Carmela Gross – Cabeças e Boca do inferno

Robert Rauschenberg, Express, Óleo, serigrafia e colagem sobre tela, 184,2 x 305,2 cm, 1963
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por PAULO SERGIO DUARTE*

Comentário sobre duas instalações da artista plástica

“Uma multidão anônima se aterroriza numa das paredes da galeria Vermelho, em São Paulo. Nas 226 (na verdade, são 256) colagens de Carmela Gross, cortes irregulares e grosseiros formam olhos e bocas em manchas escuras, que se tornam rostos quase carbonizados, em agonia permanente”.

Carmela Gross, CABEÇAS, Galeria Vermelho, São Paulo, 2021.

Esse é o parágrafo que abre o artigo de Carolina Moraes, na primeira página da Ilustrada – Folha de São Paulo, 17 de setembro de 2021. É raro, o artigo de jornal alcançar uma síntese magistral de uma obra de arte em duas frases. Sabemos que o mundo que vivemos – o Brasil, em particular – leva o artista a se deixar dominar pela política. Aí se diferenciam os artistas maiores daqueles menores. Quando o elemento poético é submetido ao político, a arte regride, se rebaixa e isto tem ocorrido com frequência, não só aqui, como no mundo.

Dominada a arte, o panfleto e a vulgata tomam conta do território da obra com resultados anêmicos que vão se confundir com o que pretendem se opor: a mensagem publicitária vulgarizada pelo capitalismo tardio e acelerada nas pequenas telas portáteis dos aparelhos celulares e tabletes que jugulam de modo refinadamente programado o consumo visual dos jovens das mais diversas classes sociais. Nas obras de arte, é preciso cobrar a reflexão poética contra a comunicação imediata típica da publicidade: essas obras têm que ser pensadas poeticamente para elevarem a força de seus programas. Se não for assim, o que fica é lixo panfletário para ser jogado fora depois de manifestações, ou, no máximo, se tornar Terrorist chic – versões atuais dos Radical chics dos anos 1970 – em paredes de galerias e institutos de arte que praticam a precária estetização da violência.

Artistas maiores – como Carmela Gross – conseguem o contrário, a arte resiste, não pelo tema com o qual interage, mas porque a linguagem inventada eleva à potência mais alta o que a diferencia das imagens banalizadas que saturam o cotidiano nesse mundo bipartido entre o real e o virtual.

Carmela Gross, CABEÇAS, Galeria Vermelho, São Paulo, 2021.

Cabeças são 256 “retratos”, variando em torno de 40 x 30 cm cada, formando a multidão de 300 x 1700 cm. Cada rosto foi realizado com papel japonês pintado de preto, rasgado a mão, e colado sobre fundo branco. É uma multidão onde cada rosto se individualiza, como único, todos negros, nenhum igual ao outro, cada um manifestando horror. É um expressionismo reativado na contemporaneidade, muito difícil de ser encontrado mesmo nos melhores museus. Retrato a retrato, a tristeza das gravuras de Goeldi é metamorfoseada em horror. Carmela conseguiu multiplicar 256 vezes O Grito (1893), de Munch, em resposta à tragédia de nossos dias.

Carmela Gross, FONTE LUMINOSA, Galeria Vermelho, São Paulo, 2021.

Na mesma galeria, estava presente outra obra da artista: Fonte Luminosa, 420 x 350 cm. É uma obra em neon e aço pintado de negro – formidável pela força com que faz contrastar a estrutura geométrica preta que sustenta os neons e a liberdade informal dos fios vermelhos luminosos. O suporte é protagonista – tanto como as luzes dos neons. Essa não é uma briga fácil, faz parte da história da arte e da nossa história da arte. O informal e o construtivo estiveram brigando ao longo da década de 1950, não somente no Brasil. Basta ver a França. Carmela alcança uma solução importante ao impor ao elemento geométrico construtivista a luz informal dos neons vermelhos, constrói o paradoxo histórico diante de nossos olhos de modo poético. Mais que isso: transforma em interação dialética – esteticamente produtiva e solidária – os dois vetores históricos opostos transportados para a linguagem contemporânea.

Carmela Gross, BOCA DO INFERNO, 34ª Bienal de São Paulo, 2021.

Boca do Inferno foi apresentada na 34ª Bienal de São Paulo. Logo assustava pela sua monumentalidade: 6 metros de altura por 30 metros de largura; em centímetros (segundo as regras museológicas de mensuração) 600 x 3.000 cm. São 160 monotipias que variam desde 60 x 46 cm até 121 x 81 cm. Essas monotipias foram realizadas em 2019, no Ateliê de Gravura da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Evocam erupções vulcânicas, apresentadas em negativo: chamas e lavas vêm em negro.

Carmela Gross, BOCA DO INFERNO, 34ª Bienal de São Paulo, 2021.

Mas não é com isso que se depara o espectador. Essas são informações que obtive da artista. A enorme parede apresenta manchas negras de diversas formas. O título Boca do Inferno sugere a origem das imagens; apenas sugere, não a define. Algumas das manchas estão distribuídas em até quatro suportes. Numa época dominada pela tristeza, as manchas negras evocam antes o luto que erupções vulcânicas, responsáveis por transformações geológicas.

Carmela Gross, BARRIL, A CARGA e PRESUNTO, 34ª Bienal de São Paulo, 2021. © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo.

Ainda nessa mesma edição da Bienal de São Paulo, podemos ver Presunto, de 1969, de lona preenchida, hoje, com isopor (na sua primeira apresentação, era palha de madeira revestida de lona), 50 x 300 x 180 cm. A obra tem 51 anos, mas não poderia ter sido realizada ontem? A força de sua contemporaneidade é evidente. Aí reside um aspecto da obra de Carmela Gross que podemos observar em outro importante artista contemporâneo: José Resende.

Em última análise, trata-se de não podermos detectar fases, que serão substituídas por outras ao longo do desenvolvimento da obra. Apreciamos momentos com uma identidade marcada pelas investigações do diálogo entre linguagem e os materiais com que está lidando. Isso tem consequências importantes na formação de nosso conhecimento artístico. Podemos apreciar a contemporaneidade como momento histórico – fenômeno / percepção / elevação –, que raros artistas são capazes de apresentar no interior da própria obra. Não importa, se realizados há cinquenta anos, ou ontem – todas pertencem ao hoje-presente.

*Paulo Sergio Duarte é crítico, curador e professor de história da arte na Universidade Candido Mendes. Autor, entre outros livros, de A trilha da trama e outros textos sobre arte (Funarte).

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
A fragilidade financeira dos EUA
Por THOMAS PIKETTY: Assim como o padrão-ouro e o colonialismo ruíram sob o peso de suas próprias contradições, o excepcionalismo do dólar também chegará ao fim. A questão não é se, mas como: será por meio de uma transição coordenada ou de uma crise que deixará cicatrizes ainda mais profundas na economia global?
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O ateliê de Claude Monet
Por AFRÂNIO CATANI: Comentário sobre o livro de Jean-Philippe Toussaint
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Donald Trump ataca o Brasil
Por VALERIO ARCARY: A resposta do Brasil à ofensiva de Trump deve ser firme e pública, conscientizando o povo sobre os perigos crescentes no cenário internacional
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES