Placebo jurídico

Imagem: Anderson Antonangelo
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOÃO HÉLIO FERREIRA PES*

Em dois anos Bolsonaro editou vinte medidas provisórias de efeito placebo

Normas jurídicas introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro com a intenção de apenas agradar setores da sociedade ou parcelas da população, sem a mínima preocupação com a sua eficácia, não são novidade. No entanto, nos últimos dois anos essa prática tem sido intensificada, pelo Presidente da República, com a edição de medidas provisórias com esse efeito placebo. Das 156 Medidas Provisórias adotadas pelo Governo Bolsonaro nos dois primeiros anos de governo, 20 Medidas Provisórias, sendo 10 em 2019 e 10 em 2020, foram publicadas e vigoraram com força de lei, mas preenchem requisitos do que pode ser denominado de norma de efeito placebo ou placebo jurídico.

Placebo jurídico: breve definição

O termo placebo é originário do verbo latim “placere” que significa agradar, aceitar ou aprazer. No latim “placebo” está conjugado na primeira pessoa do singular do futuro, podendo ser traduzido para o português para “eu agradarei”. É exatamente nesse sentido de agradar que a expressão ‘placebo jurídico’ é, no presente trabalho, utilizada. Portanto, norma placebo é aquela norma que é elaborada com o objetivo de agradar, sem a preocupação com os efeitos concretos, ainda, sem considerar a efetividade dos comandos normativos, ou seja, sem considerar a eficácia social da norma.

Neste texto o termo “efetividade” é adotado com o significado de “alcance dos objetivos da norma”, sendo impossível verificar tal alcance se não incidir em aspectos próprios da sociologia jurídica. Ainda, adota-se o termo efetividade como sinônimo da expressão “eficácia social”, diferenciando-se, assim, da expressão “eficácia jurídica” que, por sua vez, significa aplicabilidade das normas no âmbito jurídico sem a preocupação com a sua efetividade.

Ademais, o termo placebo é utilizado de forma considerável nas pesquisas científicas para indicar substância similar à substância medicamentosa, mas que não gera qualquer efeito concreto relacionado a tal substância, podendo gerar apenas efeitos psicológicos. No Dicionário Houaiss da língua portuguesa placebo é definido como “preparação neutra quanto a efeitos farmacológicos, ministrada em substituição de um medicamento, com a finalidade de suscitar ou controlar as reações, geralmente de natureza psicológica, que acompanham tal procedimento terapêutico”[1].

Na área da Ciências da Saúde a definição de placebo está diretamente relacionada à substância sem efeito. Nesse sentido, “a palavra placebo é normalmente usada para designar um medicamento que não exerce nenhum efeito físico sobre o paciente, que não traz nenhum benefício físico a ele, mas que deve ter um efeito psicológico definido e importante”[2].

Assim, a expressão “efeito placebo” significa o fenômeno resultante da utilização de substâncias que não tenham as propriedades necessárias para provocar qualquer efeito físico concreto sobre o paciente. Daí que:

O efeito placebo age fisiologicamente no indivíduo, tanto psicológica quanto neurologicamente. Do ponto de vista psicológico, a expectativa, condicionamento, aprendizado, memorização, motivação, foco somático e a redução da ansiedade são mecanismos que estão diretamente relacionados com o efeito placebo. Sendo a expectativa e o condicionamento os mais conhecidos. Estudos mostram que a presença de um protocolo de condicionamento aumenta as expectativas do paciente.[3]

Entre as espécies de placebo as mais conhecidas são: o placebo puro, que é uma substância inerte tal como lactose para as pessoas com tolerância a essa substância, ou comprimidos de açúcar ou de amido, água ou solução salina isotônica que fisiológica, biológica e organicamente são inativas; outro é o placebo impuro, adulterado que contém algum ingrediente ativo, mas que não exerce nenhum efeito sobre a doença do paciente. O placebo impuro deve conter uma substância certamente ativa, mas é dado em circunstâncias inapropriadas ou em dosagens inadequadas.[4]

Portanto, a definição de placebo jurídico guarda relação direta com o conceito de placebo utilizado na área da Ciência da Saúde, principalmente com a definição de placebo impuro, como pode ser claramente demonstrado.

