Formas tecnológicas de dominação social

Imagem: Paweł L.
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Por WÉCIO PINHEIRO ARAÚJO*

O atraso da esquerda e o triunfo da extrema direita na práxis política da era digital

Ideologia e esfera pública na experiência social digitalizada

Os sujeitos políticos reacionários nas principais democracias ocidentais deste século XXI se mostram muito bem unidos e articulados na esfera pública por meio de processos ideológicos capazes de produzir uma práxis política munida de práticas discursivas atualizadas com a digitalização algorítmica da experiência social.

Não faltam exemplos de lideranças na esteira de nomes tais como Javier Milei na Argentina e Nayib Bukele em El Salvador; Donald Trump nos EUA, que avança na direção de retornar à Casa Branca em 2024; Recep Tayyip Erdogán na Turquia e Viktor Orbán na Hungria (versão bem sucedida daquilo que Jair Bolsonaro tentou ser e fazer no Brasil); Benjamin Netanyahu em Israel, empreendendo o seu projeto de “nazificação” de Israel, que por meio da implantação de um Estado teocrático sionista fundamenta o genocídio palestino.

Também não podemos esquecer de Narendra Modi e sua política de extrema direita que mistura religião e política (hinduísmo e hipernacionalismo) na Índia, e claro, Vladimir Putin na Rússia com seu projeto político de eternidade no poder inspirado no filósofo russo neofascista Ivan Illyin – como muito bem analisa Timothy Snyder em seu livro Na contramão da liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas (Companhia das Letras).

São líderes que não apenas trabalham para ganhar eleições, mas investem na construção do neofascismo como cultura e ethos político na sociedade civil, da família até a empresa, envolvendo desde a educação (na escola) até a religião (na igreja). Assim, a extrema direita produz uma práxis política reacionária muito bem alinhada com a dupla inseparável em tempos de digitalização algorítmica da experiência social sob a lógica do rentismo: neofascismo e neoliberalismo.

A extrema direita vem demonstrando inquestionável habilidade com a forma renovada da ideologia na era digital. A essência dessa virada de chave está no fato de que a ideologia funciona não mais como um discurso racional lastreado nos fatos elaborados em princípios argumentativos, como vimos sobretudo na primeira metade do século XX com forte protagonismo da esquerda. Na era digital, a força da ideologia está na sua atualização para uma linguagem imagética que forma e deforma a experiência da vida em sociedade como um ininterrupto espetáculo, que se torna terreno fértil para a ascensão neofascista.

Este fenômeno diz respeito a como nesse início do século XXI, as formas tecnológicas de dominação social avançaram na sua capacidade de modelar práticas discursivas na esfera pública, de maneira que as ideias que adquirem força política aparecem como uma enorme articulação de imagens regidas pela lógica do espetáculo alinhada com a racionalidade neoliberal.

Sob a tutela do neofascismo do Vale do Silício, que tem seu principal representante em Elon Musk, entram em cena as táticas de disparos ininterruptos de estímulos imagéticos geridos por algoritmos, que (des)educam politicamente e conectam os indivíduos ideologicamente, porém não a partir de elaborados discursos políticos e filosóficos, mas a partir de suas convicções, paixões e afetos mais profundos, estabelecidos acima da própria realidade factual. A ideologia então age como um eficiente modo de constituição dos indivíduos em sujeitos políticos na experiência social digitalizada, de maneira que produz e reproduz modos de ser na esfera pública, constituindo assim uma verdadeira e poderosa práxis política.

Em tempos de capitalismo da vigilância, as artimanhas ideológicas devidamente atualizadas como uma dimensão central da práxis política na era digital, se tornaram essenciais na produção de práticas discursivas favoráveis à dominação social capitalista de inclinação autoritária e reacionária, envolvendo desde as condições objetivas situadas nos fatos até a dimensão mais estratégica estabelecida sob a digitalização algorítmica da experiência social: a questão de como essas condições objetivas que constituem a experiência social são vivenciadas subjetivamente pelos indivíduos enquanto sujeitos políticos na esfera pública.

Ideologia e fake news em tempos de práxis política digitalizada

A extrema direita vem demonstrando maior habilidade tática e estratégica com a questão da ideologia em tempos de digitalização algorítmica. Problema que sugiro analisar a partir de três aspectos que considero fundamentais e inseparáveis entre si.

(i) O peso das fake news, que devem ser compreendidas não simplesmente como a mentira massificada, pois é bem mais complexo: na esfera pública determinada pela experiência social digitalizada, as fake news agem como um astuto e eficaz mecanismo de produção de práticas discursivas detentoras dos seus próprios rituais de verdade, alçados ideologicamente acima da racionalidade científica, da ética dos direitos humanos e da lógica democrática do Estado de direito.

Neste ponto, o uso tático e estratégico da ideologia pela extrema direita é sofisticado: não se trata apenas de mentir deliberadamente, mas sobretudo de produzir seus próprios rituais ideológicos de sustentação da verdade na esfera pública, capazes de formar e deformar as formas subjetivas de os indivíduos vivenciarem politicamente a experiência social acima de qualquer discurso racional minimamente ancorado nos fatos. A base cultural dessa mentalidade é o autoritarismo moralista-cristão em uma versão tropical-digitalizada das Cruzadas, pois as espadas desses novos “templários” são as fake News empunhadas nas redes sociais. Sem esquecer que, a rigor, as fake news não são causa, mas um sintoma deste processo de avanço do neofascismo.

As fake news se estabelecem ideologicamente como a principal forma política do discurso neofascista na era digital, pois somente na esfera pública digitalizada das redes sociais elas conseguem viralizar em larga escala e, assim, cumprir a sua missão de alienação social e política sem limites no espaço e no tempo. Podemos encontrar um exemplo de peso nas pesquisas que comprovam como  em vários países, as fake news são a principal causa da baixa vacinação nos últimos anos.

(ii) Junto disto, a instrumentalização ideológica da racionalidade neoliberal enquanto matriz das práticas discursivas formadoras do sujeito empresarial, garante o terreno fértil na experiência social para semear o neofascismo, até mesmo entre as classes sociais mais vulneráveis. Afinal, como analisa Gilberto Maringoni em recente entrevista[i] concedida ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU), “a precarização do trabalho é o terreno onde se fertiliza o fascismo”.

Em todo este processo, a ideologia é a mediação capaz de “harmonizar” a contradição imanente ao sujeito neoliberal e seus modos de ser na era digital. Contradição esta estabelecida entre, de um lado, o conteúdo objetivo das relações sociais (leia-se: a completa destruição do Estado social orientada pela precarização máxima do trabalho sob a lógica rentista), e de outro, as formas subjetivas de os indivíduos vivenciarem a experiência social enquanto sujeitos políticos na esfera pública.

(iii) Temos a síntese dos dois aspectos anteriores na composição de um processo de formação cultural na era digital, que vem demonstrando muita força no seu caráter de deformação política da esfera pública com enorme força eleitoral e capacidade de institucionalização, como vemos no bolsonarismo. Nesta síntese, a linha de frente da infantaria neofascista que atua nas ruas, nas redes e nas três esferas de governo (executivo, legislativo e judiciário – inclusive na Suprema Corte (STF) – é composta pelos setores mais reacionários dos evangélicos enquanto representantes da forma contemporânea do cristianismo antidemocrático.

A força destes movimentos políticos teocráticos pautados no protestantismo fundamentalista pentecostal está, em grande parte, justamente no fato de que, assim como a milícia e o tráfico ocupam o lugar do Estado político no campo da segurança e da ordem social das comunidades mais pobres, as igrejas evangélicas assumem o papel do Estado social por meio da filantropia cristã que chega aonde não chegam as políticas públicas. E o mais importante: de maneira assídua e permanente, além de estrategicamente acompanhada do seu característico proselitismo ideológico que não separa religião e política, afinal, na história da humanidade estas já nasceram juntas e misturadas – pois sabemos que a separação entre religião e política como projeto da modernidade não alcançou esses setores da sociedade.

É na esteira de todo esse contexto, que identifico não exatamente a morte da esquerda, mas um profundo atraso diante da práxis política do nosso tempo, que produz, em grande parte, um autobloqueio no sentido de demonstrar capacidade efetiva de enunciar novas práticas discursivas capazes de confrontar o neofascismo em tempos de digitalização algorítmica.

Em outras palavras, este autobloqueio impede a esquerda de reagir à altura do triunfo conquistado pela extrema direita. Sim, a esquerda não morreu, mas no seu atraso, bloqueou a si mesma enquanto a extrema direita segue sem bloqueios capazes de efetivamente conter o seu avanço na construção do neofascismo – a seguir, tentarei expressar melhor como entendo a síntese dialética dos três aspectos supramencionados na composição da conjuntura hodierna.

O sucesso da onda global neofascista e sua expressão no Brasil

A onda global neofascista obtém sucesso à medida que articula ideologicamente na esfera pública, de um lado, uma linguagem imagética decorrente do estágio digitalizado da indústria cultural, e de outro, as formas subjetivas de os indivíduos vivenciarem politicamente as relações de poder. No Brasil, este processo mobiliza um intenso proselitismo ideológico da subjetividade política mais reacionária, de modo que canalizam para o seu espectro político os mandatos evangélicos, que de maneira altamente organizada mobiliza cada igreja funcionando seja na periferia ou nos presídios, no YouTube ou nos núcleos familiares.

Com isto, as bases da extrema direita na sociedade civil, obtém um alcance que nenhum partido político ou movimento social consegue obter e, consequentemente, elegem figuras de peso do neofascismo bolsonarista. Enquanto isso, nas ruas e na ágora digital das redes sociais, fragmentada entre o identitarismo e o lulismo, a esquerda inicialmente perdeu esse bonde e hoje corre atrás do prejuízo, sem demonstrar a mesma força política da extrema direita, ao passo que, no campo institucional em sua estratégia de frente ampla que logrou apertada vitória nas urnas em 2022, não consegue avançar na esfera pública com a prometida “união e reconstrução” à altura da ameaça neofascista.

O neofascismo ancorado ideologicamente em parte das igrejas evangélicas demonstra maior capacidade de mobilização não somente nas ruas, mas sobretudo, capacidade de penetração nos lares e famílias, nas escolas, nas favelas, no crime organizado, ou seja, até mesmo no tráfico e na milícia.

Resumo da ópera: enquanto a extrema direita empreende uma práxis que utiliza a ideologia de maneira estratégica e munida de táticas atualizadas com a era digital – tanto na sociedade como no campo institucional –, não raro, a esquerda apenas reage em eterno modo defensivo desarticulado, acompanhado com enfraquecida capacidade de mobilização nas ruas. Este é um ponto central para o denomino como o atraso da esquerda, afinal, não basta salvar a democracia no que diz respeito as regras do jogo do Estado democrático de direito, é preciso construir a democracia como cultura e práxis políticas, pois embora o golpe de Jair Bolsonaro não tenha logrado sucesso no campo institucional, ele segue a todo vapor na sociedade como um todo, ou seja, como práxis política. E claro, a extrema direita vem triunfando por meio do neofascismo como cultura política com enorme capilaridade nas massas.

O sucesso da extrema direita na esfera pública da era digital não se explica no mundo da tecnologia por si só, muito pelo contrário, decorre justamente daquele elemento no qual se manifesta o atraso da esquerda, de modo que esta bloqueou a si mesma, a saber: uma práxis política semeada ideologicamente pela extrema direita no mundo real dos corpos de carne e osso que existem, seja nas ruas, calçadas, templos religiosos, presídios e cracolândias, seja nas feiras livres, na pelada de várzea, na fila do pão na padaria ou na mesa do boteco; seu alcance vai da favela ao condomínio, do brechó na esquina ao shopping center.

No tocante à experiência social digitalizada, via de regra, a esquerda brasileira demonstra que não se atualizou em tempo com as táticas ideológicas na era da digitalização algorítmica no sentido de enunciar com efetividade na esfera pública formas subjetivas de os indivíduos vivenciarem politicamente a experiência social a partir de uma capacidade efetiva de penetração nos processos formativos e organizativos da família e da sociedade civil.

Inicialmente a esquerda subestimou o mito do neofascismo – a exemplo das quase três décadas que subestimou o “excêntrico” deputado Jair Messias Bolsonaro –, e quando começou a atentar para a força que ele demonstrou nas urnas e nas ruas (no mundo real e no mundo digital) – catapultado pela Operação Lava Jato –, começou a investir nas redes sociais muito tardiamente e de maneira claudicante.

Por outro lado, a extrema direita se revelou como uma potente força política na costura ideológica realizada entre, de um lado, o neoliberalismo como um modo de ser empresarial antidemocrático, e de outro, o neofascismo digital globalizado do norte ao sul global. Afinal, somente vencer as eleições presidenciais, embora seja muito importante, não é suficiente; e pior, o bolsonarismo vem demonstrou como perder as eleições presidenciais sem perder a sua força política. Não obstante, para na sua bolha ideológica, Lula não ganhou de forma legítima, de modo que essa massa neofascista vivencia a vitória de Jair Bolsonaro em 2022 como a única verdade clara e evidente e que, portanto, está acima dos fatos.

A partir de estratégico trabalho ideológico atualizado com a era digital, a institucionalização do neofascismo vem, sobretudo desde 2018, em curva ascendente nas esferas legislativas municipal, estadual e federal, com força capaz de confrontar o poder executivo central atuando de maneira muito bem articulada. Por exemplo, a educação tem sido uma área estrategicamente focada, não somente pelos projetos de leis reacionários engendrados nas câmaras municipais, nas assembleias legislativas e no congresso nacional, mas também pela militância formada desde as famílias, a exemplo de tutores (pais, mães, tias, avós, avôs etc.) engajados em confrontar a “ideologia de gênero” diretamente no ambiente escolar e de maneira muito bem articulada com as redes sociais digitais.

Por outro lado, apesar da derrota ao nível federal, na esfera do poder executivo aos níveis municipal e estadual, a extrema direita segue avançando e investindo estrategicamente nas eleições de 2024 e 2026, por meio de táticas políticas eficientes na articulação com suas bases envolvendo as esferas pública e privada, desde famílias, escolas, igrejas, partidos e empresas, até as plataformas digitais aos níveis local, regional e global.

Diante disso, venho tentando responder a seguinte questão: como pensar a ideologia em tempos de digitalização algorítmica e sua relação com as formas subjetivas de os indivíduos vivenciarem politicamente a experiência social digitalizada a partir das condições de possibilidades de resistência e enfrentamento ao neofascismo na esfera pública?

Trabalho com a hipótese de que não será possível responder a esta questão (que é simultaneamente teórica e prática) se a esquerda não fizer uma autocrítica teórica e prática capaz de produzir uma práxis política que permita, primeiramente, derrubar esse bloqueio que a própria esquerda ainda impõe a si mesma, e junto disto, engendrar um enfrentamento do neofascismo à altura do nosso tempo. Sem qualquer pretensão de enunciar a última palavra, sigo investigando em meu campo de pesquisa e com enorme interesse nesse debate tão urgente e necessário.

*Wécio Pinheiro Araújo é professor de filosofia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Nota


[i] Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/637800-a-precarizacao-do-mundo-do-trabalho-e-o-terreno-onde-se-fertiliza-o-fascismo-entrevista-especial-com-gilberto-maringoni?utm_campaign=newsletter_ihu__26-03-2024&utm_medium=email&utm_source=RD+Station


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