Universidades como fábricas

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Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*

Sob a hegemonia do neoliberalismo, vem ocorrendo uma subjugação franca e brutal de todas as relações sociais às relações de mercado, inclusive as que se dão em uma universidade

Faz-se aqui uma introdução a um pequeno e certeiro artigo de Branko Milanovic[i] que foi publicado no portal Sin permiso em 05 de maio de 2024, com o título acima. Eis o que constata: sob a hegemonia do neoliberalismo, vem ocorrendo uma subjugação franca e brutal de todas as relações sociais às relações de mercado, inclusive as que se dão em uma universidade.

Apresenta-se em sequência, uma tradução do seu escrito que fala do comportamento repressivo das autoridades universitárias diante do levante de grupos de estudantes nos Estados Unidos em favor da causa palestina. Ao fim de sua acusação – ela diz que as universidades estão sendo administradas como fábricas – segue-se um comentário que visa mostrar que esse tipo de “governança” é imanente ao neoliberalismo, ora hegemônico. Veja-se, portanto, de início, o que ele próprio escreveu em seu blog:

A denúncia de Milanovic

Vi e li sobre muitos casos em que a polícia expulsou estudantes que protestavam das universidades. A polícia vinha ao campus por ordem das autoridades descontentes com os oásis de liberdade criados pelos estudantes. Ela chegava, armada, agredia os estudantes e punha fim ao protesto. A administração universitária se colocava ao lado dos estudantes, invocava “a autonomia da universidade” (isto é, o direito de ficar fora da vigilância policial), ameaçava renunciar ou se demitir. Este era o padrão usual.

O que foi novo, para mim, na atual onda de manifestações pela liberdade de expressão nos Estados Unidos, foi ver que foram os próprios administradores das universidades aqueles que chamaram a polícia para atacar os estudantes. Em pelo menos um caso, em Nova York, a polícia ficou perplexa com o pedido de intervenção e até achou que ela seria contraproducente.

É bem compreensível que essa atitude de autoridades universitária possa ocorrer em países autoritários, onde são nomeadas pelos poderes constituídos para manter a ordem nos campi. Como são, obviamente, funcionários obedientes, elas apoiam a polícia em sua atividade de “limpeza”, embora raramente tenham autoridade para convocá-la.

Mas nos EUA, os administradores universitários não são nomeados por Joe Biden ou pelo Congresso. Por que então atacariam seus próprios alunos? Seriam eles seres malvados que adoram subjugar os mais jovens?

A resposta é não. Eles simplesmente assumiram uma nova missão. Eles não veem mais o seu papel como defensores da liberdade de pensamento, tal como ocorria nas universidades tradicionais. Eles não estão tentando mais transmitir às gerações mais jovens valores de liberdade, moralidade, compaixão, altruísmo, empatia ou o que mais for considerado desejável.

O seu papel hoje é o de diretores de fábricas que são ainda chamadas de universidades. Essas fábricas têm uma matéria-prima chamada estudantes, a qual é convertida, em intervalos anuais regulares, em novos graduados para os mercados. Portanto, qualquer interrupção nesse processo de produção é como uma interrupção em uma cadeia de suprimentos.

Ela deve ser removida o mais rápido possível para que a produção possa ser retomada. É preciso dar saída aos estudantes graduados, trazer os novos, embolsar o dinheiro, encontrar doadores, obter mais fundos. Se os alunos interferirem nesse processo, eles devem ser disciplinados, se necessário pela força. A polícia deve ser acionada para que a ordem seja restaurada.

Os gestores não estão interessados em valores, mas em demonstração de resultados. O seu trabalho é equivalente ao de um diretor geral no Walmart, Amazon ou Burger King. Para tanto, poderão usar o discurso sobre valores, ou sobre um “ambiente intelectualmente desafiador”, ou mesmo sobre um “debate vibrante” (ou o que quer que seja!), tal como se vê nos discursos promocionais habituais que os altos gestores das empresas produzem hoje ao primeiro sinal de dificuldade.

Não é que ninguém acredite nesses discursos. Mas é preciso pronunciá-los. Trata-se de uma hipocrisia amplamente aceita. A questão é que tal nível de hipocrisia ainda não era totalmente comum nas universidades porque, por razões históricas, elas não eram exatamente vistas como semelhantes às fábricas de salsichas. Eles deveriam produzir pessoas melhores. Mas isso foi esquecido na corrida por renda e dinheiro de doadores. Como tais, as fábricas de salsichas não podem parar e a polícia precisa ser chamada [quando elas iniciam um protesto].

Um comentário crítico

O que é, afinal, o neoliberalismo? Uma boa resposta para essa pergunta é necessária para compreender melhor o fato histórico relatado por Branko Milanovic.

A compreensão do neoliberalismo, ao contrário do que pensa Dardot e Laval, não pode ser encontrada antes em Michel Foucault do que em Karl Marx. Pois, é preciso ver que o primeiro filósofo fornece apenas um modo quase idealista de compreender esse fenômeno sociocultural. A sua característica marcante é que privilegia o discurso (que configura as interações sociais) em detrimento de uma compreensão da práxis (atuação social fundada em determinadas relações sociais de produção).

Veja-se que é por meio de uma análise do discurso como aparato de poder que chegam a uma compreensão desse fenômeno: “o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica” – dizem eles –, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados”. (Dardot e Laval, 2016, p. 17).

A filosofia da práxis não se concentra em examinar os discursos, pois procura apresentar antes a lógica de reprodução do sistema econômico baseado na relação de capital, as classes que daí se originam, o Estado que procura selar as contradições, assim como as ideologias que tentam bloquear uma boa compreensão dessas contradições e de sua lógica de desenvolvimento, para que o próprio sistema prospere sem contestações radicais. Aqui se examina apenas as ideologias tendo por base os estudos clássicos de Ruy Fausto.

Ora, ideologia não vem a ser pretensão de saber que falsifica a realidade tendo em vista algum interesse, mas uma compreensão do social que se instala e se fixa na aparência dos fenômenos, procurando bloquear uma conscientização sobre a sua essência. Como diz Ruy Fausto, “a ideologia é o bloqueio das significações”. Assim, ela “torna positivo (…) aquilo que é em si mesmo negativo, aquilo que contém negatividade” (Fausto, 1987, p. 299).

Essa compreensão de ideologia, que a vincula à práxis social no modo de produção capitalista, permite entender melhor as três grandes que se impuseram na história do capitalismo, a saber, o liberalismo clássico, o liberalismo social e o neoliberalismo. Pois, elas dão forma a três modos de bloquear o aparecimento da contradição que move o capitalismo, qual seja ela, a contradição entre o capital e o trabalho assalariado. Para compreendê-las é preciso ver que esse modo de produção tem uma aparência, os mercados em que se vendem e se compram mercadorias em regime de competição, e uma essência, a subsunção do trabalho ao capital e, assim, a exploração do trabalho vivo pelo trabalho morto (agenciado como capital) nas fábricas em geral.

Assim, por exemplo, o liberalismo clássico guarda do capitalismo apenas a sua aparência de economia de mercado; desse modo, ele afirma a igualdade e a liberdade dos contratantes que buscam, supostamente, o seu auto-interesse. Contudo, quando se examina criticamente a relação contratual de troca entre o capitalista e o trabalhador, como aparência de uma relação de produção que vincula capital e trabalho, como relação entre o dono dos meios de produção e os possuidores de força de trabalho, vê-se que o capitalismo se eleva sobre a negação da igualdade e da liberdade dos contratantes, sobre a negação do auto-interesse já que ele consiste apenas numa subordinação dos interesses privados ao “interesse” maior da valorização do capital. Ao fixar a aparência da circulação, o liberalismo como ideologia oculta a contradição que mora na produção, para que o sistema possa prosperar.

Na história do capitalismo, o liberalismo clássico foi substituído, primeiro, pelo liberalismo social (que apareceu também como social-democracia) e, depois, pelo neoliberalismo.

O liberalismo com preocupação social – escreveu-se já há quase vinte anos atrás (Prado, 2005) – surge historicamente quando a aparência do modo de produção é desmentida na prática social, quando se torna perigoso para os capitalistas aferrarem-se à mera forma exterior da relação social de produção, quando a conservação do sistema torna-se ameaçada pela radicalidade das lutas sociais e pelas crises econômicas que as tornam ainda mais profundas. Então, a ideologia não pode mais se sustentar apenas na aparência da relação social, qual seja ela, a circulação e concorrência mercantil; ela precisa agora, de certo modo, ter em conta a própria essência dessa relação.

A fórmula que emerge consiste em apresentar a essência, não como contradição, mas como diferença; a contradição é assim reificada como forças sociais em confronto. E essas forças são distintas: uma delas é mais fraca do que a outra; uma delas consome insuficientemente e a outra poupa demais; uma delas não encontra ocupação e a outra não está criando ocupações em número suficiente para que seja mantida a paz social. Nessa perspectiva, afigura-se que cabe ao Estado atuar como poder equilibrador.

Assim, a política econômica keynesiana e a política social-democrática, a partir dos anos 1930, passaram a ocupar um lugar central na condução da política socioeconômica. Não é mais, pois, a identidade, mas a mera diferença, que oculta agora a contradição.

O liberalismo clássico se afigura como uma hipocrisia; ele pressabe da contradição na base do sistema, mas aceita como saber válido apenas aquilo que a dissumula de um modo objetivo; a ordem social lhe parece uma ordem natural; a autorregulação, proporcionada que é pela competição mercantil, lhe parece uma lei objetiva dessa ordem. Como sintetizou Adam Smith por meio do principio da mão invisível: eis que o egoísmo mercantil cria sem qualquer boa intenção “aquela riqueza universal que se estende as camadas mais baixas do povo” (Smith, 1983, p. 45).

O liberalismo social opta pelo reformismo; ele sabe da contradição, mas não a apreende como contradição; admite que mira um sistema social que falha na criação de empregos e que cria diferenças sociais gritantes, mas sustenta que boas políticas econômicas podem atenuar ou mesmo consertar os seus defeitos; a ordem social não é negada como ordem social; ao contrário, é tomada como ordem algo desordenada que falha e que precisa de reparo para que crie riqueza e bem-estar para a sociedade como um todo.

O neoliberalismo, por sua vez, vem a ser um cinismo; ele sabe da contradição, mas a apreende como paraconsistência de um sistema complexo; eis que este resultou de uma evolução espontânea das instituições e que, por isso mesmo, tem de ser aceito como tal. Para ocultar a contradição, não afirma que há igualdade de contratantes ou, alternativamente, que existem diferenças redutíveis entre as diversas posições sociais; afirma, isso sim, que todos estão numa condição similar na luta pela existência e que as diferenças decorrem do caráter lotérico do sistema econômico.

Uns detêm capital em dinheiro e em títulos financeiros, outros são donos de capital industrial ou comercial, outros ainda possuem mais ou menos capital humano. A riqueza é mal repartida, há posições sociais inferiores e superiores etc.? Sim, mas tudo isso deve ser.

Para ele, portanto, a evolução progressiva possível tem de estar submissa à logica discricionária dos mercados em geral; a ordem social é pensada agora como ordem espontânea que deve ser aceita como emergência histórica e, assim, como um imperativo moral; a competição mercantil deve ser acolhida e reverenciada porque se constitui como origem da sociedade atomizada – mera agregação de indivíduos enlaçados objetivamente por normas que se esmeram em proibir apenas os comportamentos desviantes e destruidores dessa ordem. Fora daí, tudo – pelo menos para os mais extremistas – deve ser permitido: venda dos próprios órgãos, venda dos filhos, as fakes news como estratégia de competição política etc.

Como mostra o artigo de Branko Milanovic, o neoliberalismo apregoa e implementa a sociabilidade mercantil; ela precisa se impor em todos os âmbitos sociais, com exceção talvez da família, entendida como ordem paternalista que prepara os indivíduos para os mercados. E o faz de forma mentirosa, autoritária e mesmo totalitária conduzindo de fato a humanidade ao suicídio – num curso trágico em que matar a velha universidade é apenas um detalhe. O capitalismo é hoje apenas um sistema suicidário.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Capitalismo no século XXI: ocaso por meio de eventos catastróficos (CEFA Editorial). [https://amzn.to/46s6HjE]

Referências


Dardot, Pierre e Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 17.

Fausto, Ruy. Marx – Lógica e Política. Tomo II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

Prado, Eleutério F. S. Desmedida do valor – Crítica da pós-grande indústria. São Paulo: Xamã, 2005.

Smith, Adam. A riqueza das nações – investigações sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Nota


[i] Economista sérvio-americano. Professor visitante do Centro de Pós-Graduação da City University of New York (CUNY). Foi economista-chefe do Departamento de Pesquisa do Banco Mundial.


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