Antes de analisar elementos de uma definição de placebo jurídico é relevante observar alguns traços conjunturais que sinalizam a utilização mais intensa de normas placebos, notadamente, no período mais recente em que prepondera a propagação de notícias falsas, fake news e mentiras, enfim, naquilo que vem sendo de denominado de pós-verdade. Desde 2016 o Dicionário Oxford definiu “pós-verdade” com o seguinte significado: “um adjetivo relacionado ou evidenciado por circunstâncias em que fatos objetivos têm menos poder de influência na formação da opinião pública do que apelos por emoções ou crenças pessoais”[5].

Portanto, facilmente é possível constatar que as novas formas de comunicação, notadamente por meio da internet, potencializam a falsificação da política através da distorção de fatos e de informações. Assim, não há o que estranhar quando se depara com o fenômeno que está em curso no ordenamento jurídico brasileiro, que é o aumento da utilização de normas de efeito placebo. Nesse contexto, a mentira é o elemento central, eis que o placebo jurídico tem como objetivo apenas agradar os destinatários da norma ou alguns setores sociais específicos, sem a garantia da eficácia social, ou seja, é irrelevante a realização efetiva dos comandos normativos.

Derradeiramente, resta traçar algumas características de um possível conceito de placebo jurídico.  Portanto, placebo jurídico ou legislação placebo é a norma elaborada com o objetivo de agradar a totalidade dos destinatários das normas jurídicas ou de alguns setores, tais como um determinado setor econômico ou social, sem a preocupação com os efeitos concretos, sem considerar a efetividade dos comandos normativos, ou seja, sem considerar a eficácia social. Quanto à eficácia jurídica, a norma placebo tem a sua validade assegurada enquanto não for desvendado o teor placebo, ou seja, enquanto persistir o efeito placebo a norma será tratada como válida. Já as normas-placebo perdem a sua validade, enquanto normas jurídicas, assim que finalizado o efeito placebo, com a revogação da norma ou com a declaração de inconstitucionalidade ou, ainda, no caso de medida provisória com o fim de sua vigência.

Medidas provisórias

As medidas provisórias foram incluídas, como espécie normativa, no texto constitucional de 1988 a partir da experiência constitucional italiana. A Constituição da República Italiana de 1947 prevê, no artigo 77,a possibilidade de o governo adotar medidas provisórias com força de lei quando se tratar de casos extraordinários e urgentes. O texto que regula a adoção de medidas provisórias na Itália está assim redigido:

Artigo 77: O Governo não pode, sem delegação das Câmaras, expedir decretos com força de lei ordinária.

Quando, em casos extraordinários de necessidade e urgência, o Governo adopte, sob a sua responsabilidade, medidas provisórias com força de lei, deve no mesmo dia apresentá-las para conversão às Câmaras que, ainda que dissolvidas, são expressamente convocadas e se reúnem em cinco dias.

Os decretos perdem a eficácia desde o início se não forem convertidos em lei dentro de sessenta dias de sua publicação. No entanto, as Câmaras podem regular por lei as relações jurídicas que surgem com base nos decretos não convertidos.[6]

É interessante verificar que o texto italiano tem significativa semelhança com o texto original definido pelo constituinte brasileiro, veja in verbis como estava redigido o texto na Constituição de 1988:

Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias.

Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes.

No dia 11 de setembro de 2001, coincidentemente data do ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center da cidade de Nova Iorque, ocorreu a queda do modelo simplificado e fracassado da espécie normativa, denominada medida provisória, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 32 que efetuou alterações profundas para transformar a medida provisória em espécie normativa complexa e eficaz, acima de tudo compatível com o nosso sistema jurídico. Essa Emenda Constitucional de 11 de setembro de 2001 introduziu uma série regras procedimentais e de conteúdo com o objetivo de diminuir a excessiva discricionariedade do Presidente da República na edição de medidas provisórias com a limitação de matérias que podem ser consideradas relevantes e urgentes e, principalmente, para dar fim às sucessivas e vergonhosas reedições de medidas provisórias.

Assim, as medidas provisórias somente podem ser editadas pelo Presidente da República mediante justificativa de tratar-se de conteúdo relevante e urgente, não vedado pelas regras do novo artigo 62 da Constituição de 1988. Após a publicação elas passam a ter força de lei, devendo ocorrer a conversão para lei em até, no máximo, 120 dias com a aprovação pelas duas casas do Congresso Nacional. O fim da vigência da medida provisória ocorrerá com a rejeição que poderá ser expressa, quando da não aprovação em votação realizada pelo parlamento ou com a rejeição tácita que se dá pelo decurso do prazo máximo de vigência sem a manifestação de aprovação pelo Congresso Nacional.

Em pouco mais de 19 anos, a contar do início da vigência da nova configuração implementada pela Emenda Constitucional nº 32 até o final de dezembro de 2020, foram editadas1.025 Medidas Provisórias. Isso significa uma média aproximada de 53 medidas provisórias por ano. No entanto, somente no ano de 2020 foram adotadas pelo Poder Executivo 108 medidas provisórias, sendo que 43 são referentes à abertura de crédito, prática tradicionalmente realizada pelos governos com a anuência do Congresso Nacional que após ter o crédito executado não vota a medida provisória porque a sua finalidade já foi cumprida. A quantidade de medidas provisórias com essa característica orçamentária pode ser verificada na última coluna da Tabela 1, que foi elaborada com os dados dos últimos seis anos disponíveis no Portal da Legislação, da página da Presidência da República.[7]

*31 em tramitação até dezembro de 2020. Fonte: Autor a partir dos dados do Portal da Legislação/Presidência da República

Ainda, na tabela 1 é possível observar que 31 das 108 medidas provisórias de 2020 ainda estavam em tramitação no final de dezembro de 2020 e que 41 não foram convertidas e 36 foram convertidas em lei, o que resulta em 47% de aprovação sobre o total de 77 referente as 108 menos 31 em tramitação. No ano de 2019 o percentual de conversão não é diferente, apenas 22 foram convertidas, ou seja, apenas 46%. Nos dois primeiros anos do Governo Bolsonaro o percentual de conversão em lei é o mais baixo dos últimos seis anos pesquisados, conforme dados apresentados na tabela 1. Esses percentuais de conversão são bem diferentes dos verificados nos governos anteriores, basta ver que durante o Governo Dilma, em 2015 o percentual de conversão foi de 79%; em 2016, Governo Dilma/Temer, 70%; em 2017 e 2018, durante o Governo Temer, os percentuais de conversão das medidas provisórias em lei foram respectivamente 51% e 55%. Portanto, verifica-se no Gráfico 1, que nos últimos seis anos o menor percentual de conversão é o verificado durante o Governo Bolsonaro, enquanto no mesmo período de dois anos de governo o número de medidas provisórias adotadas é o maior na comparação com os demais governos. No Governo Bolsonaro, 2019 e 2020, foram editadas 156 medidas provisórias; no governo Temer, 2017 e 2018, foram 104; no Governo Dilma/Temer foram 99.

Gráfico 1

Fonte: Autor a partir dos dados do Portal da Legislação/Presidência da República

Portanto, os dados dos últimos seis anos demonstram que nos dois anos do Governo Bolsonaro o número de medidas provisórias editadas supera a média dos governantes anteriores e o percentual de medidas provisórias convertidas em lei é bem inferior aos verificados durante os governos Dilma e Temer. Esses dados indicam que ao mesmo tempo em que mais medidas provisórias são editadas menos medidas provisórias são aprovadas e convertidas em lei, numa clara sinalização de que essa proporcionalidade inversa é a demonstração de que foram adotadas medidas provisórias de efeito placebo.

Medidas provisórias de efeito placebo

A primeira medida provisória de efeito placebo editada pelo Presidente da República em 2019 foi a Medida Provisória nº 873 de 1º de março de 2019 com a finalidade de dificultar aos sindicatos o recebimento de contribuição facultativa ou mensalidade sindical. Essa norma vigorou até o dia 28 de junho de 2019, conforme manifestação do Presidente do Congresso com o Ato Declaratório nº 43/2019 de encerramento da vigência pelo transcurso do prazo constitucional sem a conversão em lei. O efeito placebo é facilmente identificável pela flagrante inconstitucionalidade formal ao ser utilizada a espécie normativa medida provisória, sem observar os requisitos de urgência e relevância, para alterar regras vigentes desde a implementação da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, quanto ao desconto na folha de pagamento dos trabalhadores das contribuições sindicais. Ademais, é nítida a manifestação dos propósitos dessa norma de agradar os setores sociais mais conservadores que identificam os sindicatos de trabalhadores como organizações que se opõem às medidas neoliberais conservadoras defendidas pela extrema direita brasileira.

Dentre as 20 medidas provisórias de efeito placebo editadas nos anos 2019 e 2020, conforme lista da Tabela 2, a única que foi convertida em lei até 31 de dezembro de 2020 foi a Medida Provisória nº 884, de 14 de junho de 2019, convertida na Lei nº 13.887/2019. A outra conversão em lei ocorreu em 2021 com a Medida Provisória nº 996, de 25 de agosto de 2020, que foi convertida na Lei nº 14.118/2021. A Medida Provisória nº 884/2019 por ter sido convertida em lei mantém em vigor placebo jurídico que somente será desvendado no dia em que for declarada a sua inconstitucionalidade ou revogada a regra que torna facultativa a inscrição antes obrigatória no Cadastro Ambiental Rural – CAR. É preciso ressaltar que o Código Florestal, Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, criou um dos mais importantes instrumentos de proteção ao meio ambiente que  é o Cadastro Ambiental Rural, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento, fixando um prazo determinado para que todos os imóveis rurais fossem inscritos. No entanto, a Medida Provisória nº 884/2019 alterou essa regra ao dispor que o prazo da obrigatoriedade de inscrição dos imóveis rurais passa a ser por tempo indeterminado, ou seja, deixa de ser obrigatório. Esse placebo jurídico de iniciativa do Poder Executivo ao ser convertido em Lei teve a anuência do Poder Legislativo a partir da significativa representação da bancada ruralista, com a clara intenção de atender os interesses do setor econômico do agronegócio sem a mínima preocupação com a efetividade da norma alterada.

Fonte: Autor a partir dos dados do Portal da Legislação/Presidência da República

Em várias medidas provisórias o efeito placebo é percebido com a postura governamental de descaso com a norma de sua própria iniciativa ao não fazer qualquer esforço para pautar a discussão e votação no Congresso Nacional do texto a ser convertido em lei. Quando o governo tem interesse na aprovação de uma medida provisória os líderes do governo no parlamento, principalmente o líder do governo na Câmara dos Deputados, casa em que inicia a tramitação das medidas provisórias, atuam no sentido de garantir a aprovação da matéria. No entanto, quando a medida provisória é placebo jurídico, ou seja, foi elaborada apenas para atender setores sociais específicos ou somente para agradar os destinatários da norma, a conversão em lei deixa de ser prioridade. Assim, o efeito placebo fica transparente com a norma exercendo efeito simbólico por um período sem a preocupação com a sua efetividade no tempo de forma indeterminada.

Dentre as medidas provisórias que o governo fez descaso nos anos de 2019 e 2020, destacam-se a Medida Provisória nº 895, de 06 de setembro de 2019, que instituiu o benefício do pagamento de meia-entrada para estudantes, idosos, pessoas com deficiência e jovens de quinze a vinte e nove anos comprovadamente carentes em espetáculos artístico-culturais e esportivos. Também a Medida Provisória nº 902, de 5 de novembro de 2019, que autoriza o Poder Executivo a transformar a autarquia Casa da Moeda em empresa pública é placebo jurídico na medida em que acena para os agentes do mercado a possibilidade de uma futura privatização da Casa da Moeda e de outras estatais. No mesmo sentido, é a Medida Provisória nº 958, de 24 de abril de 2020, que estabelece normas para a facilitação do acesso ao crédito e mitigação dos impactos econômicos decorrentes da pandemia com o objetivo de flexibilizar exigências impostas à sua
concessão, com a dispensa do registro de instrumentos contratuais e dispensa da apresentação de certidões de regularidade. Outra que se assemelha a essa última é a Medida Provisória nº 992, de 16 de julho de 2020, que facilita o acesso ao crédito a microempresas e a empresas de pequeno e médio porte. Ainda é possível citar a Medida Provisória nº 922, de 3 de março de 2020, que autoriza a contratação por tempo determinado de servidores públicos aposentados, editada para dar a entender que o governo estava preocupado com a situação enfrentada pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS-, que tem um grande volume de requerimentos de benefícios previdenciários e assistenciais represados, aguardando análise para resposta aos interessados. A demonstração indiscutível de que o governo não fez qualquer esforço para aprovar a Medida Provisória nº 922 é o fato de que a Medida Provisória nº 923, publicada no Diário Oficial  um dia após a publicação da anterior, foi convertida na Lei nº 14.027, de 20 de julho de 2020, para estabelecer regras acerca da distribuição gratuita de prêmios mediante sorteio, vale-brinde, concurso ou operação assemelhada, realizada por concessionárias ou permissionárias de serviço de radiodifusão ou por organizações da sociedade civil  por meio de plataformas digitais, visando apoiar o custeio do investimento em tecnologia de radiodifusão, a alavancar a audiência das referidas concessionárias e a fomentar o interesse e o aumento de telespectadores.

Em 2019 podem ser destacadas algumas medidas provisórias com efeito placebo pela repercussão que tiveram nos meios de comunicação. Das 48 medidas provisórias editadas nesse ano, 26 não foram convertidas e dessas 9 podem ser classificadas como placebo jurídico, sendo que apenas uma foi convertida em lei, conforme exposto na Tabela 2.A Medida Provisória nº 904, de 11 de novembro de 2019, que Dispõe sobre a Extinção do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres – DPVAT, além de grande repercussão foi medida que acarretou imensa confusão, pois durante o período em que vigorou milhares de pessoas não efetuaram o pagamento do seguro, o que gerou alguns transtornos posteriormente. No dia 20 de dezembro de 2019 o Supremo Tribunal Federal, por maioria, deferiu medida cautelar, na ADI 6262[8], para suspender os efeitos da Medida Provisória 904, por sua inconstitucionalidade formal ao ser utilizada para legislar matéria sob reserva de lei complementar. A Medida Provisória nº 904 teve seu prazo de vigência encerrado no dia 20 de abril de 2020 por não ter sido apreciado pelo Congresso Nacional. Nesse mesmo ano, outra medida adotada pelo governo apenas para causar impacto foi a Medida Provisória nº 905, de 11 de novembro de 2019, que institui o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo e altera a legislação trabalhista. Iniciativa do Ministério da Economia objetivava aprofundar a flexibilização dos direitos trabalhistas, já intensamente atacados pela reforma trabalhista aprovada durante a gestão Michel Temer, mas com a indicação, conforme exposição de motivos assinada pelo Ministro Paulo Guedes, de que ocorreria a criação de oportunidades de trabalho e de negócios, que geraria renda e promoveria a melhoria da qualidade de vida da população. Essa medida provisória além de incluir diversos conteúdos que afrontavam a Constituição continha teor simbólico que sinalizava a ilusão de resolver ou amenizar o grave problema do desemprego no país. Portanto, o efeito placebo, com alto grau de nocividade, somente foi desvendado com o fim da sua vigência, que ocorreu por revogação pela Medida Provisória nº 955, de 20 de abril de 2020.

Já no ano de 2020, das 10 medidas provisórias listadas na Tabela 2, destacam-se como placebo jurídico, de ampla repercussão, o conteúdo de algumas medidas provisórias que a grande mídia destinou significativos espaços para a sua divulgação. A Medida Provisória nº 966, de 13 de maio de 2020, que dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da covid-19, foi questionada não apenas pela tentativa de isentar agentes públicos por erros ou omissões na tomada de decisões para o combate à pandemia, mas pela tentativa de definir de forma distorcida o que seria erro grosseiro. Essa medida provisória teve como principal teor placebo a autorização para que agentes públicos pudessem atuar contra as recomendações da ciência no combate à pandemia do coronavírus objetivando legitimar a militância negacionista que utiliza as redes sociais para difundir seus ideais. Esse teor placebo foi desvendado a partir de decisão do Supremo Tribunal Federal que ao analisar as sete ações ajuizadas[9] restringiu o alcance da medida provisória estabelecendo que o agente público deve observar o que determinam as organizações e entidades reconhecidas para tomar medidas de combate à pandemia e que “erro grosseiro”, como consta no texto da MP, é não observar critérios científicos e de organizações reconhecidas nacional e internacionalmente, especialmente a Organização Mundial de Saúde – OMS.

Outra de grande impacto em 2020 foi a Medida Provisória nº 996, de 25 de agosto de 2020, que instituiu o Programa Casa Verde e Amarela, convertida na Lei nº 14.118, de 12 de janeiro de 2021.A exposição de motivos, encaminhada para o legislativo, justifica a urgência da adoção de medida provisória com força de lei para aprimorar os programas habitacionais já existentes, principalmente o denominado “Programa Minha Casa, Minha Vida”, regulado pela Lei nº 11.977. de 7 de julho de 2009. Na mesma exposição de motivos da criação do Programa Casa Verde e Amarela, foram utilizados argumentos que serviriam para justificar a implementação de um programa habitacional inédito, como a impulsão ao setor econômico da Construção civil e fomento ao emprego e a geração de rendas, no entanto, por ser um programa habitacional que apenas aprimora o anterior, efetuando basicamente a troca de nome, é inacreditável que o texto da justificativa contenha trechos como o seguinte:

Os investimentos no setor habitacional impulsionam o setor da construção civil e fomentam a criação de novos postos de trabalho formais e a geração de renda. Além disso, têm potencial redutor das taxas de incidência de doenças relacionadas à inadequação habitacional, entre elas a tuberculose, de matriz semelhante à COVID-19, pandemia que no momento assola o Brasil e o mundo. Esses fatores combinados bem justificam a instituição do arcabouço legal, ora proposto, em caráter emergencial.[10]

Ao analisar o conteúdo da Medida Provisória nº 996, agora Lei nº 14.118/2021, verifica-se no artigo 25 que as operações com benefício de natureza habitacional geridas pelo governo federal integrarão o Programa Casa Verde e Amarela desde o dia 25 de agosto de 2020, data do início da vigência da medida provisória. Portanto, o placebo jurídico presente na norma que criou o Programa Casa Verde e Amarela está na utilização de uma denominação diferente do programa habitacional já existente para dar a entender que há uma nova política pública de iniciativa do Governo Federal para facilitar o acesso da população à moradia digna.

É preciso ressaltar, ainda, que foram editadas pelo Governo Bolsonaro medidas provisórias com teor autoritário e ao mesmo tempo sinalizadoras de rejeição à ordem existente. Trata-se, dentre algumas, da Medida Provisória nº 979, de 09 de junho de 2020, que dispõe sobre a designação de dirigentes pro tempore para as instituições federais de ensino durante o período da pandemia da covid-19. O efeito placebo está na intenção do governo, exposta na justificativa, assinada pelo ex-ministro da Educação Abraham Weintraub e enviada para o Congresso Nacional, de efetuar designação, em caráter excepcional, de Reitor e Vice-Reitor pro tempore, para as Universidades Federais, e Reitor para os Institutos Federais e para o Colégio Pedro II, durante o período de  estado de calamidade pública, decorrente da pandemia de Covid-19. Tal medida, fundamentada na suspensão das aulas e consequente prejuízo ao processo de eleição, desconsidera a autonomia universitária e o caráter democrático dos processos de eleição no ensino federal. Mas o principal objetivo é apontar para o rompimento com a ordem estabelecida, não respeitar as regras institucionais de eleição democrática para a escolha dos dirigentes das instituições de educação federal e, também, de demonstração de poder ao escolher para reitores pessoas comprometidas com o autoritarismo e com visão de administração pública centralizada condizente com o modelo implementado na Alemanha e na Itália, no período entre guerras. Nesse aspecto, convém relembrar as lições de Ugo Palheta[11] ao afirmar que a dinâmica fascista, no estágio inicial, busca dar uma aparência subversiva e se apresenta como alternativa a ordem existente, numa demonstração de ser uma força capaz de desafiar o “sistema”. É exatamente com esse desiderato que a Medida Provisória 979 foi editada, pois no meio de uma pandemia adota-se norma desafiadora que subverte a ordem institucional estabelecida. Ela foi publicada no dia 10 de junho de 2020 e por ser flagrantemente inconstitucional, tanto no aspecto formal quanto no aspecto material, ela foi devolvida pelo Presidente do Congresso Nacional e gerou a edição de medida provisória revogadora, a Medida Provisória nº 981, de 12 de junho de 2020.

Conclusão

Além de agradar alguns setores, a finalidade do placebo jurídico é ludibriar a totalidade dos destinatários da norma, dando entender a todos que há uma norma válida que pode ser eficaz naquilo que se propõe. Por vezes, a finalidade da norma-placebo não é aquela que está expressa na justificativa para a sua adoção e sim implícita, de forma velada, visando atender outros interesses não republicanos, interesses que não são expressos no texto legislativo. Esses interesses espúrios são protagonizados pelos mesmos titulares dos interesses presentes na falsificação da política, na distorção dos fatos e na manipulação de informações.

Portanto, nos últimos dois anos a intensificação do uso de medidas provisórias de efeito placebo pelo Presidente da República não destoa da forma como está atuando o Governo Federal, com a adoção de políticas econômicas que visam a atender os interesses das elites brasileiras e estrangeiras, com a priorização da pauta dos costumes para atender interesses dos setores conservadores da sociedade, com a disseminação do discurso de ódio e com a negação da ciência, tudo com o intento de confrontar as regras estabelecidas visando criar as condições para outro regime que não o democrático.

*João Hélio Ferreira Pes é professor de direito da Universidade Franciscana-UFN (Santa Maria-RS).

Notas


[1]HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009, p. 1505.

[2]COLEMAN, V. On placebos. Nurs. Mirror, Sussex, 139(13):79, Sept. 1974, p. 79.

[3] ALENCAR, Camila Oliveira de; CORTELLI, José Roberto. Considerações atuais sobre o uso  doplaceto: uma revisão de literatura. Revista SOBRAPE, September 2014 – volume 24. Disponível em <http://www.revistasobrape.com.br/arquivos/2014/setembro/REVPERIO_SETEMBRO_2014_PUBL_SITE_PAG-31_A_34.pdf> Acesso em 28 dez. 2019.

[4] SHAPIRO, A. K. The placebo effect in thehistoryof medical tretment: implications for psychiatry. Amer. J. Psychiatry, Washington, 1 16(4):298-304 ,Oct. 1959, p. 298-304.

[5] GENESINI, Silvio. A pós-verdade é uma notícia falsa. Revista USP, São Paulo, n. 116, p. 45-58, janeiro/fevereiro/março 2018, p. 47.

[6]Costituzione dela Repubblica Italiana. Articolo 77: Il Governo non può, senza delegazione dele Camere , emanare de creti che abbiano valore di legge ordinaria. Quando, in casi straordinari di necessità e di urgenza, il Governo adotta, sotto la sua responsabilità, provvedimenti provvisori com forza di legge, deve il giorno stesso presentarli per la conversione alle Camere che, anche se sciolte, sono appositamente convocate e si riuniscono entro cinque giorni. I decreti perdono eficácia sin dall’inizio, se non sono convertiti in legge entro sessenta giorni dalla loro pubblicazione. Le Camere possono tutta via regolare com legge i rapporti giuridici sorti sulla base dei decreti non convertiti.

[7] BRASIL. Presidência da República. Portal da Legislação. Disponível em http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-1/medidas-provisorias/2019-a-2022. Acesso em 31 dez. 2020.

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 6262. Disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5817441. Acesso em 11 jan. 2021.

[9] As Ações Diretas de Inconstitucionalidade foram ajuizadas pela Rede Sustentabilidade (ADI 6421), pelo Cidadania (ADI 6422), pelo Partido Socialismo e Liberdade (ADI 6424), pelo Partido Comunista do Brasil (ADI 6425), pela Associação Brasileira de Imprensa (ADI 6427), pelo Partido Democrático Trabalhista (ADI 6428) e pelo Partido Verde (6431).

[10] BRASIL. Medida Provisória nº 996, de 25 de agosto de 2020. Institui o Programa Casa Verde e Amarela. Exposição de Motivos. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv996.htm. Acesso em 3 jan. 2021.

[11] PALHETA, Ugo. Fascisme. Fascisation. Antifascisme. Contretemps: Revue de critique commniste. ISSN 2496-5146, Paris, set. 2020. Disponível em: https://www.contretemps.eu/fascisme-fascisation-antifascisme/. Acesso em 22 nov. 2020.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Bernardo Ricupero Marcelo Módolo João Carlos Loebens Remy José Fontana Ladislau Dowbor Otaviano Helene Marcus Ianoni Benicio Viero Schmidt Sergio Amadeu da Silveira Leonardo Boff Luiz Werneck Vianna Bento Prado Jr. Luiz Carlos Bresser-Pereira Tarso Genro Salem Nasser Alexandre de Lima Castro Tranjan Ricardo Antunes Luiz Marques Ari Marcelo Solon Fernando Nogueira da Costa Gilberto Lopes João Feres Júnior João Sette Whitaker Ferreira Paulo Capel Narvai Dênis de Moraes Celso Favaretto Igor Felippe Santos Jean Pierre Chauvin Marjorie C. Marona Michael Löwy Alysson Leandro Mascaro Luís Fernando Vitagliano José Dirceu Michael Roberts Boaventura de Sousa Santos Luiz Eduardo Soares Osvaldo Coggiola Rodrigo de Faria Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Claudio Katz Manuel Domingos Neto Gerson Almeida Eleutério F. S. Prado Jean Marc Von Der Weid Priscila Figueiredo Marcos Aurélio da Silva Bruno Fabricio Alcebino da Silva Flávio Aguiar Antônio Sales Rios Neto Paulo Sérgio Pinheiro Marcos Silva Carlos Tautz Eliziário Andrade Juarez Guimarães Eugênio Trivinho Paulo Nogueira Batista Jr Annateresa Fabris Samuel Kilsztajn Luis Felipe Miguel Celso Frederico Berenice Bento Chico Whitaker Jorge Branco Érico Andrade Milton Pinheiro João Carlos Salles Andrew Korybko Marilia Pacheco Fiorillo Luciano Nascimento Henri Acselrad Bruno Machado Maria Rita Kehl Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Bernardo Pericás Afrânio Catani Mariarosaria Fabris Airton Paschoa Paulo Martins Francisco de Oliveira Barros Júnior Eugênio Bucci André Singer Armando Boito Luiz Renato Martins Elias Jabbour Michel Goulart da Silva Lucas Fiaschetti Estevez Ricardo Abramovay José Raimundo Trindade Chico Alencar Eduardo Borges Antonio Martins Vladimir Safatle Ricardo Fabbrini Mário Maestri Tales Ab'Sáber João Lanari Bo André Márcio Neves Soares Julian Rodrigues José Geraldo Couto Rubens Pinto Lyra Slavoj Žižek José Luís Fiori Thomas Piketty Caio Bugiato Flávio R. Kothe Yuri Martins-Fontes Matheus Silveira de Souza Denilson Cordeiro Kátia Gerab Baggio Rafael R. Ioris Francisco Pereira de Farias Leonardo Sacramento José Machado Moita Neto Plínio de Arruda Sampaio Jr. Valerio Arcary Paulo Fernandes Silveira Ronald Rocha Ricardo Musse Andrés del Río Marcelo Guimarães Lima Marilena Chauí Fernão Pessoa Ramos Tadeu Valadares Dennis Oliveira Lincoln Secco Ronaldo Tadeu de Souza Henry Burnett Jorge Luiz Souto Maior Atilio A. Boron Leonardo Avritzer Leda Maria Paulani Valerio Arcary Antonino Infranca Francisco Fernandes Ladeira Alexandre de Freitas Barbosa João Paulo Ayub Fonseca Renato Dagnino Lorenzo Vitral Ronald León Núñez Gabriel Cohn Fábio Konder Comparato Walnice Nogueira Galvão Liszt Vieira Carla Teixeira Vanderlei Tenório Eleonora Albano Anselm Jappe Manchetômetro João Adolfo Hansen Alexandre Aragão de Albuquerque Sandra Bitencourt Heraldo Campos José Costa Júnior Vinício Carrilho Martinez Gilberto Maringoni José Micaelson Lacerda Morais Daniel Costa Daniel Brazil Luiz Roberto Alves Daniel Afonso da Silva

NOVAS PUBLICAÇÕES