Por JOSÉ MICAELSON LACERDA MORAIS*
Introdução do autor ao livro recém-lançado
O termo liberdade tem sido utilizado na literatura ao longo de séculos, sendo difícil precisar exatamente quando foi usado pela primeira vez. No entanto, é possível identificar alguns marcos importantes da ideia de liberdade na literatura. Por exemplo, o termo já era utilizado na Grécia Antiga, mesmo antes de grandes filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles. A ideia de liberdade era uma preocupação central na democracia ateniense do século V a.C., e muitos outros filósofos gregos também trataram do tema da liberdade em suas obras.
Hesíodo (século VIII a.C.), foi um poeta grego que escreveu Os Trabalhos e os Dias. Embora seu poema não trate explicitamente da ideia de liberdade, ele pode ser interpretado como uma defesa da liberdade individual que se dá através do trabalho árduo e da virtude, como condições necessárias para se obter sucesso na vida; em vez de depender da sorte ou da ajuda dos deuses, por exemplo. Ele também defendeu a importância da justiça e da honestidade como elementos fundamentais para uma sociedade livre e saudável. Ele aconselhava os indivíduos a cultivarem suas próprias terras e a não dependerem da caridade ou da ajuda de outros. A partir do exposto podemos inferir que existe, em Hesíodo, uma certa relação entre independência econômica e liberdade.
Por sua vez, o filósofo pré-socrático Heráclito, que viveu no século VI a.C., trabalhou conceitos como a mudança constante e o logos (razão), e suas relações com o universo e à condição humana. Todavia, é possível encontrar uma conexão indireta entre as ideias de Heráclito e a liberdade. Por exemplo, a ideia de que tudo está em constante mudança e que nada permanece o mesmo pode ser vista como uma afirmação da liberdade individual.
A mudança constante significa que as pessoas têm a liberdade de mudar e de se adaptar ao mundo em constante transformação ao seu redor. Heráclito acreditava na razão como única forma de compreender o mundo e que o logos governava tudo. Podemos também entender essa ênfase na razão como uma afirmação da liberdade individual, uma vez que a razão dá às pessoas a liberdade de compreender o mundo e de tomar decisões baseadas em uma compreensão “clara e racional”.
Anaximandro (610 a.C. – 546 a.C.), também foi um filósofo pré-socrático. Ele também não discutiu diretamente a ideia de liberdade em suas obras (fragmentos e referências de suas obras sobreviveram através de citações de outros autores antigos). No entanto, é possível encontrar uma conexão indireta entre suas ideias e a liberdade. Conforme sua filosofia todas as coisas têm uma origem comum no apeiron, um princípio ilimitado e indefinido, que é a origem de todas as coisas. Isso significa que tudo é interdependente e coexistente.
Em outras palavras, não há hierarquia entre as coisas, e nenhuma coisa é mais importante ou valiosa do que outra. Podemos ver essa ideia como uma afirmação da liberdade individual, já que implica que não há nada que seja inerentemente superior ou inferior. Em vez disso, cada indivíduo tem a liberdade de buscar sua própria realização e felicidade, sem ser limitada por qualquer ordem preestabelecida. Ideia que também se aplica a outra teoria de Anaximandro, na qual todas as coisas são governadas por leis naturais que operam de forma consistente e previsível.
Chegamos ao período clássico da história grega, uma época de grande produção cultural e intelectual na Grécia Antiga. Nele, inicialmente, encontramos Sócrates, considerado o fundador da filosofia ocidental e reconhecido por seus métodos de questionamento e reflexão crítica. A ideia de liberdade em Sócrates está intimamente relacionada à sua concepção de virtude e sabedoria.
Segundo ele, a verdadeira liberdade era alcançada através do conhecimento e da prática da virtude, que permitiam ao indivíduo se livrar das paixões e desejos que o aprisionavam. Para ele a ignorância seria a principal causa da escravidão humana, pois impedia os indivíduos de compreender a natureza da virtude e, consequentemente, de agir de forma justa e correta. Assim, a busca pelo conhecimento era o caminho para a libertação da ignorância e das paixões desordenadas.
Por sua vez, Platão, assim como seu mestre Sócrates, acreditava que a ignorância era a principal causa da escravidão humana. Ele abordou a liberdade em várias de suas obras, enfatizando a importância da justiça social e da virtude individual para alcançar a verdadeira liberdade. Em sua obra “A República”, Platão defendia que a verdadeira liberdade só poderia ser alcançada em uma sociedade justa, em que cada indivíduo cumprisse o seu papel e trabalhasse em prol do bem comum.
Essa sociedade ideal deveria ser governada por filósofos, que seriam capazes de compreender a verdadeira natureza das coisas e conduzir a sociedade de forma justa e sábia. Todavia, a liberdade somente podia ser alcançada através do autocontrole e do autoconhecimento. Em outras palavras, para Platão, a ideia de liberdade estava intimamente ligada à ideia de justiça, sabedoria e conhecimento, e se baseava em uma compreensão profunda da natureza humana e das coisas em si mesmas.
Por último, Aristóteles, um dos mais importantes filósofos da Grécia Antiga, também, tinha sua própria concepção de liberdade. Para ele, a liberdade estava diretamente relacionada à ideia de virtude e de excelência moral. Segundo ele, a liberdade não consistia apenas em fazer o que se quer, mas em agir de acordo com a razão e a virtude, ou seja, agir de acordo com o bem comum e não apenas com seus próprios interesses. Portanto, para Aristóteles, a verdadeira liberdade consistia em ter a capacidade de escolher e agir de forma racional e virtuosa, superando as tentações das próprias paixões e desejos.
Aristóteles, também, defendia a liberdade em uma outra dimensão; como um estado interno do indivíduo, e não como algo que pudesse ser dado ou retirado por outros. A verdadeira liberdade era alcançada quando o indivíduo se tornava autônomo e autodeterminado, capaz de agir de acordo com sua própria razão e vontade, e não apenas seguindo as ordens de outros. Mas, também, a liberdade era para ele uma virtude social, ou seja, algo que só poderia ser alcançado em uma sociedade justa e democrática, em que cada indivíduo pudesse participar ativamente da vida política e tomar decisões em prol do bem comum.
É importante destacar que a ideia de liberdade era muito diferente na Grécia antiga em comparação com sua noção moderna. Naquele tempo a liberdade era vista como um privilégio concedido apenas a uma elite de homens livres e não como um direito universal de todos os seres humanos. Os gregos acreditavam que a liberdade era algo que se conquistava por meio da participação ativa na vida política da cidade. Na polis (cidade-estado), os cidadãos tinham o direito de participar das assembleias populares e votar em questões políticas.
Esse direito, no entanto, era concedido apenas a uma minoria de homens livres, excluindo mulheres, estrangeiros e escravos. Por seu turno, como anteriormente descrito, a ideia de liberdade na Grécia Antiga também estava associada à ideia de virtude. Os gregos acreditavam que a liberdade só podia ser alcançada por meio da virtude e da disciplina, e que a liberdade individual deveria estar subordinada ao bem da comunidade como um todo.
Ao longo dos séculos, muitos escritores e filósofos exploraram a ideia de liberdade em suas obras, incluindo o filósofo romano Cícero (filósofo, advogado e político romano, que viveu no século I a.C.), o poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321) e o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), entre muitos outros.
Cícero defendeu a ideia de que a liberdade era um valor fundamental para a vida humana, e estava diretamente relacionada à capacidade do indivíduo de tomar suas próprias decisões e agir de acordo com sua própria vontade. Ou seja, a liberdade era um direito inalienável de todos os seres humanos, e que deveria ser protegida pelo “Estado” e pela sociedade.
Assim, a liberdade era essencial para o desenvolvimento humano e para a busca da felicidade, sendo que nenhuma pessoa ou governo tinha o direito de privar outra pessoa de sua liberdade. Logo, a liberdade estava também ligada à ideia de virtude e justiça. Pois, ele acreditava que a liberdade só poderia ser plenamente realizada em uma sociedade justa, em que as leis fossem aplicadas de forma igual para todos e em que as pessoas fossem tratadas com respeito e dignidade. Cícero, também, defendia a ideia de que a liberdade não era apenas um valor individual, mas também coletivo. Pois, acreditava que a liberdade da sociedade como um todo dependia da liberdade de cada indivíduo e que era dever de todos os cidadãos lutar pela liberdade e pela justiça.
Por sua vez, Dante Alighieri, foi um escritor, poeta e filósofo italiano, que nasceu em Florença, na Itália, sendo mais conhecido por sua obra-prima, A Divina Comédia, considerada uma das mais importantes obras da literatura mundial. De forma geral, a obra é uma alegoria que representa a jornada humana em direção à salvação, repleta de simbolismos e metáforas que representam os vícios, pecados e virtudes humanas. A obra também apresenta uma reflexão sobre a política, a religião, a filosofia e a cultura da Itália do século XIV.
Embora ele não tenha tratado diretamente sobre o tema liberdade, sua obra representa uma metáfora para o sentido da liberdade terrestre e celestial. Ilustremos este ponto com algumas passagens de seu grandioso poema:
“[…] A liberdade anela, que é tão cara:
Sabe-o bem quem por ela a vida expele.
Por ela a morte não te há sido amara
Em Útica, onde a veste foi deixada,
Que em Juízo há de ser de luz tão clara.
Por nós eterna lei não é violada:
Ele inda vive; Minos não me empece;
No círc’lo estou, onde acha-se encerrada […]”
“[…] Os sábios, estudando o fundamento
Das cousas, vendo inata a liberdade,
Da moral vos tem dado o ensinamento.
E, supondo que por necessidade
Nascesse todo o amor, que vos incende,
Tendes para contê-lo potestade.
Nobre virtude ser Beatriz entende
O livre arbítrio; e, quando lhe falares,
A isto mesma a memória atento prende […]”
“[…] Quando já de estar puro o sentimento
Uma alma tem e se ala ao céu, que a chama,
Segue o tremor e o grito ao movimento.
Seu querer a pureza lhe proclama,
Prova que tem de alçar-se a liberdade
Por força do desejo, em que se inflama.
Antes o tem; mas contra essa vontade
A divina justiça ardor lhe inspira
Por pena, como o teve por maldade.”
“A Divina Bondade que desvia
De si o desamor, arde e flameja,
Por eternais primores se anuncia.
Diretamente o que emanado seja
Dela é sem fim; eterna impressão fica
Do que no seu querer supremo esteja.
O que assim nasce, não sujeito fica
Das causas secundárias à influência
E liberdade plena significa.
Mais lhe apraz, se é conforme à sua essência:
Que o santo Amor que em toda cousa brilha,
Mais vivo é no que encerra esta excelência.
Aos homens de tais bens cabe a partilha:
De tais predicados se um falece,
Sua nobreza já decai, se humilha.
Só por pecado dessa altura desce;
Do Sumo Bem não mais reflete o lume,
Semelhança não mais dele oferece.
E o grau sublime seu não mais assume,
Se não contrapuser ao do pecado
Deleite mau das penas o azedume.
Quando o gênero humano, infeccionado
Todo no germe seu, foi dessa alteza
E do seu Paraíso deserdado,
Reaver só pudera (com certeza Verás,
se bem cogitas), intervindo
Um dos meios, que aponto por clareza:
Ou Deus, por graça infinda, remitindo;
Ou – porque, de si mesmo, se convença –
Das culpas suas o homem se remindo […]”
Durante a Idade Média, como exemplificado, em Dante, a liberdade era vista como um dom divino, um direito dado por Deus que deveria ser protegido pela Igreja. No entanto, o seu uso moderno começou a se desenvolver no final desse período. Durante o Renascimento e o Iluminismo, a liberdade começou a ser vista como um direito natural dos indivíduos que deveria ser protegido pelo Estado.
Os primeiros usos do termo liberdade na modernidade, no sentido político e individual, podem ser atribuídos aos pensadores do Renascimento, e dos movimentos humanistas que surgiram a partir do século XV, na Europa. Esses pensadores, tais como Giovanni Pico, Nicolau Maquiavel, Jean-Jacques Rousseau e John Locke, por exemplo, começaram a questionar a autoridade do poder religioso e político, e a defender a autonomia individual e a liberdade de pensamento.
Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, foi um filósofo, músico e teórico político, suíço-francês, do século XVIII, conhecido por suas ideias sobre a natureza humana, a sociedade e a política. Embora tenha vivido no século XVIII, época conhecida como Iluminismo, ele não era considerado um dos principais iluministas da época, uma vez que suas ideias se diferenciavam em algum grau das ideias dominantes do movimento, que enfatizavam a razão e a ciência. Todavia, ele escreveu extensamente sobre o tema da liberdade e seus escritos influenciaram profundamente o pensamento político moderno.
As ideias de Jean-Jacques Rousseau sobre a liberdade, a igualdade e a soberania popular, influenciaram muitos movimentos e revoluções políticas, principalmente, na Europa e nas Américas, em especial, a Revolução Francesa (1789) e a Revolução Americana (1775-1783).
Apresentamos algumas passagens de sua obra seminal Do Contrato Social, publicada, em 1762, para ilustrar esse novo tratamento do tema liberdade: “[…] o que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o tenta e pode alcançar; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui […]”; “[…] Se se procura saber em que consiste precisamente o maior dos bens, que deve ser o objetivo de todo sistema de legislação, achar-se-á que se reduz a estes dois objetos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque toda independência particular é outra tanta força subtraída ao corpo do Estado; a igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela […]”; “[…] Que é, portanto, o governo? Um corpo intermediário, estabelecido entre os vassalos e o soberano, para possibilitar a recíproca correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política […]”; “[…] Desejais dar consistência ao Estado? Aproximai os graus extremos tanto quanto possível; não tolereis nem homens opulentos nem mendigos. Esses dois tipos de cidadãos, naturalmente inseparáveis, são por igual funestos ao bem comum; de um se originam os fautores da tirania, e de outro os tiranos. É sempre entre eles que se faz o tráfico da liberdade pública; um a compra, e o outro a vende […]”.
Ao longo dos séculos XVIII e XIX, o conceito de liberdade se tornou cada vez mais ligado às ideias de democracia, igualdade e direitos humanos, amparadas pela combinação de liberdade individual, econômica e política. Filósofos como John Locke, Immanuel Kant, Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Jean-Jacques Rousseau, anteriormente citado, desenvolveram teorias sobre a liberdade dos indivíduos e sobre o papel do Estado em proteger essas liberdades.
Immanuel Kant (1724-1804), por exemplo, desenvolveu uma teoria da liberdade em sua obra Crítica da Razão Pura (1781), onde argumentou que a liberdade é uma característica fundamental da razão humana: “[…] por liberdade em sentido cosmológico, pelo contrário, entendo o começar de um estado por si mesmo, cuja causalidade, portanto, não está sob uma outra causa que, segundo a lei da natureza, a determinasse temporalmente. […]” (op. cit., 2015, p. 429). Para Immanuel Kant, portanto, a liberdade é a capacidade de agir de acordo com a razão, ou seja, é a capacidade de escolher livremente o que é certo e o que é errado, sem ser determinado por causas externas ou pelo mero impulso dos desejos e inclinações naturais. A liberdade é, assim, a base da moralidade, pois é somente através dela que podemos ser responsáveis pelas nossas ações e escolhas.
Um último comentário sobre a liberdade em Immanuel Kant está relacionado aos seus dois sentidos: positivo e negativo. O primeiro, se refere à nossa capacidade de agir de acordo com a razão e com as leis morais que impomos a nós mesmos, em vez de simplesmente seguir impulsos e desejos naturais.
“[…] A razão tem de submeter-se à crítica em todos os seus empreendimentos, e não pode comprometer a liberdade desta, através de proibições, sem prejudicar-se a si mesma e levantar uma suspeita desvantajosa contra si. E não há nada tão importante, no que diz respeito à sua utilidade, nem nada tão sagrado, que pudesse eximir-se dessa inspeção de controle e exame que não leva em conta a reputação das pessoas. Nessa liberdade está baseada a própria existência da razão, que não tem uma autoridade ditatorial, e cuja sentença, pelo contrário, nunca é outra senão o livre consenso dos cidadãos, que têm de poder sempre, cada um deles, expressar tanto suas reservas como também seu veto sem qualquer resistência […]” (op. cit., 2015, p. 546).
O sentido negativo da liberdade, se refere à ausência de obstáculos externos que impeçam a ação livre de um indivíduo. Em outras palavras, a liberdade negativa é a liberdade de agir sem ser impedido ou coagido por forças externas, sejam elas físicas ou sociais. No entanto, a liberdade negativa, por si só não é suficiente para garantir a liberdade plena de um indivíduo, uma vez que ele pode ser limitado por suas próprias inclinações naturais, que podem levá-lo a agir de forma contrária aos princípios morais que ele considera válidos. Por essa razão, a liberdade positiva, que se refere à capacidade de agir de acordo com a razão e com a lei moral que impomos a nós mesmos é vista como uma forma mais elevada de liberdade.
Por seu turno, John Locke (1632-1704), foi um filósofo inglês e, como Kant, também é considerado um dos principais pensadores do Iluminismo. Ele é conhecido por suas contribuições para a filosofia política, especialmente em relação à liberdade e aos direitos individuais. Ele acreditava que todos os seres humanos nascem iguais e livres, com direitos naturais, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade. Portanto, a liberdade era um direito natural e inalienável de todo ser humano e que a liberdade deveria ser protegida pelo governo.
Para John Locke, a liberdade consistia na capacidade de agir de acordo com a própria vontade, sem ser impedido por outros ou pelo governo. Isso incluía a liberdade de expressão, a liberdade religiosa, a liberdade de associação e a liberdade de propriedade. Segundo ele, a liberdade individual representa um pré-requisito para a busca da felicidade e para o desenvolvimento humano.
Todavia, John Locke também reconhecia que a liberdade individual poderia entrar em conflito com a liberdade de outros indivíduos. Por exemplo, se um indivíduo escolhesse roubar a propriedade de outro, ele estaria violando a liberdade desse outro. Nesse caso, John Locke acreditava que o governo deveria intervir para proteger a liberdade da vítima. Por isso, propôs a ideia de um contrato social, através do qual os indivíduos concordam em renunciar a parte de sua liberdade em troca da proteção do governo. Esse contrato estabelece que o poder do governo deve ser exercido com o consentimento dos governados e que o governo deve ser responsável perante o povo.
Por último, conforme John Locke explica, os indivíduos têm o direito de escolher seus governantes e de participar no processo político, e que o governo só pode governar, a partir do consentimento de seus governados. Essa ideia também foi fundamental para o desenvolvimento das democracias modernas e para a luta pela igualdade e pelos direitos civis.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um filósofo alemão que influenciou significativamente a tradição filosófica ocidental. Sua filosofia é frequentemente chamada de idealismo alemão e é caracterizada por sua ênfase na dialética, ou seja, na ideia de que o movimento da história e do pensamento é impulsionado por contradições e conflitos que são resolvidos através da síntese. Hegel exerceu grande influência sobre muitos filósofos posteriores, incluindo Karl Marx, Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger.
Hegel, em sua obra Filosofia da história, de 1827, procurou demonstrar que se é a razão que governa o mundo, a “história universal é também um processo racional” (op. cit, 2008, p. 17). Hegel descreve a razão como uma substância de força infinita, “[…] ela se nutre a si mesma, é o seu próprio pressuposto, e o seu objetivo é o objetivo final absoluto […] o verdadeiro, o eterno, a potência pura e simples, que se manifesta no mundo e somente ela se manifesta […]”, realizada e realizando a história universal (op. cit., 2008, p. 17).
“[…] Portanto, o estudo da história universal resultou e deve resultar em que nela tudo aconteceu racionalmente, que ela foi a marcha racional e necessária do espírito universal; espírito cuja natureza é sempre idêntica e que a explica na existência universal […]” (op. cit., 2008, p. 18).
No fim dessa trajetória, a realização da história universal, ou seja, a realização completa da razão no mundo, a forma acabada assumida do espírito na existência, encontra-se representada no Estado. Porque, para Hegel, somente este é capaz de realizar a essência do espírito: a liberdade. Esta, por sua vez, uma característica intrínseca à própria natureza do espírito, e somente dela, e por ela, todas as propriedades do espírito se realizam e são realizadas na existência: “[…] todas as propriedades do espírito só existem mediante a liberdade, são todas apenas meios para a liberdade, todas a procuram e a criam […] a liberdade é a única verdade do espírito […]” (op. cit., 2008, p. 23-24).
Por seu turno, a liberdade, em Hegel, está relacionada a autoconsciência, consciência de si mesmo. Para sua existência, como tal, não basta que apenas um homem seja livre (criação de um déspota), nem tampouco que poucos sejam livres (situação de escravidão). Hegel, destaca que foi somente considerando o princípio cristão de autoconsciência e da liberdade que o homem se reconheceu finalmente como livre, “[…] que o homem é livre como homem, que a liberdade do espírito constitui a sua natureza mais intrínseca […]” (op. cit., 2008, p. 24).
Mas, tal reconhecimento não implica necessariamente na sua realização, como o próprio autor reconhece, pois: “[…] a escravidão, por exemplo, não acabou de chofre com a aceitação da religião cristã. Muito menos a liberdade reinou logo a seguir, e tampouco os governos e as constituições foram organizados de maneira racional ou sequer baseados no princípio da liberdade. Essa aplicação do princípio aos assuntos do mundo, a atuação e a penetração dele na condição profana, eis o longo processo que constitui a própria história […]” (op. cit., 2008, p. 24-25).
Cabe observar que, para Hegel, a religião assume uma dimensão fundamental para a realização da razão na existência. É ela que proporciona, a partir do cristianismo e nas nações germânicas, segundo o autor, o reconhecimento do ser por si mesmo, ou seja, da autoconsciência e da liberdade. Mas, aquilo que é em si, não é, necessariamente, aquilo que é na existência, na história. Então, Hegel, a partir de um conjunto de mediações e de analogias com a religião conclui que a configuração existencial dessa realização somente ocorre com o Estado.
“[…] Na história universal tudo convergiu para esse objetivo final [a liberdade]; todos os sacrifícios no amplo altar da Terra, através dos tempos, foram feitos para esse objetivo final. É o único fim que se realiza e cumpre, o único permanente na trama mutável de todos os acontecimentos e circunstâncias, bem como a força verdadeiramente atuante. Esse objetivo final é aquilo que Deus quer do mundo; porém Deus é a perfeição, e por isso não pode querer nada além de si mesmo, sua própria vontade. Quanto à natureza de sua vontade, ou seja, a sua própria natureza, é o que nós denominamos aqui a ideia de liberdade, apreendendo por meio do pensamento a representação religiosa […]” (op. cit., 2008, p. 25).
O conjunto de mediações a que nos referimos acima, diz respeito às contradições intrínsecas da natureza humana. De um lado, os instintos, as paixões, os interesses e, de outro, o raciocínio, o entendimento, a razão. As paixões representam a vitalidade dos indivíduos e dos povos, potências da vontade, que resultam nas ações humanas.
“[…] Dissemos que nada se realizou sem o interesse e a atividade daqueles que participaram. Dissemos que nada no mundo foi realizado sem o interesse daqueles que, com suas ações, colaboraram para tal realização, tomando o interesse como paixão, negligenciando todos os outros interesses e fins que o homem também tem e pode ter, com toda a fibra do querer, concentrando nesse objetivo todas as suas necessidades e forças. Então devemos dizer, de maneira geral, que nada de grande acontece no mundo sem paixão […]” (op. cit., 2008, p. 28).
Todavia, ao concretizar seus próprios interesses, os indivíduos realizam algo mais abrangente, algo além do que foi originalmente intencionado. É a ideia da história universal como progresso, este sendo entendido como o domínio da razão sobre as paixões, como um tipo de “disciplinamento” dos interesses particulares pelos interesses gerais, ao qual, grosso modo, Hegel denominou de “astúcia da razão”. Disciplinamento que se dá pela passagem da moralidade subjetiva para a moralidade objetiva, através do Estado.
“[…] O interesse particular da paixão é, portanto, inseparável da participação do universal, pois é também da atividade do particular e de sua negação que resulta o universal. É o particular que se desgasta em conflitos, sendo em parte destruído. Não é a ideia geral que se expõe ao perigo na oposição e na luta. Ela se mantém intocável e ilesa na retaguarda. A isso se deve chamar astúcia da razão: deixar que as paixões atuem por si mesmas, manifestando-se na realidade, experimentando perdas e sofrendo danos, pois esse é o fenômeno no qual uma parte é nula e a outra afirmativa. O particular geralmente é ínfimo perante o universal, os indivíduos são sacrificados e abandonados. A ideia recompensa o tributo da existência e da transitoriedade, não por ela própria, mas pelas paixões dos indivíduos […]” (op. cit., 2008, p. 35).
Dessa maneira, existe um fim último determinado para a humanidade que está além do seu conhecimento e para o qual a filosofia deve conduzir. Parece ser somente uma questão de tempo até o ponto em que as paixões e os interesses, que continuarão a existir e que funcionam como motivações originais de todas as atividades humanas, sejam tornados elementos secundários, e que o “bem verdadeiro” e a “razão divina universal”, possam se realizar em sua representação mais concreta (que conforme Hegel é Deus). “[…] Deus governa o mundo, e o conteúdo de seu governo, a realização de seu plano, é a história universal […] a razão é a compreensão da obra divina […]”. (op. cit., 2008, p. 28)
A descoberta do saber, da crença e da vontade do universal, leva a união da moralidade subjetiva com a razão, realizada no Estado. Sendo somente a partir deste que o indivíduo tem e desfruta sua liberdade. Portanto, para Hegel, não existe liberdade fora do Estado. A liberdade fora do Estado é pura arbitrariedade e limitação, já que se refere somente ao caráter particular das necessidades.
“[…] A vontade subjetiva e a paixão são os fatores que atuam, que realizam. A ideia é o interior. O Estado é o que existe, é a vida real e ética, pois ele é a unidade do querer universal, essencial, e do querer subjetivo – e isso é a moralidade objetiva […] As leis da moralidade objetiva não são acidentais, são o próprio racional. O fim do Estado é, pois, que vigore o substancial na atividade real do homem e em sua atitude moral, que ele exista e se conserve em si mesmo […] É preciso saber que tal Estado é a realização da liberdade, isto é, da finalidade absoluta […] No Estado, o universal está nas leis, em determinações gerais e racionais. Ele é a ideia divina, tal qual existe no mundo […] A lei é a objetividade do espírito e da vontade em sua verdade, e só a vontade que obedece à lei é livre, pois ela obedece a si mesma, está em si mesma livremente […]” (op. cit., 2008, p.39-40).
Em síntese, para Hegel (2008), a essência do espírito é atividade, que por sua vez provém das necessidades, paixões e interesses particulares (moralidade subjetiva). A vontade é potência (ideia), a atividade é a realização dessa potência. História seria, pois, a realização da potência através do tempo. Realização que tem um ponto de chegada: o domínio completo e absoluto da razão sobre a existência. Por sua vez, a razão é a substância da liberdade e esta, finalmente, representa a plena realização do homem no mundo, ou seja, a realização do espírito universal na história. Realização que somente ocorre através e pelo Estado (moralidade objetiva): o condutor racional e necessário para esse fim.
Hegel, reconhece que com a necessidade de governo e de administração, surge também a diferença entre comandantes e comandados, entre os que ordenam e os que obedecem. Neste sentido, Estado e liberdade se tornam incongruentes. Situação que é resolvida pelo autor através da ideia de Constituição, na qual a diferença entre comandantes e comandados surge apenas como uma “necessidade da liberdade”. Decorre daí as formas constitucionais de monarquia, aristocracia e democracia.
Por fim, para Hegel, a forma ideal de governo seria a monarquia, pelos seguintes motivos: (1) formação educacional superior do monarca; (2) a ideia do herói como o único personagem transformador da história; e (3) do monarca como representante de Deus na terra, no sentido de que se é preciso a figura de um Deus para dirigir o universo, na terra não seria diferente.
Posto essas breves considerações sobre a liberdade ao longo da história, cabe observar que as revoluções francesa e americana se apresentam como eventos históricos-síntese que ajudaram a estabelecer a liberdade como um valor fundamental das sociedades modernas. Porém, uma das principais mudanças no conceito de liberdade, no século XIX, foi a ênfase na liberdade individual; que no campo econômico do modo de produção capitalista tornou-se sinônimo do autointeresse (sintetizado no dogma da mão invisível de Smith), e móvel justificador da busca desenfreada de ganho privado.
Como mostra Albert Hirschman, em sua obra As paixões e os interesses: argumentos políticos a favor do capitalismo antes de seu triunfo, a liberdade individual na forma do autointeresse foi capaz de estabelecer uma “[…] poderosa justificativa econômica para a busca desenfreada do interesse próprio individual […]”.
As intenções eram as melhores possíveis: do uso da liberdade individual (autointeresse) em benefício do homem e da humanidade. Todavia, a história econômica do capitalismo mostrou outros desfechos deveras perversos e desumanos para esse princípio: (1) uma escalada de desigualdades de todas as ordens (social, econômica, política, de gênero, de raças); (2) imperialismos e colonialismos; (3) exploração desenfreada e predatória do trabalho social e da natureza; e (4) a criação de um potencial bélico destrutivo da própria civilização em termos globais.
Como nos adverte, ainda, Hirschman, na obra anteriormente citada: “[…] Curiosamente, os efeitos pretendidos, mas não concretizados das decisões sociais ainda precisam ser descobertos, mais ainda do que aqueles efeitos não pretendidos que se acabam tornando demasiado reais: esses últimos pelo menos estão aí, enquanto os resultados pretendidos, mas não realizados estão somente por ser encontrados nas expectativas expressas dos atores sociais num momento dado, e frequentemente transitório. Além disso, uma vez que esses efeitos desejados deixam de ocorrer e se recusam a vir ao mundo, o fato de que se contou com eles originalmente pode vir a ser não somente esquecido como ativamente reprimido. Não se trata somente de os atores originais conservarem seu respeito próprio, mas torna-se essencial fazê-lo se os subsequentes detentores do poder devam assegurar-se da legitimidade da nova ordem: que ordem social poderia sobreviver por longo tempo à consciência dual de que, por um lado, ela foi adotada com a firme expectativa de que solucionaria certos problemas e, por outro, tem fracassado clara e redondamente nisso?” (op. cit., 1979, p. 115).
Assim, ideia de liberdade econômica na literatura especializada está associada ao liberalismo econômico (tendo na propriedade privada moderna seu pilar central). Os liberais defendem a ideia que as atividades econômicas devem ser deixadas ao livre jogo do mercado, sem interferência excessiva do Estado, para que alcancem seu maior desempenho. Esse conceito começou a ser desenvolvido no final do século XVIII e início do século XIX, e transformou-se em dogma central da teoria econômica do século XX.
Um dos mais importantes defensores do liberalismo econômico foi o economista escocês Adam Smith, que publicou sua obra A Riqueza das Nações, em 1776. Nessa obra, Smith argumentou que a liberdade econômica, baseada na divisão do trabalho, na busca do interesse próprio e na livre concorrência, levaria a uma maior prosperidade e progresso para as sociedades. A obra de Smith exerceu grande influência sobre outros escritores e economistas, como David Ricardo e John Stuart Mill, por exemplo.
Antes de Smith, alguns pensadores já haviam defendido a ideia de liberdade econômica em diferentes graus. Um dos mais conhecidos foi o filósofo francês François Quesnay, que foi um dos líderes da escola econômica conhecida como Fisiocracia. Quesnay acreditava que a economia deveria ser governada pelas leis naturais da produção agrícola e que o governo deveria limitar sua intervenção no mercado. Ele influenciou muitos pensadores posteriores, incluindo o próprio Smith.
Bernard de Mandeville, outro importante autor, embora filósofo, defendia a liberdade econômica na aurora do capitalismo. Ele publicou uma obra polêmica intitulada “A Fábula das abelhas: ou, vícios privados, benefícios públicos”, em 1714. Nessa obra, ele defendia a ideia que o vício privado era a base da virtude pública e que a sociedade deveria permitir que as pessoas buscassem seus próprios interesses econômicos sem restrições. Porque, dessa forma, a sociedade se beneficia da busca egoísta e individualista da riqueza e do prazer pelos indivíduos. Pois, segundo o referido autor, é a busca desses vícios privados que impulsiona a economia e a prosperidade da sociedade como um todo
Ao longo dos séculos XIX e XX, outros escritores e pensadores continuaram a desenvolver e discutir a ideia de liberdade econômica, incluindo proeminentes figuras, tais como Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Milton Friedman. A ideia de que a liberdade econômica é essencial para o bem-estar das sociedades continua a ser defendida, inclusive de forma radical pelo neoliberalismo e seus representantes. Embora, também, seja criticada por aqueles que acreditam que ela foi responsável pelas desigualdades econômicas, em suas mais diversas matizes e interseccionalidades, bem como por toda sorte de problemas econômicos, políticos, sociais e ambientais, da atualidade. Inclusive colocando em risco a existência e a reprodução da civilização humana como a conhecemos.
*José Micaelson Lacerda Morais é professor do Departamento de Economia da URCA. Autor, entre outros livros, de Renda, lutas de classes e revolução (Clube de Autores).
Referência
José Micaelson Lacerda Morais. Liberdade econômica e crise civilizatória. Joinville, Clube de Autores, 2023. 120 págs (https://amzn.to/3QxG9Jw).
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