nunca dantes na história implementadas. Nisto, justamente, consiste o desafio do terceiro mandato para que o “reino da necessidade” esteja imbricado de forma orgânica com o “reino da liberdade”. Chama a atenção no trato afetivo e acolhedor do PT e de Lula, para com o povo brasileiro, uma consistente e imprescindível “ética da responsabilidade”.

A biografia de Bolsonaro é o desfile mambembe de mediocridades iniciadas no Exército, de onde foi afastado por indisciplina e aposentado aos trinta e três anos de idade. De lá para cá, viveu não “para” a política por vocação, mas “da” política por profissão. No Legislativo, foi figurante tosco, fisiológico. A fama obtida na Presidência envergonha os compatriotas no exterior. Internamente, reclama que não consegue governar, e culpa as instituições pela inaptidão para o cargo. Os filhos seguem as rachadinhas, quer dizer, as pegadas do pai.

O modelo de política do bolsonarismo, vocacionado para a implosão do Estado de Direito, não visa competir na raia das políticas públicas protetivas, pois não se incomoda com o mal-estar resultante das iniquidades socioeconômicas; aprofunda-as em prol dos poderosos. Visa, sim, aos moldes do neopentecostalismo, fixar uma sinuosa linha de orientação que assegure o total laisser-faire na sociedade, livre das sanções por quebra de protocolos.

Querer é poder: não se vacinar, desmatar, sonegar, estuprar, extorquir funcionários do gabinete, matar Genivaldo em câmara de gás enquanto o patrão anda de moto sem capacete, fazer piada com pacientes da covid-19. Quem pode mais, chora menos, taóquei. Sobressaem os deslizamentos de vulgaridades nos esgares e falas lacunares de Bolsonaro. Passaporte colonialista e patriarcalista de cada trejeito que identifica o “homem sem qualidades”.

Assim como uma fábula moral deve ser tecida com fios que permitam distinguir, com transparência, a diferença entre o bem e o mal; assim vai se desenrolar a disputa que se avizinha, nas urnas. Useiro e vezeiro de mentiras pessoais e robotizadas, com o recurso de algoritmos, o postulante que teme cair do pedestal e pegar uma cadeia pelo conjunto de absurdos, não hesitará em utilizar quaisquer métodos para descolar a reeleição. O desespero com a perspectiva de maior controle sobre as fake news, via internet, demonstra que sua candidatura não se cria longe de tretas, de falsidades e de manipulações. Os dominantes se reconhecem no embuste.

A candidatura oposicionista, que ponteou vigílias combatentes com sonhos generosos, parte de uma concepção política progressiva e disruptiva. Habita em outro patamar de práticas. Dialoga com a percepção dos indivíduos e com o espírito republicano. Os Comitês Populares de Luta se propõem congraçar a militância política e social contra a vertente do fascismo, que é o bolsonarismo. Os Comitês são locais de organização do movimento de participação cívico-solidária. Ali se entrelaçam crenças e esperanças no coração e na mente de pessoas que perseguem a bíblica “terra sem males”, Canaã, que Thomas Morus acarinhou de Utopia. E porque a política sem memória é uma política sem sujeito – Marielle presente! Paulo Gustavo presente!

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

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