Mudança social e burocracia

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por RUBENS PINTO LYRA*

A mudança não pode se circunscrever à economia e ao poder. Deve englobar todas as instituições que servem à ordem do capital

As esquerdas querem mudar, substituir uma ordem injusta, baseada na opressão econômica, social e política, por outra, capaz de favorecer o aprofundamento da igualdade social, da liberdade e da democracia.

Mas a mudança não pode se circunscrever à economia e ao poder. Deve englobar todas as instituições que servem à ordem do capital, necessariamente inoculadas pelo vírus do autoritarismo. Uma das mais relevantes é a burocracia, que se consolidou com o advento do capitalismo moderno.

Também não pode ignorar a subjetividade dos indivíduos, na qual estão presentes, em diferentes graus, a aceitação dos valores dominantes e atitude conformista em relação a estes. A burocracia é uma instituição que se consolida com o capitalismo moderno, servindo, por excelência, a esse desiderato.

Max Weber, seu maior teórico, contrariamente aos que muitos pensam, é crítico contundente dela. Ele dizia que “burocracia é alienação. É horrível pensar que o mundo venha a ser dominado por nada menos que homenzinhos colados a pequenos cargos e lutando por outros maiores. Uma situação que será vista dominando uma parte sempre crescente do espírito do nosso sistema administrativo atual. A compulsão burocrática é suficiente para levar alguém ao desespero”(1984, p. 70).

A alienação diz respeito à uma situação em que as pessoas não falam em seu nome, não têm o domínio de seu próprio destino e não são incluídas no processo de decisão, outros falam em seu nome. Não é por acaso, sublinha Prestes Motta, que “algumas das virtudes menores do protestantismo ascético, tais como integridade, conformismo e realização, desempenham um papel de enorme relevância na determinação do homem organizacional” (1984, p.107).

Eric Fromm, na sua obra O dogma de Cristo, concluía que “o moderno sistema criou o homem da organização, sistema de burocracias imensas que opera um controle suave sobre os que controlam – antes pela manipulação que pela força. Ele não desobedece, pois nem sabe que está obedecendo. Pensa, e faz que ‘sabe’ ser razoável.    Aliás, quem pode desobedecer a um computador eletrônico? A obediência não é reconhecida como obediência porque é racionalizada como ‘bom senso’, como a satisfação de necessidades objetivas incontornáveis. O indivíduo se sente pequeno face ao gigantismo da burocracia, aprisionado em seus labirintos, sem ter a quem recorrer. Aceita o que ela prescreve, suas normas e determinações irracionais, em nome da obediência à razão. Cultiva a ilusão de que não está sendo manipulado” (1965, p. 156-157).

Trata-se de percepção ilusória, anestesiante, que faz a engrenagem burocrática ser vista como um mal necessário, contra o qual não é possível lutar. Contudo, mesmo tratando de poderoso instrumento de controle social, muitos “revolucionários”, renitentes, ainda argumentam: “há outras prioridades a tratar”!

Essa atitude face à burocracia subdimensiona o seu papel na reprodução da ordem existente, permitindo que se mantenha como é, a despeito de seu elevado grau de irracionalidade e ineficiência. Bem entendido, do ponto de vista do “sistema”, ela é racional, pois secreta o autoritarismo de que ele não pode prescindir.

Mas as forças que determinam à submissão acrítica à burocracia não são poderosas a ponto de impedir a explosão lenta das potencialidades criadoras do homem, e o próprio desejo de realização acaba por se constituir um poderoso agente de mudança.

Para mudar, os críticos do establishment necessitam desconstruir as ficções elaboradas para encobrir a realidade, mas não apenas aquelas que querem convencer os indivíduos das virtudes incomparáveis do mercado. Mas também as que concorrem para transformá-los em meros “dentes” da engrenagem estatal, ou de empresas privadas.

A sensação de impotência, resultante da incapacidade de mudá-la, se prolonga no campo social e político. Acostumando-se a ser apenas um “dente” da engrenagem burocrática, o indivíduo não tem ânimo para adotar uma atitude de contestação ativa ao establishment.

Com efeito, posturas inovadoras e inclusivas, indispensáveis à construção de uma sociedade democrática e igualitária, são incompatíveis com o conformismo entranhado que comanda o funcionamento da burocracia vigente.

Na opinião de Michel Croisier, importante estudioso da burocracia: “O rendimento da burocracia depende da capacidade do conjunto humano que a constitui, de coordenar suas atividades de forma racional. Por sua vez, essa capacidade depende da evolução técnica, mas, sobretudo, da forma como os homens são capazes de promover uma cooperação efetiva” (1963, p. 9).

Entendemos que isso só será possível mediante o controle externo da máquina burocrática. Contudo, as iniciativas até agora tomadas para torná-lo efetivo não prosperaram. Com efeito, no âmbito do Estado, ouvidorias, órgãos de controle interno e externo, até mesmo o orçamento participativo, têm fracassado rotundamente nas suas tentativas de simplificá-la, tornando-a eficiente e sujeita ao controle da sociedade.

Isto se deve ao fato de que elas partiram da própria burocracia, dos governantes que a utilizam para alimentar o autoritarismo que os sustentam e de ouvidorias, que, sendo obedientes ao gestor, não representam, obviamente, o cidadão. Com exceção do orçamento participativo, autônomo e democrático, que feneceu em virtude de uma correlação de forças políticas crescentemente desfavoráveis às esquerdas.

Necessitamos de propostas que tenham origem na sociedade organizada, ou em partidos que encampem suas reivindicações em prol de instrumentos idôneos de controle social, independentes dos poderes de Estado. E que se dê efetividade e prioridade ao seu encaminhamento e implantação.

Somente esses instrumentos serão capazes de submeter à burocracia estatal aos princípios constitucionais de economicidade, eficiência e transparência na administração. E, mais geralmente, à própria democracia.

*Rubens Pinto Lyra é Professor Emérito da UFPB. Autor, entre outros livros, de Bolsonarismo: ideologia, psicologia, política e temas afins (CCTA/UFPB).

Referências


CROISIER, Michel. Le phnomène bureaucratique. Paris: Editions du Seuil. 1963.

FROMM, Erich. O dogma de Cristo: Rio de Janeiro: Zahar, 1965..

PRESTES MOTTA, Fernando. O que é burocracia? São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.

WEBER, Max. Economia e sociedade (Vol. II). São Paulo: Editora UNB, 2004.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
A fragilidade financeira dos EUA
Por THOMAS PIKETTY: Assim como o padrão-ouro e o colonialismo ruíram sob o peso de suas próprias contradições, o excepcionalismo do dólar também chegará ao fim. A questão não é se, mas como: será por meio de uma transição coordenada ou de uma crise que deixará cicatrizes ainda mais profundas na economia global?
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O ateliê de Claude Monet
Por AFRÂNIO CATANI: Comentário sobre o livro de Jean-Philippe Toussaint
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Donald Trump ataca o Brasil
Por VALERIO ARCARY: A resposta do Brasil à ofensiva de Trump deve ser firme e pública, conscientizando o povo sobre os perigos crescentes no cenário internacional
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES