Uma travessia difícil

Imagem: Madison Inouye
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ  WERNECK VIANNA*

A restauração da cultura democrática se encontra na dependência da musculatura que vierem a adquirir os entes da sociedade civil na luta por suas reivindicações

O caminho que se abre à frente do governo Lula-Alkmin é de um desfiladeiro em que estão entrincheirados em suas margens atiradores de precisão e toda sorte de inimigos empenhados a impedir seus passos rumo à reconquista da democracia. Para esse intento contam menos os aderentes raiz do regime Bolsonaro e bem mais com os setores das elites que se sentem ameaçados pela perda dos privilégios de que desfrutavam no governo anterior. Essa será uma passagem de alto risco, a exigir extrema perícia dos que lideram sua condução, certamente em nível superior ao que ocorreu no curso da campanha eleitoral.

Na hora de partida sua perícia já é testada pela falta de recursos orçamentários que viabilizem a continuidade do programa bolsa família, compromisso seu compartilhado com o governo a que sucede, a que se acrescenta igual carência, diante da crise social que aflige a imensa massa de vulneráveis em situação de pobreza extrema, de meios para enfrentar os males que padecem. Nessa aziaga circunstância, o governo eleito recorreu ao remédio heroico de uma emenda constitucional a fim de lograr uma dotação orçamentária capaz de minimamente garantir recursos para o atendimento emergencial das necessidades imperativas da população.

Nesse sentido, o futuro governo se encontra enredado em difíceis negociações com o Legislativo, dominado em sua maioria por forças que lhe foram adversárias na disputa eleitoral, salvo se perfilharem uma via alternativa à emenda constitucional como uma medida provisória como primeiro ato de governo. Sem dúvida, a recente decisão do STF que julgou inconstitucional o orçamento secreto e os poderes que concedia aos chefes do poder legislativo retira algo de força desse poder, mas não a ponto de lhe deixar desarmado diante do novo governo, que tudo indica optará pelo caminho razoável da negociação da emenda constitucional segundo manifestações de suas lideranças, processo que ora se conclui.

No caso, as forças políticas do Centrão recobram o exercício de papeis influentes e, de algum modo, encontram seu lugar no governo entrante. Tudo como dantes no quartel de abrantes, uma vez que a política de conciliação surge como a sua marca distintiva, sua forma de palmilhar o terreno minado que tem pela frente, reiterando o estilo do governo FHC de compatibilizar o moderno com o atraso sob ligeira predominância, onde couber, do primeiro.

Tal deverá ser o preço a ser pago, forçado pelo papel de destruição que o governo Bolsonaro deixa em seus rastros ao invertebrar a sociedade em seus elementos mais simples, em sua política de terra arrasada dos nexos sociais orgânicos de acordo com os ditames de sua inspiração neoliberal de que essa coisa de sociedade não existe. Replantar o tecido social destruído demandará tempo, persistência e clareza de propósitos. Trata-se de reanimar a vida sindical, os movimentos associativos e os partidos políticos de esquerda, nas cidades e no mundo agrário, este, hoje, tristemente confiado à manipulação dos interesses do agronegócio.

Conceder alento ao moderno, numa sociedade como a nossa que viveu décadas de modernização autoritária, importa instaurar um estatuto de plena autonomia aos seus seres sociais, tarefa que reclama uma intelectualidade ativa que abra pela reflexão caminhos para novas trajetórias críticas sobre o passivo da nossa história e ilumine novas possibilidades de ações progressistas.

A restauração da cultura democrática se encontra na dependência da musculatura que vierem a adquirir os entes da sociedade civil na luta por suas reivindicações, a fim de contornar o cenário hostil, atualmente configurado numa composição adversa das câmaras congressuais, buscando espaço e oportunidades que viabilizem o reencontro da sociedade com suas melhores tradições.

O futuro está em aberto, e, se bem que no nosso passado encontremos boas inspirações, ele está a exigir de nós espírito de descoberta e de invenções audaciosas num contexto exigente e desafiador, que só poderemos enfrentar na medida em que começarmos a caminhar, passo a passo, na busca de uma sociedade igualitária e justa.

*Luiz Werneck Vianna é professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio. Autor, entre outros livros, de A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Revan).

                 O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O negacionismo ambiental e a inundação de Porto Alegreporto alegre aeroporto alagado 14/05/2024 Por CARLOS ATÍLIO TODESCHINI: Porto Alegre tem o melhor sistema de proteção contra cheias do Brasil. É considerado um “minissistema holandês”. Por que esse sistema falhou em sua função de evitar que a cidade fosse alagada?
  • A mão de OzaJoao_Carlos_Salles 14/05/2024 Por JOÃO CARLOS SALLES: O dever do Estado brasileiro e a universidade contratada
  • A universidade operacionalMarilena Chauí 2 13/05/2024 Por MARILENA CHAUI: A universidade operacional, em termos universitários, é a expressão mais alta do neoliberalismo
  • Pensar após GazaVladimir Safatle 08/05/2024 Por VLADIMIR SAFATLE: Desumanização, trauma e a filosofia como freio de emergência
  • Por que estamos em greve nas Universidades federais?Gatinho 09/05/2024 Por GRAÇA DRUCK & LUIZ FILGUEIRAS: A greve também busca disputar os fundos públicos com o capital financeiro e forçar o governo a se desvencilhar da tutela desse mesmo capital e de grupos políticos de direita
  • A Universidade funcionalistachave 11/05/2024 Por JEAN PIERRE CHAUVIN: O contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios
  • Um ensaio sobre a libertaçãoWolfang leo maar 11/05/2024 Por WOLFGANG LEO MAAR: Prefácio à edição brasileira do livro recém-editado de Herbert Marcuse
  • Suicídios de policiais em São Paulosombra 9 12/05/2024 Por THIAGO BLOSS DE ARAÚJO: A indiferença de Tarcísio de Freitas com as dezenas de mortes resultantes das operações policiais se amplia para uma indiferença com as mortes dos próprios policiais por suicídio
  • Edward W. Said – crítico literário e intelectual públicowalnice 10/05/2024 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Os trabalhos de Edward W. Said alçam-no à posição de um dos mais influentes pensadores das implicações políticas da cultura em nosso tempo
  • Dias perfeitos – o peso do ordináriodias perfeitos 2 07/05/2024 Por ALEX ROSA COSTA: “Dias perfeitos” expõe não as fissuras de pequenas belezas cotidianas, mas a rotina como forma de proteção contra o inesperado, o encontro, o outro, a reflexão

AUTORES

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES