Via Ápia

Ivor Abrahams, Caminhos V, 1975
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Por EDU TERUKI OTSUKA & IVONE DARÉ RABELLO*

Comentário sobre o romance recém-publicado de Geovani Martins

 

1.

Com a recente publicação do romance Via Ápia (2022), Geovani Martins dá continuidade e desenvolvimento a um projeto estilístico que já se anunciava no volume anterior, O sol na cabeça (2018).[i] Nos contos do livro de estreia notava-se a procura pela elaboração técnica capaz de amalgamar certa experiência social do jovem periférico e a expressão linguística própria às particularidades da matéria. Daí os diferentes modos de realização estilística que, por vezes, incorpora mais inteiramente a linguagem típica do grupo social e, por outras, se aproxima da linguagem padrão, acentuando os traços pitorescos que o gosto pelo anedótico[ii] tende a realçar no recorte limitado da narrativa curta.

A habilidade na estilização da linguagem de jovens dos morros do Rio de Janeiro se faz notar nos contos em primeira pessoa em que as falas são marcadas pelo léxico, a sintaxe e o ritmo da oralidade de um grupo social, geográfico e etário.[iii] Já nos contos em terceira pessoa, o narrador mobiliza a linguagem padrão, distinguindo-se das personagens que apresenta, mesmo quando se aproxima delas traduzindo seus pensamentos ou quando tende a ajuizar.[iv]

No romance, a realização estilística resolve a cisão que se verificava nos contos, mesmo que entre narrador e personagens permaneça, do ponto de vista da linguagem, uma diferença quanto ao domínio da norma padrão. Nas personagens predominam as gírias, a oralidade linguisticamente figurada, o ritmo da fala com que os jovens do morro se identificam[v]. Já o narrador, em terceira pessoa, embora atue de maneira bem próxima a suas personagens e chegue mesmo a, por vezes, incorporar o léxico delas, adota uma linguagem mais próxima da oralidade culta, sem que por isso deixe de ser quem é, uma vez que, para ele, o trânsito entre linguagens não o afasta da cultura da favela com que se identifica e lhe possibilita a interlocução em mão dupla.

Quando o narrador rompe a distância entre ele próprio e as personagens por meio da utilização discreta do discurso indireto livre, a barreira linguística entre narrador e personagens tende a ser superada. Assim, o narrador, que compartilha a cultura dos moradores jovens da Rocinha, é capaz de apresentar seus modos de vida àqueles que não a conhecem, ou a conhecem somente pelo viés classista das imagens estereotipadas. Sua função é a de mediador: por dentro do que sabe ser a vida comum na Rocinha mostrá-la aos de fora, que a discriminam sem conhecê-la, e, assim, contribuir para a desestigmatização da favela.[vi]

A Rocinha é, simultaneamente, a ambiência, um meio físico, social e simbólico, vinculado a um modo de viver. Mas trata-se da Rocinha apreendida da perspectiva de certa juventude que ocupa o protagonismo no romance.[vii] Não estando associadas à bandidagem e ao tráfico,[viii] as personagens centrais transitam entre virações, consumo recreativo de maconha, risco de vício em cocaína, anseio de curtir a vida em bailes funk, games, jogos de futebol pela televisão, encontros com as “novinhas”. E frustrações.

O contraponto a esse quadro surge em algumas figuras secundárias: a jovem que opta pela formação universitária para atuar pela favela e denunciar as carências e violências que ali se mantêm, e personagens mais velhas que representam outros modos de viver a situação contemporânea nas comunidades, seja na proximidade com milícias (Vanderléa), na resignação com o trabalho subalterno mal pago (D. Marli), ou na derrocada devida às drogas (o Professor).

É nessa favela – a maior da América Latina, como se afirma três vezes no romance – que se narra a história dos protagonistas, cinco jovens com cerca de 20 anos, ao longo de 2011 a 2013: os irmãos Washington e Wesley, e os amigos Douglas, Murilo e Biel. Embora a ação se concentre na trajetória desses jovens, toda ela depende e se explica pelo ambiente. A situação da vida na favela – resultante de condições históricas específicas – aparece como que naturalizada no romance, sem que sejam apresentados indícios que permitissem reconstituir as determinações sociais que, desde os anos 1940, lançaram parcelas da população a ocupar o território e a nele se reproduzir, com um horizonte de expectativas mínimas.

A história da Rocinha é conhecida pelos moradores jovens em aspectos que poderiam dar-lhes elementos para a compreensão do fenômeno da expansão populacional da favela, mas que são apreendidos por eles como pitorescos, a exemplo da origem do topônimo (p. 296). A “economia submersa”, complementar à economia oficial, que atende às necessidades dos moradores e tem os seus próprios circuitos de produção, circulação e consumo marcados pela informalidade[ix], é percebida por eles como um dado positivo e, assim, o que é consequência da precarização social não é visto como problema, e sim como “solução” popular.

O marco que organiza o romance é a presença das forças de segurança que preparam terreno para a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora,[x] na Rocinha. Desde as operações policiais preparatórias, a comunidade percebe que a UPP está prestes a invadir a favela e isso modifica seu ritmo de vida: policiais civis rondam (p. 56); comenta-se que a polícia mapeia vielas e becos, que informantes (P2) se instalam e as forças de segurança catalogam alcaguetes (X9s) (p. 122. Nem, o chefe do tráfico, é preso (p. 139) e se espalha a notícia da realização da operação Choque de Paz (p. 139). O cerco que começa a se instalar provoca alterações na dinâmica econômica da favela: aumenta o preço de barracos para comprar ou alugar, mercadinhos lotam porque a população local quer estocar mantimentos por temor de ficar sem comida (p. 135), a maconha vendida é mais difícil de encontrar e tem pior qualidade. “Com a confirmação de que a UPP chegaria no morro antes de virar o ano [de 2011], os moradores só falavam dessa parada, sempre como se fosse uma bomba pronta pra estourar” (p. 93).

No entanto, como isso não tem centralidade no enredo, fica evidenciada a escolha autoral de focalizar um tipo de morador – jovem ainda e não integrado às responsabilidades da vida adulta – que  não é traficante nem criminoso, e o que a invasão da UPP provoca em seu cotidiano: o receio de andar pelas ruas da favela por medo de ser parado pelos policiais, a necessidade de fumar maconha dentro de casa ou em becos escondidos, a saudade dos bailes funk agora proibidos pela polícia, a mudança nas relações entre os moradores, que passam a andar temerosos e desconfiados. Na trama que enquadra os eventos no período da ocupação da favela, o interesse central da narrativa fixa-se na vivência dos jovens favelados, a partir de sua situação racial e social, com a intensificação da repressão policial.

A Rocinha invadida pela UPP, ainda que perspectivada pelas personagens centrais e também pelo narrador que as acompanha de perto, é o prisma pelo qual se apresentam aspectos decisivos da contemporaneidade, num quadro em que, após a falência das promessas de integração nacional, o Estado se limita à contenção ou ao extermínio da população descartável. Focalizando sobretudo jovens negros e pobres, o romance denuncia o preconceito racial e as injustiças sociais, bem como a violência policial contra os moradores da favela. No entanto, também se narram os desejos das personagens jovens de se inserirem no mercado de trabalho (formal, informal ou ilegal) e de terem acesso a melhores condições de vida, o que inclui possibilidades de consumo de bens.

O romance acaba por recalcar os aspectos mais problemáticos das condições de vida na favela, como saneamento, mesmo que de passagem a eles se refira (cf. p. 145-146). No enredo, nada se espera do Estado senão o fim da guerra às comunidades, o que reafirma a derrocada de qualquer projeto nacional e de luta por direitos, agora também nas populações da Rocinha.[xi] Na figuração dos modos de sobrevivência e no que se deixa ver das aspirações das personagens se revela algo que parece estar além da compreensão delas e do narrador. O ponto de vista que as apresenta e que organiza o enredo confina o que a matéria tem de mais interessante.

 

2.

O romance se divide em três partes, organizadas por datações que balizam temporalmente a vida na Rocinha antes e depois da invasão da polícia militar. Na Parte I, de julho a novembro de 2011, iniciam-se as ações que preparam a entrada da UPP. Na Parte II, de novembro de 2011 a junho de 2012, as forças de segurança (polícia militar e BOPE) ditam o ritmo da vida da comunidade. Na Parte III, de julho a outubro de 2012, recrudescem as ações policiais; no capítulo final, em 26 de outubro de 2013, com um salto de pouco mais de um ano, as forças militares deixam de atuar tão repressivamente contra os moradores comuns após a divulgação do assassinato de Amarildo.[xii]

Sob esse pano de fundo de caráter documental, focaliza-se o cotidiano de cinco jovens. Na Parte I, os irmãos Washington e Wesley e a mãe, Marli, moram na Cachopa, região da Rocinha distante da Via Ápia. Os dois jovens negros trabalham num bairro nobre da cidade em um bufê para crianças ricas, em que o pagamento se dá por evento, sem nenhuma seguridade social. Quando Washington é repreendido pela gerente por comer salgadinhos dos convidados, ele a enfrenta porque não aceita que ela desempenhe uma posição de mando e de superioridade após subir de cargo (“Tu até ontem era monitora, garçonete igual a gente. Já se entocou pra comer um montão de vez, agora quer meter essa pra mim? Não fode!”, p. 17). A consequência desse enfrentamento é que não será mais chamado para trabalhar no bufê (“o ataque de Washington tinha fechado uma porta. A porta de um trabalho de merda, disso ninguém duvidava, mas, ainda assim, uma porta”, p. 40). Wesley se mantém no bico, e de garçom passa a animador ou acompanhante nas brincadeiras das crianças, aturando a falta de educação delas e o desprezo das famílias pelos empregados.

Murilo, Douglas e Biel constituem, nessa Parte I, um outro núcleo. Vivem juntos na Kátia, travessa da Via Ápia – o centro comercial da Rocinha. Murilo, sem interesse pelos estudos, ingressa como soldado no Exército, ganhando pouco mais do que salário mínimo. Douglas é entregador de farmácia e passa horas pedalando pelos bairros nobres do Rio de Janeiro. Biel – o único branco dentre eles – se faz passar por playboy e vende drogas em Ipanema. É ele quem consegue ter dinheiro suficiente para gastar em bares e boates frequentados pelos jovens ricos a quem fornece maconha.

Todos trabalham na viração e, embora consigam se manter apesar da baixa remuneração, têm sonhos de uma vida melhor: Douglas planeja juntar dinheiro para obter os equipamentos necessários para tornar-se tatuador; Wesley pensa comprar uma moto para trabalhar sem patrão, como mototaxista na favela; Washington deseja ajudar a mãe a ter a casa própria e sair do aluguel; Biel quer ganhar mais dinheiro com o tráfico de drogas para alugar um apartamento na pista e comprar o que deseja; de início, Murilo imagina fazer carreira no Exército.

Enquanto os sonhos, ou as ilusões, não se realizam, a vida segue com aborrecimentos e também alegrias: encontros com amigos, cervejas, baseados, garotas. No entanto, a ameaça da entrada das forças de segurança na Rocinha já assombra os moradores – e é Murilo quem mais agudamente vivenciará isso, pois tem pesadelos de que, com a invasão, ele estará entre os que serão obrigados a perseguir e matar os seus iguais.

Na Parte II, Murilo, Douglas e Biel têm de sair do apartamento alugado na travessa Kátia e se deslocam para a Cachopa, quando, então, se tornam amigos de Washington e Wesley. A atmosfera do morro já é outra: fumar um bom baseado se tornou mais difícil, pois o tráfico não funciona tão bem e os policiais enquadram qualquer um, perseguindo e esculachando sobretudo pretos jovens. As forças de segurança proíbem os bailes funk. O comércio, que antes ficava aberto mesmo na madrugada, fecha as portas a cada ameaça de entrada dos policiais nas diferentes localidades da Rocinha. Mesmo assim, e agora sempre com medo, os amigos continuam a tentar se divertir, o que inclui especialmente a maconha – que nesse universo faz as vezes do tempo do descanso e do devaneio.

Concomitantemente às alterações no cotidiano da Rocinha dada a presença e as ações ostensivas dos policiais militares, os rumos das personagens centrais se modificam. Washington consegue um trabalho com carteira assinada como lavador de pratos num restaurante em bairro nobre; Wesley, por medo de se espalhar o que ocorreu num encontro sexual, abandona o trabalho no bufê e, sem dinheiro, se torna dependente de cocaína; depois de sair do emprego na farmácia, Douglas passa a sobreviver de pequenos bicos, e, tendo ganhado de Biel os aparelhos para fazer tatuagens, começa a praticar o ofício. Biel percebe que não terá condições de alugar um apartamento em um bairro de classe média da Zona Sul e que a vida dos boys não é tão boa quanto a vida na Rocinha, decidindo fazer seus pequenos negócios ali mesmo na favela. A novidade é Gleyce, que pretende fazer faculdade como meio para que ela possa atuar pela favela, daí a escolha inicial por cinema, “pois tem muita história boa no morro… dá pra fazer uns filmes bolado” (p. 206).

Na Parte III, Murilo conta que havia saído do quartel depois de acompanhar uma abordagem no morro em que seus pesadelos se tornaram realidade: apontou o fuzil no rosto do garoto que desafiara a ele e a outro policial e, por raiva e por estar investido do poder da farda, quase atirou. Dá-se conta de que aquilo não é só um trabalho e que não é nem quer ser um assassino dos seus. Sem outras possibilidades, aceita os serviços que aparecem, sempre em trabalhos braçais, desde que na favela.

A violência policial, com abordagens arbitrárias e truculentas, bem como a reação também violenta dos que estão ligados ao tráfico, ameaçam a todos. Num desses confrontos, Washington é atingido por uma bala de um policial dirigida contra um pivete armado. A morte dele provoca uma reviravolta na vida dos amigos: Douglas vai para um sítio de parentes em São João del Rei, onde fica por mais de um ano; Wesley se reabilita do vício em cocaína e vai trabalhar como faxineiro na Biblioteca Parque[xiii], na Rocinha; Biel muda da Rocinha para o Vidigal e passa a vender roupas importadas contrabandeadas por um amigo; Murilo trabalha em uma barraca de praia de Ipanema, com planos de comprar pranchas de surfe para alugar.

A cerimônia do enterro de Washington reúne os amigos e grande parte da comunidade, cada vez mais revoltada com a presença das forças de segurança que não se limitam às UPPs. A menção ao desaparecimento e assassinato de Amarildo e às manifestações de 2013 é o mote para a necessidade da organização na favela. Gleyce – agora estudante de jornalismo na PUC como bolsista – milita pela favela e escreve no Fala Roça, jornal da Rocinha, no desejo de que os moradores sejam informados  pelos próprios moradores e de que a cidade do Rio de Janeiro reconheça as arbitrariedades da polícia contra os que nada têm a ver com o tráfico: “Douglas se lembrava do artigo sobre Amarildo que Gleyce escreveu no Fala Roça, um portal de notícias do morro, onde ela falava que, se a sociedade se organizasse pra cobrar os assassinatos nas favelas como se organizaram por causa de um aumento na passagem de ônibus, talvez a polícia começasse a pensar duas vezes antes de tirar a vida de alguém” (p. 335).

Como se depreende, a luta da futura jornalista não é exatamente contra a política de extermínio dos traficantes, assim como, para ela, as manifestações de junho de 2013 no Rio de Janeiro, que obtiveram a revogação do aumento das tarifas de ônibus, seriam um exemplo de organização da sociedade civil, provavelmente por seu caráter não partidário e por serem realizadas pelos cidadãos comuns. Ela deseja esse tipo de organização popular para refrear a violência policial nas favelas.

Com a ampla repercussão do caso Amarildo pela mídia, diminuem as ações mais violentas e repressivas das forças de segurança, dando a parcelas dos moradores representados no romance o sentimento reconfortante de que a favela retomava seu ritmo de antes da presença ostensiva dos policiais militares. O salto temporal no último capítulo de Via Ápia apresenta a Rocinha como era antes: amigos se reencontrando, bailes funk, baseados e alegria. “Nem melhor nem pior”, a música que embala a festa, de MC Marcinho, reafirma a união dos “irmãos”, a humildade e a sabedoria. Na última frase do romance, comemoram-se a festa e a alegria da comunidade que volta a se reunir: “era a vida – sempre ela e nunca a morte – o que fazia aquele chão tremer” (p. 337). A vida continuará a seguir, como antes.

A precariedade das condições de vida permanece inalterada. A “polícia pacificadora” acirrara a guerra contra traficantes e moradores comuns; destruíra o ritmo da sociabilidade dos moradores. Segundo o que nos é apresentado pelas personagens que cumprem o papel de apresentar perspectivas, o território apartado – e que se quer “uma cidade dentro da cidade” – precisa defender seus modos de sociabilização. Precisa lutar pela superação das necessidades coletivas com figuras que a ele pertençam e que façam a interlocução com a comunidade e com o restante da sociedade. O que importa é o reconhecimento pelo conjunto da sociedade de que a favela não é apenas crime e que tem sua própria e legítima dinâmica.

Pela ótica do romance, ainda que as manifestações populares tenham dado alcance público para a tragédia no caso Amarildo, não bastam as denúncias contra os assassinatos: é preciso que eles não ocorram mais. A luta é para que a violência contra o cidadão comum não aconteça nas comunidades e que os direitos humanos tenham vigência nelas. Para isso, seria urgente dar visibilidade à favela para que haja transformações que, segundo o romance, reconheçam a legitimidade dos modos de vida desse território, sem discriminá-lo como lugar do crime e da bandidagem, tampouco desvalorizando a população negra que majoritariamente ali mora.

Gleyce e o próprio narrador são os representantes ficcionais dessa função. A luta política parece reduzida a isso: atuação na esfera da cultura, em que importa transformar a imagem da favela para a própria comunidade e para a opinião pública: “Ela [Gleyce] falou sobre a importância de ter gente de dentro contando aquelas histórias, com o ponto de vista do morador pro que vinha acontecendo” (p. 239).

Desse modo, e tal como se insiste no romance, a valorização da sociabilidade, dos modos de vida e de organização da favela – de “sua” cultura – parece estar em consonância (deliberadamente ou não) com a reorientação no trato das questões urbanas e sociais, decorrentes do Consenso de Washington (1989). Governança, participação, empoderamento das comunidades, atenuação da pobreza, descentralização – essas as palavras da nova ordem neoliberal. Trata-se de valorizar o espaço comunitário, fortalecer laços sociais desenvolvidos na pobreza, viabilizar “soluções criativas”, converter em “modelos de iniciativa popular” os modos pelos quais os trabalhadores precários ou sub-remunerados resolvem as dificuldades de acesso aos serviços públicos no espaço urbano, e fomentar a estética do favelado como promessa no circuito da mercadoria.[xiv]

 

3.

O entrecho do romance apresenta também muitos episódios contingentes cuja função não se limita ao anedótico ou ao pitoresco. Suas matérias são as mais diversas: reuniões em bares, sexo, anseio amoroso, recordações e reencontros com familiares, encontros fortuitos com outros consumidores de drogas, histórias do tráfico, situações com policiais que enquadram arbitrariamente etc. Por vezes são saborosos,[xv] por outras reafirmam a violência, e parecem ser uma maneira de figurar que a vida dos favelados, olhada de dentro, com seus arranjos e desarranjos, com solidariedade e conflito, é mesmo uma vida comum, mesmo com os problemas enraizados na desigualdade e no racismo.

Mas o ritmo dessa vida comum é errático, como a própria viração, a dinâmica geral da vida para imensas parcelas da população. Nesse sentido, o ar de casualidade da sucessão dos episódios indica que o ritmo narrativo dá forma literária a um processo social mais amplo. A falta de condições materiais estáveis impossibilita às personagens a projeção de suas aspirações no horizonte futuro, sujeitando-as à imprevisibilidade quanto à obtenção dos meios para realizá-las, assim como é instável o ritmo da viração, que atrofia o planejamento racional da própria vida.

A informalidade domina em Via Ápia de tal modo que pouco está representado o trabalho formal na Rocinha, a não ser na alusão aos trabalhadores que voltam de suas funções. É ela que sustenta a vida de parte dos moradores, tal como a revela o narrador: mototáxis apanham os moradores que descem dos ônibus na avenida e os levam para as vielas onde moram; os donos de velhas caminhonetes fazem as mudanças na favela; a peãozada ergue muros, casas, ou as derruba. Há também o trabalho no tráfico, como o de aviãozinho ou fogueteiro por moleques, armados ou não.[xvi]

Para as personagens, a ideologia do trabalho não faz mais sentido. Para elas, o pressuposto de que o trabalho garante o futuro fica desmentido em suas próprias vivências. Nesse sentido, a representação dos modos de sobrevivência no romance tem alcance para expressar a situação social contemporânea dos pobres no que diz respeito ao significado e às relações de trabalho, bem como a maneira pela qual elas os compreendem, aderidos – mais ou menos – à lógica neoliberal.

Como lavador de pratos com carteira assinada, Washington percebe que a formalização lhe traz poucas vantagens. Além de ganhar pouco e de aceitar cobrir as faltas de outros empregados, imaginando que isso possibilitaria sua promoção a garçom (mesmo que não haja negros no salão), o serviço lhe rouba energias para poder gozar de sua juventude: “Ele sentia que, aos poucos, o trabalho ia consumindo toda a sua vida, até mesmo quando tava de folga, porque só pensava em descansar pro outro dia”. Para ele, o que o impede de largar o emprego é que “a carteira assinada garante alguma segurança. Toda vez que é parado pelos canas, Washington sente que eles ficam mais tranquilos quando veem o documento” (p.175).

Para as outras personagens centrais, a carteira assinada não é sequer aspiração. A princípio, pode parecer que o descrédito na integração pelo trabalho refira-se a uma questão geracional, até porque a perspectiva em todo o romance é a juvenil. No entanto, o que aparece como diferença de gerações tem fundamento histórico.

Nos anos focalizados no romance, o aprofundamento da virada neoliberal que trouxe, entre outras consequências, a precarização das relações de trabalho[xvii], já produziu efeitos ideológicos, também nas camadas mais pobres, que recusam a submissão no trabalho observada por eles nos que lhes são próximos. Se D. Marli, precarizada desde sempre, não questiona a situação de exploração a que está submetida (carteira assinada sempre postergada, não pagamento de horas extras, férias pagas de vez em nunca e, como agrado, meia dúzia de roupas dadas como presentes, cf. p. 118), os filhos já não querem isso para eles.

Se para as camadas populares o vínculo entre trabalho formal e cidadania nunca chegou a se generalizar no Brasil, a novidade nesse quadro é que parcelas da população pobre já veem na precariedade uma vantagem que lhes traz o sentimento de liberdade, de não precisar obedecer ao patrão, nem de ser objeto de discriminação social e racial. Para os que se recusam a aceitar a ideologia do trabalho, em “empregos de merda”, a viração passa a ser percebida como uma resposta – decerto precária pois a autonomia pode operar como peça central da submissão ao regime contemporâneo de acumulação.[xviii]

No romance, para evitar o servilismo ou a cooptação (no bufê, na farmácia, no Exército), Wesley, Douglas e Murilo preferem a viração que, se não lhes dá dinheiro suficiente, os livra dos horários rígidos, da subserviência e das humilhações. Alguns se deixam seduzir pelo canto de sereia do empreendedorismo ainda que em pequena escala e na informalidade. É o caso de Douglas que, depois de sair do emprego como entregador, tem para si o projeto de aprimorar seus desenhos e dominar o ofício de tatuador para ser dono de seu próprio estúdio no morro.

O trabalho precário na farmácia lhe trouxe a experiência de constatar o que é a vida dos ricos. Ele odeia ver, nos vasos, quadros, espelhos, portas de madeira boa, corredores impecáveis, lixeira perfumada com lavanda, a ostentação da riqueza e tem a percepção aguda da desigualdade social (cf. p. 36). Douglas não se dá conta da relação entre o acúmulo da riqueza, em um polo da sociedade, e a perpetuação da miséria, em outro. Apenas sente ódio e reafirma sua identidade como morador da favela, onde deseja permanecer sem ter de servir aos ricos. Sai do emprego, passa a fazer bicos na própria favela na tentativa de garantir o mínimo para a sobrevivência. O projeto de montar o estúdio se mantém, mas, como aprendiz, ele nada ganha para fazer tatuagens; quando anuncia que passará a cobrar os materiais, os fregueses somem.

O caminho de Biel é similar, embora seus planos iniciais sejam outros e se revelem também ilusórios. Ele acredita poder subir na vida com a revenda de drogas, negociando com playboys e subchefes de boca, até porque, percebendo-se “diferenciado”, isto é, branco em meio aos negros da favela, pode passar batido pelos policiais (p. 280). Mas, ao longo do romance, ele se dá conta dos riscos que corre para ganhar apenas um dinheiro miúdo: “Biel começou a se perguntar pra onde vai todo esse dinheiro que o tráfico rende. Uma coisa era certa, quem trafica na rua é que não vê nada disso” (p. 278).

Depois de calcular os ganhos dos que vivem do tráfico (moleques que avisam a chegada da polícia, “soldados” que servem à proteção de algum grupo importante) e custos da logística, gastos com o suborno dos policiais que atuam na repressão às drogas, acordos com militares e políticos nas fronteiras, avaliando a massa de dinheiro envolvida nas diferentes etapas da produção e da distribuição, Biel compreende “que não era nada no meio dessa engrenagem. Nem quem vende, quem troca tiro, quem pesa e endola, quem transporta no caminhão, quem prensa ou faz as misturas nas fazendas do Paraguai e da Colômbia” (p. 279) – isto é, os trabalhadores. Também no tráfico, a superexploração do trabalho é a regra. Ao final do romance, prefere mudar para o Vidigal, onde passa a revender roupas importadas contrabandeadas (p. 332), obtidas por um amigo, quando, então, há menos mediações entre aquele que vende e o que fornece a mercadoria.

Diferentemente da geração anterior dos que servem sem rebeldia aos brancos ricos, como D. Marli, essa nova geração recusa-se à subserviência percebendo a desigualdade brutal que confere aos abastados a arrogância do mando[xix]. Quando Wesley trabalha no bufê, começa a prestar atenção “nos convidados [das festas]: suas roupas de grife, seus cabelos sempre lisos e aquele jeito natural de mandar em qualquer um que esteja de uniforme. Bateu a maior bolação. Sua mãe trabalha pra gente como eles. Seus tios, avós, todos trabalharam pra eles. Limparam suas casas, trocaram os fios, cuidaram dos filhos […]. Agora olha pros convidados e sente a maior raiva, porque tá ligado que o dinheiro que suou tanto pra juntar, ali não significa nada. Aquelas pessoas podiam limpar a bunda com aquela quantia que não ia fazer a menor diferença na vida de nenhuma delas. E o pior é que elas sabem disso. Por isso olham sempre de cima pros outros e conseguem mandar com essa voz suave, sem fazer muito esforço. Elas sabem e se aproveitam disso” (p. 159-160). Ao recusar a subalternidade, quer ser trabalhador autônomo na favela, fechando-se entre seus iguais. No entanto, ao viciar-se em cocaína, abandona o projeto de se tornar mototaxista.

Murilo, que se desligara do Exército, passa a fazer bicos, em qualquer serviço que aparece, sempre braçal. Questionado pela família se não buscava um trabalho formal que lhe desse segurança, ele até diz concordar, mas, de fato, “apesar do esforço físico, ele tava gostando de não ter horário nem dia certo pro trabalho, de não ter um patrão pra obedecer todo dia […]” (p. 291).

No embate contra as adversidades, não há, da parte das personagens, resiliência no trabalho – essa palavra típica da era neoliberal. Não suportam o sofrimento produzido pelo trabalho com patrões, a não ser Washington, para quem a carteira assinada lhe traz mais segurança quando os policiais o param para averiguações.

Além disso, as personagens centrais não parecem sofrer com as adversidades que a falta de dinheiro lhes traz, até porque o problema da subsistência não se apresenta para elas: há sempre um miojo ou mortadela para comer e, se não conseguem uma moradia em lugar mais central da favela, acham bom pagar mais barato pela casa na Cachopa.

A lógica dessas personagens inclui, assim, a continuidade de uma tradição que vem de há séculos para os pobres que desde sempre conhecem a viração e se valem da astúcia para escapar à repressão ou à humilhação[xx], bem como recusam a submissão completa da vida ao trabalho. Embora essa tradição ganhe novo sentido no quadro contemporâneo, quando os contingentes de “inempregáveis” vão para a viração, há na atitude adotada pela maioria das personagens centrais a intuição do absurdo que é viver para trabalhar, na subsunção completa da vida ao trabalho.

No entanto, a lógica neoliberal está ali também. Ao recusar a subalternidade, os protagonistas aderem à “liberdade” da viração e à valorização da possibilidade de se tornarem empreendedores. Ao sair de uma arapuca, caem em outra. O romance termina com uma nota positiva em relação a esses sonhos, sem que nada indique se eles se realizarão ou não, e se trarão a esses jovens a garantia da sobrevivência.

 

4.

O foco do romance não parece estar tanto na reivindicação de mudanças das condições de sobrevivência[xxi] ou muito menos da sociabilidade na favela. Em Via Ápia, a melhoria da vida na favela implica o reconhecimento de sua legitimidade, o que poderia ser alcançado pela organização dos moradores na luta contra o preconceito e a discriminação, que, na visão das personagens, sustentam a política de extermínio. Os desmandos da polícia geram ódio, e, para alguns, ímpetos de vingança que precisam ser reprimidos[xxii].

Nesse quadro, a formação profissional, por meio da escolarização, aparece como saída imaginada pelos personagens, que lamentam não ter seguido conselhos da família. Washington sente “remorso de ter largado a escola faltando só dois anos para terminar o ensino médio, de não ter concluído o ensino técnico que o tio arrumou pra ele no centro, só porque achava longe pra ir e voltar todo dia” (p. 30). Monique, irmã de Murilo, contrária à entrada dele no exército, insistia “que ele sempre foi bom com esportes; no surfe, no futebol, podia tentar uma faculdade de educação física. Com o diploma, podia trabalhar numa escola, numa academia, ter um trabalho onde não ia ser capacho de nenhum sargento, nem precisar mexer com arma” (p. 191-192).

Para ela, a formação universitária é a condição para não repetir a história dos seus, subalternizados e sem perspectivas, orgulhando-se por ser a primeira de sua família a entrar numa faculdade, rompendo o ciclo histórico de exclusão. Ao mesmo tempo, a ascensão individual é percebida pelo irmão como traição aos seus, que a olha com desconfiança: “talvez a convivência com esse povo da faculdade, com tanta gente da pista, tivesse mexido com Monique” (p. 261).[xxiii] No entanto, depois de sair do quartel, Murilo não descarta a necessidade de estudar, pensa em fazer supletivo mas não para escapar da favela, e sim imaginando que teria chances de emprego não limitados a trabalhos não especializados. Pensa, mas não faz.

O acesso à cultura padrão pode ser também um elemento para a transformação interna da personagem. Quando Wesley, depois de superar o vício em cocaína, trabalha como faxineiro na Biblioteca Parque, passa a ler nas horas vagas, aproveitando-as para “pega[r] algum livro pra ler, que tem vários livros maneiros” (p. 333).

De acordo com a trama do romance, o acesso à instrução e à Universidade pode produzir ações que busquem pôr fim à discriminação contra a favela e afirmar a legitimidade de seus modos de vida; para isso, porém, é necessário não se afastar da comunidade,[xxiv] lutar por ela através do esclarecimento da população e da informação para a sociedade. A personagem Gleyce e o próprio autor são a representação cabal da proposição implícita em Via Ápia. Gleyce não quer escolher cursos que não lhe interessam (p. 203), até porque não precisa batalhar pela sobrevivência, pois mora com a mãe em casa própria. De início, pensa em cinema e em seguida opta pela faculdade de jornalismo para realizar um trabalho militante na e sobre a Rocinha. Quando tem acesso a fotografias antigas da favela, encaminha-as à direção da Biblioteca Parque, que organiza uma exposição com imagens desde o final dos anos 1950 até 2002 e textos que explicam as origens e o crescimento da Rocinha (p. 334), possibilitando que a comunidade conheça sua própria história.

Na elaboração de seu romance, o próprio autor realiza o projeto que enuncia no enredo: está dentro da comunidade e escreve para fora e para dentro dela. Tem simpatia por algumas causas, como a descriminalização da maconha (como afirma em entrevistas) e cria personagens que a usam para lazer. Mas, sobretudo, parece figurar, por via do enredo e do foco nas personagens juvenis, que a questão social da favela é a violência policial que assassina moradores comuns. Não por acaso é Washington a vítima da “bala perdida”: aquele que realiza o percurso mais aceito pela sociedade em geral, em conformidade com a submissão ao trabalho. Em vez de revelar que a necropolítica, a eliminação dos descartáveis, é a norma da gestão e do extermínio, o romance acaba por reafirmar que o problema está no assassinato do cidadão respeitável.

Na virada final do enredo – precipitada de maneira pouco feliz – a mudança nas ações das forças policiais traz de volta as festas e uma vida menos vigiada. Para os protagonistas, o retorno à “normalidade” é a permanência do que havia antes, com a perspectiva de reativar a sociabilidade própria da comunidade. A miserabilidade que ronda todo o ambiente não os perturba, embora a percebam.

Não cabe à literatura propor soluções, decerto. Mas, ao permanecer colado à lógica das personagens, o romance não chega a apresentar relações estruturais entre a riqueza e a pobreza, entre a vida abastada e a vida da viração.  O narrador que se coloca muito aderido à lógica de suas personagens – e quando deles se descola ajuíza a favor dela – deixa ver que o território apartado e carente de condições modernas de urbanidade não quer mais do que reconhecimento. Não estará aí o limite de Via Ápia?

*Edu Teruki Otsuka é professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Autor de Marcas da catástrofe: experiência urbana e indústria cultural em Rubem Fonseca, João Gilberto Noll e Chico Buarque (Ateliê).

*Ivone Daré Rabello é professora sênior do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Autora, entre outros livros, de Um canto à margem: uma leitura da poética de Cruz e Sousa (Nankim).

Referência


Geovani Martins. Via Ápia. São Paulo. Companhia das Letras, 2022, 344 págs.

Notas


[i] São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

[ii] “A história do Periquito e do Macaco” anuncia uma narrativa em que a presença da UPP no morro pareceria ser a tônica (até pelas palavras iniciais: “Quando a UPP invadiu o morro, era foda comprar bagulho”, p. 37), mas o enredo acaba por se concentrar na vingança pessoal de Periquito contra o tenente Cara de Macaco. Ainda que o conto apresente as arbitrariedades cometidas pelos integrantes da UPP, a narrativa desvia-se para o anedótico da esperteza do traficante.

[iii] A exceção a esse procedimento surge em “Espiral”, um conto que não é ambientado na favela e cuja situação narrativa é o preconceito racial contra o narrador, que arma seu revide; e em “A viagem”, ambientado em Arraial do Cabo, em que o narrador, um jovem universitário, e seus amigos se veem às voltas com uma tentativa de assalto.

[iv] Veja-se, por exemplo, em “O rabisco”, as avaliações do narrador sobre o interesse da multidão (O sol na cabeça, p. 54).

[v] A linguagem do morro, a roupa e a postura corporal constituem, para as personagens do romance, um padrão de identidade. Isso se evidencia no momento em que Washington, ao se candidatar a um emprego num restaurante na zona nobre do Rio de Janeiro, sabe que “pra ter qualquer chance por ali, num lugar daquele naipe, ia ter que jogar o jogo deles. Escolher só as palavras certas, sem gíria ou palavrão, deixar a coluna reta, se lembrar dos plurais. Na real, ser quem não é” (p. 79, grifos nossos).

[vi] Sobre a relação entre violência e favela, cf.: “a correlação imediata entre violência urbana no Rio de Janeiro e favela continua sendo fomentada pelo Estado, alardeada pela grande mídia (em conjunto com outros segmentos da indústria do entretenimento) e reverberada pela ‘sociedade civil’. A favela é tratada como o locus do mal, e o favelado é identificado como um inimigo potencial, iminente ou mesmo posto.” (BRITO, Felipe. “Considerações sobre a regulação armada de territórios cariocas”. In: BRITO, F., e OLIVEIRA, Pedro Rocha (orgs.). Até o último homem. Visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 87.)

[vii] Para comparação, lembre-se que Becos da memória (2006), de Conceição Evaristo, faz da favela a personagem coletiva que unifica as várias histórias da comunidade. A narradora, ali formada, reativa pela memória a multiplicidade de perspectivas e os conflitos, tensões, dissonâncias e consonâncias que fazem da favela a personagem central do enredo. Na tradição brasileira, a personagem coletiva, por assim dizer, havia encontrado uma realização significativa em O cortiço (1890) de Aluísio Azevedo, num momento histórico em que ainda dominava o imaginário da integração nacional. Na literatura periférica contemporânea, quando tal imaginário já se desfez, o ambiente da comunidade reaparece para, intencionalmente ou não, revelar a segregação territorial.

[viii] Os traficantes são mencionados no romance, e a prisão de Nem, chefe do tráfico na Rocinha, em 2011 (dado objetivo incorporado e estilizado no romance), ao tentar fugir, se torna um fato relevante no entrecho de Via Ápia, pois desorganiza a vida na favela (cf. 136), que, sob Nem, trouxe à Rocinha um clima de paz, sem troca de tiros por anos (p. 50). Essa operação é um dos primeiros índices dos preparativos das forças policiais para a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora na Rocinha.

[ix] Sobre o assunto, cf.: BOTELHO, Maurilio Lima, “Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres”. In: BRITO, F., e OLIVEIRA, Pedro Rocha (orgs.), op. cit., especialmente p. 177.

[x] Como se sabe, a UPP é um projeto da Secretaria Estadual de Segurança do Rio de Janeiro, inspirado nas experiências de Medellín, na Colômbia. As unidades foram instaladas sob o pretexto de desarticular quadrilhas que controlavam os territórios, oferecendo em contrapartida políticas comunitárias. A primeira delas foi instalada no morro do Dona Marta, em Botafogo (Zona Sul do Rio de Janeiro); na Rocinha, situada entre os bairros nobres da Gávea e de S. Conrado, foi implantada em 20 de setembro de 2012. O “mapa da pacificação” foi planejado também pelo fato de que a cidade sediaria a Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos, em 2016, e seria preciso não apenas impedir a circulação de populações indesejadas mas também eliminar os “entraves humanos”. Como afirma Mike Davis, “a segregação urbana” é “uma guerra social incessante na qual o Estado intervém regularmente em nome do ‘progresso’, do ‘embelezamento’, e até da ‘justiça social para os pobres’, para redesenhar as fronteiras espaciais em prol de proprietários de terrenos, investidores estrangeiros, a elite com suas casas próprias e trabalhadores de classe média” (Planeta favela. Trad.: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 105.

[xi] Durante a década de 1970, a Rocinha se organizou para reivindicar melhorias como a construção de escolas e creches, instalação de agência de Correios, canalização de valas.

[xii] O ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Sousa foi sequestrado, torturado e assassinado por policiais militares da UPP da Rocinha em 14 de julho de 2013. Depois da denúncia do desaparecimento, iniciou-se nas redes sociais a campanha “Onde está o Amarildo?”, com apoio de movimentos como o Rio de Paz, Mães de Maio, Rede de Comunidades e Movimentos contra a violência. Moradores da Rocinha organizaram atos, que contaram com a participação da sociedade civil, denunciando a violência dos militares. Também internacionalmente o desaparecimento foi divulgado. Até hoje o corpo não foi encontrado. A indenização à família só ocorreu em 2022.

[xiii] As bibliotecas Parque do Rio de Janeiro instalaram-se em regiões com alto nível de pobreza, como a Rocinha, com o objetivo oficial de promover o desenvolvimento cultural dos moradores, e cuja função compõe o conjunto de políticas públicas para a gestão dessas populações por meio de atividades culturais. Cf.: MARANHÃO, Tatiana de Amorim. Governança e pobreza: do Consenso de Washington ao consenso das oportunidades. Tese em Sociologia. FFLCH/USP, 2009.

[xiv] Sobre a questão do “giro culturalista”, cf. BOTELHO, M. L. “Crise urbana…”, cit. In.: op. cit., pp. 169-213. Ver, também, Maricato, E. “Posfácio”. In: DAVIS, M. op. cit., pp. 209-224.

[xv] Veja-se o episódio de Washington na delegacia da Gávea (pp. 103-105).

[xvi] Os chefes do tráfico são apenas mencionados e parecem ser, do ponto de vista dos moradores da Rocinha, os comandantes de uma ordem pacífica para os moradores da favela, além de fornecerem droga de boa qualidade, o que se desfaz com a chegada das forças policiais.

[xvii] Cf. Harvey, David. O neoliberalismo, história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

[xviii] Nesse sentido, cf. “Masterclass do fim do mundo”. In: Um grupo de militantes na neblina. Incêndio. Trabalho e revolta no fim de linha brasileiro. São Paulo: Contrabando Editorial, 2022, pp. 30-95, especialmente p. 45 e seguintes.

[xix] A atitude de recusa à subserviência foi retratada com eficácia em Jéssica, a filha da empregada doméstica Val, de Que horas ela volta (2015), de Anna Muylaert. A jovem que se afirma igual aos patrões de Val leva a mãe a deixar o emprego para tornar-se pequena empreendedora em sua comunidade. Desse modo, o filme capta um traço significativo da vida mental dos subordinados na contemporaneidade.

[xx] A tradição da astúcia e de dar um jeito para conseguir o necessário foi analisada por Antonio Candido em “Dialética da malandragem”, que focaliza a vida dos homens brancos pobres (de O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993): “Lá não se trabalha, não se passa necessidade, tudo se remedeia” (p. 53). Embora o contexto aqui seja outro, e a vida focalizada seja a de jovens negros que carregam a canga do trabalho braçal ou subalterno, a opção pela “liberdade” da viração atualiza aquela tradição, decerto com sentido diverso.

[xxi] Veja-se que Biel, que antes lamentava as valas abertas, o lixo acumulado, a falta de água, passa a valorizar a vida no morro, na casa no Vidigal, “que era só um quarto com banheiro mas que tinha uma laje maneira pra fazer um churrasco, maior visual de frente pro mar” (p. 332). A Rocinha é “uma cidade dentro da cidade”, com autonomia e vida própria, que não parava nunca (cf. p. 123), como pensa Washington ao observar o ritmo da comunidade antes da invasão das forças de segurança.

[xxii] Veja-se que Douglas, depois do assassinato de Washington, diz a Gleyce, já no momento de embarcar para São João del Rei: “Papo reto, toda vez que eu vejo um carro de polícia, ou então aqueles filha da puta parado mermo, ou andando em beco, eu juro pra tu, a vontade que eu tenho é de matar todo mundo. Não deixar aí nenhum pra contar a história. […] É muito ódio, Gleyce, e eu me liguei que, se eu não fizesse alguma coisa pra fugir disso, aí é que ia ser foda, eu ia ficar sufocado. Ou então ciar pra dentro e fazer alguma merda. Eu não consigo, papo reto, eu não consigo imaginar que eu vou ter que olhar pra esses cara todo dia sem poder fazer nada. E ainda ligado eu se der mole pode rodar igualzinho” (p. 320).

[xxiii] Há menções constantes das personagens a serem “crias” da favela, numa referência ambígua a um sentimento de orgulho identitário, como se a favela se pensasse à maneira de uma “população originária” daquela localidade – e não fosse resultado histórico da segregação das populações negras e pobres por parte do Estado e das camadas dominantes da sociedade. Por isso, afastar-se dela é percebido por Murilo como desconfiança por indiciar traição.

[xxiv] A história de Monique representa essa fuga da vida na favela por via do acesso à Universidade: ela pretende conseguir alojamento na faculdade pública e, caso isso não ocorra, morar numa república próxima a ela.

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