Direitos fundamentais dos Yanomamis

Imagem: Markus Winckler
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO GODOY DRIGO*

Sem questionar o capitalismo não haverá base jurídica ou filosófica capaz de prevenir a ocorrência de novas tragédias

São cenas lamentáveis, que embrulham o estômago e causam indignação em qualquer pessoa razoável que tome contato com a tragédia do povo Yanomami, recentemente publicada pelos grandes meios de mídia no Brasil. Desnutrição, fome, doenças, invasão de terras, assassinatos, estupros, tudo sob descaso e atuação de má-fé de um governo de interesses completamente apartados da preservação não apenas dos povos originários como também da promoção da vida humana digna em geral.

A análise que se deve fazer dos eventos do verdadeiro genocídio Yanomami promovido pelo governo de Jair Bolsonaro, contudo, não se deve prender a um julgamento moral apenas. Não se trata somente da realização do mal por governantes de má índole e más intenções. Apesar de serem constatações verdadeiras, deve-se analisar o tema sob as perspectivas jurídico-filosóficas, também, que permitem observar a materialidade das relações sociais que levaram à condição lamentável a que foram submetidos os povos originários.

E, nesse sentido, imperioso salientar que havia garantias jurídicas, inclusive e principalmente no âmbito constitucional, estipuladas previamente no Brasil contra tal espécie de absurdo civilizacional. Mesmo um governante ideologicamente apartado dos ditames daquilo que se considera civilização deveria submeter-se à Constituição e ao direito de um país, pois não!?

Ora, a Constituição Federal, desde 05 de outubro de 1988, é profícua em prever direitos e garantias fundamentais quanto à vida, à saúde, à segurança alimentar, em geral, e, especificamente, em relação ao resguardo dos povos originários brasileiros. Um rápido olhar em seus artigos 1º, 3º, e 5º nos dá a ideia dos direitos fundamentais gerais de todo e qualquer ser humano no Brasil e, além disso, os artigos 231 e 232 (lamentavelmente em capítulo que usa o termo “índios”), estipulam direitos fundamentais específicos.

Assim é que, durante o governo Bolsonaro, já havia normas constitucionais que determinavam que à União compete proteger e respeitar a organização social, costumes, línguas e crenças dos povos originários em suas terras, nas terras que tradicionalmente ocupam (art. 231, “caput”). Também normas havia que garantiam o uso dessas terras para o bem-estar e a reprodução física e cultural dos povos originários (art. 231, § 1º).

Consultem-se os principais manuais de direito que versam sobre o tema supracitado e se observará que direitos são considerados fundamentais pelo que revelam de determinante “sobre a estrutura do Estado e da sociedade, de modo especial, porém, no que diz com a posição nestes ocupada, pela pessoa humana”[i] e que há um grande avanço no direito constitucional contemporâneo, porque que é o resultado “da afirmação dos direitos fundamentais como núcleo da proteção da dignidade da pessoa e da visão de que a Constituição é o local adequado para positivar as normas asseguradoras dessas pretensões”.[ii]

São posturas idealistas. Pretendem impor à realidade o que os conceitos ideais de direito produzem nas mentes dos estudiosos. Fosse como afirmam, onde estavam os direitos fundamentais e humanos dos Yanomami durante o governo de Jair Bolsonaro? Como a tragédia se pode instalar num Estado completamente normatizado para proteção e promoção da dignidade desse povo?

Somente uma análise crítica da materialidade específica das relações sociais pode dar resposta adequada nos âmbitos jurídico e filosófico a tais questionamentos.

O governo de Jair Bolsonaro, consideradas à parte todas as disparidades e idiossincrasias intelectuais de seus protagonistas, foi o desenvolvimento de um projeto de poder voltado à reorganização das relações de produção capitalistas na sociedade brasileira. Uma aceleração das medidas demandadas pelas forças socioeconômicas que promoveram o golpe de Estado contra a presidenta Dilma Roussef, em 2016, levaram Michel Temer ao poder de forma ilegítima e culminaram na eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.

“Tanto como a crise, o núcleo do golpe é econômico: a acumulação capitalista nacional e internacional hodierna busca se resolver por meio de maiores espoliações, engendradas por frações burguesas. O movimento do golpe a partir da crise é uma investida da luta de classes capitalista contra as classes trabalhadoras. Majoração da exploração do trabalho, financeirização da previdência social e privatização são seus marcos imediatos. Se politicamente o golpe se expandiu e se adaptou às circunstâncias, iniciando-se pela direita brasileira tradicional para fincar-se na extrema direita, as frações do capital, mesmo que originalmente tivessem outras preferências, comandam o movimento do golpe sem disjunções quando este deságua em Bolsonaro. As margens de seu jogo não apresentam reserva moral prévia contra extremismos reacionários”.[iii]

Com efeito, o capitalismo tem uma, e apenas uma, lei geral: a acumulação de capital. Não são prioridades no capitalismo: a vida, a dignidade da pessoa, a alimentação, a saúde, os povos originários. O direito é uma das formas sociais pela qual se erigem, se mantêm e se reproduzem as relações sociais capitalistas e, dessa forma, o direito é parte estruturante do capitalismo.[iv] Direitos fundamentais, como consequência, não se sobrepõem, jamais, às demandas econômicas do capital.

À pergunta: onde estavam os direitos fundamentais e/ou humanos dos Yanomami durante o governo de Jair Bolsonaro, deve-se responder: estavam aí, positivados, tal qual permanecem hoje. Ou seja, sua existência positivada em normas constitucionais em nada alterou, influenciou e, muito menos, impediu, que a exploração dos territórios Yanomami pelos interesses econômicos do agronegócio e da mineração fosse levada a cabo em detrimento absoluto das vidas, da dignidade, da saúde dos povos originários. A tragédia Yanomami é a atuação dos grupos econômicos que a exigiram e que foi levada a cabo por um governo refém de seus interesses.

Ainda, no capitalismo não há território como formação absoluta de proteção de qualquer pessoa que seja. À proposição cínica e idealista da doutrina jurídica de que território “não é noção que se possa apanhar no mundo natural, mas no mundo jurídico”,[v] sobrepõem-se avaliações científicas materialistas como a do geógrafo brasileiro Antonio Carlos Robert Moraes, que apresenta a compreensão de que território é, ao mesmo tempo, uma articulação “dialética entre a construção material e a construção simbólica do espaço, que unifica num mesmo movimento processos econômicos, políticos e culturais”.[vi]

Logo, sob o capitalismo, a noção de território está submetida à função que exercem os interesses socioeconômicos sobre determinada área, o que Moraes denomina, especialmente diante do exemplo brasileiro, de “fundos territoriais”,[vii] ou seja, o território é entendido pelos grupos dominantes e pelos governantes a eles submetidos como verdadeiras reservas disponíveis para a atuação econômica de valorização e acumulação do capital – para a atuação econômica necessária para ganhar dinheiro e fazer lucro. Ponto final.

O território Yanomami, dessa forma, sob um governo como o de Jair Bolsonaro, mobilizado para os interesses das frações capitalistas destinadas ao agronegócio e às atividades de mineração, portanto, foi visto, entendido e submetido como mera reserva para exercício de atividade econômica, em detrimento de toda a vida, cultura, pujança e relações que ali existiam do povo originário. Em poucas palavras, o fundo territorial precisava ser “limpo” da vida Yanomami ali existente.

A tragédia nos desperta para o lado humano das perdas e desgraças sofridas pelos Yanomami. Deveria nos despertar, também, para a tragédia cotidiana que é o capitalismo, que, quando necessário, promove genocídios e atrocidades quaisquer em nome do Deus-Dinheiro. Sem questionar o capitalismo não haverá base jurídica ou filosófica capaz de prevenir a ocorrência de novas tragédias, infelizmente.

*Leonardo Godoy Drigo é doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP.

Notas


[i] SARLET, Ingo Wolfgang. MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 268.

[ii] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 135.

[iii] MASCARO, Alysson Leandro. Dinâmica da crise e do golpe: de Temer a Bolsonaro. In Margem Esquerda. Revista da Boitempo, nº 32, 1º semestre de 2019, p. 26.

[iv] Confira-se, nesse sentido, por todos: MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.

[v] TEMER, Michel. Território Federal nas Constituições Brasileiras. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 04.

[vi] MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e história no Brasil. 2ª ed., São Paulo: Annablume, 2005, p. 59.

[vii] Sobre o tema, conferir: MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia histórica do Brasil. Capitalismo, território e periferia. São Paulo: Annablumme, 2011.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Eduardo Borges Milton Pinheiro Luiz Werneck Vianna Walnice Nogueira Galvão Fernão Pessoa Ramos Lincoln Secco Tadeu Valadares Henri Acselrad Michel Goulart da Silva Gerson Almeida Bernardo Ricupero Berenice Bento Alexandre Aragão de Albuquerque Marcus Ianoni Daniel Brazil Ricardo Musse Gilberto Lopes Luiz Roberto Alves Everaldo de Oliveira Andrade Osvaldo Coggiola Leonardo Sacramento Maria Rita Kehl Elias Jabbour Gilberto Maringoni José Machado Moita Neto Celso Favaretto Lorenzo Vitral Liszt Vieira Manchetômetro Remy José Fontana Rodrigo de Faria Annateresa Fabris José Luís Fiori Renato Dagnino Ricardo Abramovay Luis Felipe Miguel Rubens Pinto Lyra Luiz Eduardo Soares Valerio Arcary Bento Prado Jr. Ronald León Núñez Alexandre de Lima Castro Tranjan Marcelo Módolo Claudio Katz Dennis Oliveira Luís Fernando Vitagliano Sandra Bitencourt Julian Rodrigues João Feres Júnior Paulo Fernandes Silveira Rafael R. Ioris Paulo Sérgio Pinheiro Anderson Alves Esteves Priscila Figueiredo Tarso Genro Marjorie C. Marona Celso Frederico Samuel Kilsztajn Atilio A. Boron João Lanari Bo Alysson Leandro Mascaro Airton Paschoa Carla Teixeira Vanderlei Tenório Eugênio Trivinho Daniel Costa Ladislau Dowbor Carlos Tautz Marilena Chauí Eliziário Andrade José Geraldo Couto João Adolfo Hansen Matheus Silveira de Souza Eugênio Bucci Marcos Silva Jean Marc Von Der Weid José Costa Júnior Ronald Rocha Fábio Konder Comparato Gabriel Cohn Antonino Infranca Paulo Nogueira Batista Jr Dênis de Moraes André Márcio Neves Soares Anselm Jappe Flávio R. Kothe Fernando Nogueira da Costa Antônio Sales Rios Neto Mário Maestri Eleonora Albano Sergio Amadeu da Silveira Antonio Martins Marcelo Guimarães Lima Jean Pierre Chauvin Thomas Piketty Alexandre de Freitas Barbosa Daniel Afonso da Silva Francisco Fernandes Ladeira Armando Boito André Singer Caio Bugiato Eleutério F. S. Prado Jorge Branco Érico Andrade Francisco Pereira de Farias João Carlos Salles Leda Maria Paulani Bruno Fabricio Alcebino da Silva João Carlos Loebens Leonardo Boff Denilson Cordeiro Ronaldo Tadeu de Souza Luciano Nascimento Marilia Pacheco Fiorillo José Micaelson Lacerda Morais Chico Alencar Paulo Capel Narvai Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Heraldo Campos Luiz Marques Igor Felippe Santos Yuri Martins-Fontes Ari Marcelo Solon Kátia Gerab Baggio Afrânio Catani Luiz Bernardo Pericás Ricardo Fabbrini Ricardo Antunes Leonardo Avritzer Chico Whitaker Marcos Aurélio da Silva Bruno Machado Luiz Renato Martins Boaventura de Sousa Santos Mariarosaria Fabris Juarez Guimarães Francisco de Oliveira Barros Júnior João Paulo Ayub Fonseca Henry Burnett Andrés del Río Andrew Korybko João Sette Whitaker Ferreira Otaviano Helene Lucas Fiaschetti Estevez Plínio de Arruda Sampaio Jr. Benicio Viero Schmidt Luiz Carlos Bresser-Pereira Manuel Domingos Neto Flávio Aguiar Jorge Luiz Souto Maior Tales Ab'Sáber Vladimir Safatle José Dirceu Slavoj Žižek Michael Löwy Paulo Martins Salem Nasser José Raimundo Trindade Vinício Carrilho Martinez Michael Roberts

NOVAS PUBLICAÇÕES