Maïdan: protestos na Ucrânia

Kazimir Malevich, Morning in the Village after a Snowstorm, 1912, óleo sobre tela – 80 x 80 cm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOÃO LANARI BO*

Comentário sobre o filme de Sergey Loznitsa

Sergey Loznitsa é dos poucos cineastas contemporâneos que logrou boa circulação no circuito internacional fazendo filmes explicitamente políticos, sem concessões – e atuando numa brecha arriscada: a fronteira entre a poderosa Rússia e seu entorno imediato, Ucrânia sobretudo. Maïdan: protestos na Ucrânia, documentário sobre o movimento civil contra a presidência pró-Moscou de Viktor Yanukovych, na praça central da capital ucraniana, é um exemplo claro: filmado nos três meses que se estendeu o evento, entre dezembro de 2013 e fevereiro de 2014, tornou-se um registro único e visceral.

A reação popular deu-se pela súbita recusa de Viktor Yanukovych em assinar acordo de associação com a União Europeia, após longa negociação. Dada a atualização do conflito que se materializou com a invasão russa da Ucrânia, oito anos depois, em 22 de fevereiro de 2022, o jornal The Guardian resolveu em boa hora disponibilizar o filme na internet, até a guerra terminar, como se pode ler na página do Youtube.

Loznitsa – nascido em 1964 na Belarus e educado na Ucrânia – completou sua formação de diretor de cinema no Instituto Gerasimov de Moscou, a famosa escola de cinema VGIK, depois de graduar-se em engenharia e matemática, atuar como pesquisador de inteligência artificial em Moscou e, nas horas vagas, servir de intérprete para japonês. Entrou na VGIK em 1991 – ano do colapso do comunismo e fragmentação da União Soviética. Seu primeiro filme, Today we are going to build a house, foi realizado em 1996. O cerco nazista a Leningrado foi o foco de Blokada, finalizado em 2005, que deu a Loznitsa o prêmio de melhor documentário russo do ano.

A reputação internacional foi consolidada com os longas de ficção Minha felicidade, de 2010, e Na neblina, de 2012. No passado recente realizou dois poderosos statements políticos: Donbass, de 2018, mergulho anárquico no conflito que estourou no leste da Ucrânia a partir de 2014, logo depois dos protestos de Maidan terminarem; e Funeral de Estado, de 2019, feito com material de arquivo do mastodôntico funeral de Joseph Stálin.

Maïdan: Protestos na Ucrânia, finalizado em março de 2014 a tempo de ser exibido no Festival de Cannes, é um pungente e minimalista testemunho dos acontecimentos que sacudiram o país, um dos registros audiovisuais que não vai ficar datado, como ressaltou crítica à época no Variety. Utilizando quase exclusivamente “master shots” (planos fixos), filmados de pontos estratégicos daquele espaço urbano, em geral de duração longa, o filme absorve uma complexa atmosfera sonora, que passa por discursos, palavras de ordem, canções, conversas, ruídos, bombas de gás pimenta, tiros e gritos (o som, como de hábito, a cargo de Vladimir Golovnitsky).

Assistimos à atualização do virtual coletivo, com imagens de interiores (nas sequências iniciais) e exteriores, sem narração ou entrevistas, apenas a massa sonora e a movimentação da multidão. Voluntários permeiam o espaço para prevenir violência e distribuir alimentos, grupos se organizam para construir barricadas com qualquer objeto que possa obstruir movimentos, de cadeiras a pneus – a canção dos partisans italianos, Bella ciao, foi atualizada para Ciao Vitya Ciao, alusão a Viktor Yanukovych.

A partir de 19 de janeiro de 2014, com a introdução de forte legislação repressora pelo governo acuado, a temperatura começa a esquentar: sobressaem anúncios solicitando a mulheres e crianças para abandonar a linha de frente, e voluntários circulando com máscaras de gás. Um dos raros movimentos de câmera registra o lançamento de gás lacrimogênio próximo ao local onde estava a imprensa – o cinegrafista foi obrigado a proteger-se para não se ferir. Cada detalhe dos planos gerais passou a sugerir um estado de urgência. Chamadas nervosas pelo alto-falante procuram médicos, ouvem-se mais tiros, a neblina baixa sobre a praça – ao final, estima-se em uma centena o número de mortos.

Num tom patriótico-nacionalista, incontornável naquela situação, o patriarca ortodoxo celebra ato em homenagem às vítimas, transformadas em heróis nacionais. Logo em seguida, o Presidente Yanukovych fugiu para a Rússia. Tal como em Blokada, Loznitsa não interpreta: naturalmente, qualquer decisão ligada a edição de som e imagem adota um ponto de vista. Em Maïdan: Protestos na Ucrânia, porém, quem se expressou foi o conjunto de habitantes reunidos naquele espaço. Como salientou o cineasta: “Um filme não é um estudo sociológico. Portanto, prefiro que os espectadores façam o seu próprio julgamento com base no que veem. Como autor, não devo impor opiniões, nem as minhas nem as de outras pessoas”.

O filme recolheu a multiplicidade de subjetividades condensadas em um consenso cívico. Em Maïdan: Protestos na Ucrânia a luta, absolutamente contemporânea à obtenção de sons e imagens, foi pela autodeterminação.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O avesso de Marxcultura los soles 14/09/2024 Por TIAGO MEDEIROS ARAÚJO: Comentário sobre o livro recém-lançado de José Crisóstomo de Souza
  • A condenação perpétua de Silvio AlmeidaLUIZ EDUARDO SOARES II 08/09/2024 Por LUIZ EDUARDO SOARES: Em nome do respeito que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da policialização e da penalização
  • A bofetada do Banco CentralBanco Central prédio sede 10/09/2024 Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO: O Banco Central pretende aumentar a taxa Selic, alegando expectativas de inflação futura
  • O pedido de impeachment de Alexandre Moraesstf supremo brasília niemayer 15/09/2024 Por MARCELO AITH: Os processos de ruptura democrática se iniciam, invariavelmente, com o enfraquecimento do Poder Judiciário, como ocorreu na Hungria com o primeiro-ministro ditador Viktor Orbán
  • O caso Silvio Almeida — mais perguntas que respostasme too 10/09/2024 Por LEONARDO SACRAMENTO: Retirar o ministro a menos de 24 horas das denúncias anônimas da Ong Me Too, da forma como foi envolvida em licitação barrada pelo próprio ministro, é o puro suco do racismo
  • O triste fim de Silvio Almeidasilvio almeida 08/09/2024 Por DANIEL AFONSO DA SILVA: O ocaso de Silvio Almeida é muito mais grave que parece. Ele ultrapassa em muito os eventuais deslizes deontológicos e morais de Silvio Almeida e se espraia por parcelas inteiras da sociedade brasileira
  • Brasil paraleloLUIS FELIPE MIGUEL 2024 16/09/2024 Por LUIS FELIPE MIGUEL: A Brasil Paralelo é a maior impulsionadora de conteúdo político nas plataformas sociodigitais do Brasil. Dinheiro não falta, no seu trabalho de doutrinação do público
  • Contradição educacionallousa 4 15/09/2024 Por FERNANDO LIONEL QUIROGA: Os adjetivos do professor e a máquina de moer o passado
  • Pablo Marçal entre Goiânia e São Paulogo sp 13/09/2024 Por TADEU ALENCAR ARRAIS: É um equívoco imaginar que o sucesso de Marçal se localize, apenas, no domínio das dinâmicas das redes sociais
  • As joias da arquitetura brasileirarecaman 07/09/2024 Por LUIZ RECAMÁN: Artigo postado em homenagem ao arquiteto e professor da USP, recém-falecido

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES