Por YURI MARTINS-FONTES*
Comentário sobre o livro de Alfredo Gómez-Muller
Há algumas décadas, os saberes originários, sobretudo indígenas, ocupam posição de destaque por entre aqueles que tentam desvencilhar a concepção socialista do ranço de antigos dogmas positivistas e eurocêntricos que tanto prejudicaram e prejudicam os sentidos do pensamento crítico contemporâneo. Neste rumo, Alfredo Gómez-Muller nos brinda com uma publicação de impacto: seu denso trabalho sobre Inca Garcilaso de la Vega, cronista oriundo de Cuzco cujos escritos repercutiram largamente, desde o século XVII e sobretudo XVIII, nas teorias sociais que se consolidavam e no próprio pensamento socialista moderno.
Intelectual colombiano radicado na academia francesa, Alfredo Gómez-Muller é autor de obra diversificada no campo da ética e filosofia política – que conta com livros como Alteridad y ética desde el descubrimiento de América (1997) e Sartre, de la ‘Náusea’ al compromiso (2008) –, e já há tempos acena para a importância de uma crítica socialista que não apenas analise e acuse as barbáries da modernidade burguesa, mas que se abra efetivamente à alteridade e às questões da subjetividade, trazendo às reflexões e práticas do socialismo atual, ainda contaminadas por modelos evolucionistas, europeizados e cientificistas, os preciosos conhecimentos e sabedorias de vida de povos originários com quem todos temos muito a aprender, e com urgência.
Preâmbulo
Neste que é seu mais recente livro, Alfredo Gómez-Muller perscruta o pensamento de Inca Garcilaso de la Vega, cronista de ascendências inca e espanhola, mas que viria a conceber a si mesmo como “índio” – quem na passagem do século XVI para o XVII descreveu, em detalhado relato histórico, o “socialismo agrário” dos incas. Seus escritos, desenvolvidos no contexto de miséria que afligia boa parte da Europa – durante a catástrofe social produzida pela acumulação primitiva, origem do chamado “progresso” capitalista –, viriam a influenciar diversos pensadores socialistas: desde comunistas-marxistas, a anarquistas e reformadores sociais, tendo gerado debates até mesmo em certos círculos conservadores menos torpes.
O cerne da investigação são os Comentarios Reales de Inca Garcilaso, publicados em 1609, relato que o professor e filósofo percorre minuciosamente, tendo como centro a temática da justiça socioeconômica desenvolvida pelo autor cuzquenho. Sem se apegar somente a aspectos teóricos da letra de Inca Garcilaso, em paralelo aos escritos do cronista, Alfredo Gómez-Muller interpreta também sua vida como um todo; produz assim uma narrativa que supera a dicotomia característica do cientificismo hegemônico moderno – que compartimenta os saberes artificialmente, pretendendo separar da existência do autor os aspectos conceituais de sua obra.
Neste ir e vir entre experiência pessoal, histórica e obra em si, com argumentação bem encadeada e firme, Alfredo Gómez-Muller logra transmitir uma compreensão acurada dos conceitos, nem sempre explícitos, expostos nessas crônicas elaboradas na passagem do século XVI para o XVII. Conforme discutido ao longo do texto, algumas ideias de Inca Garcilaso soam ambíguas, ou mesmo se ocultam em entrelinhas de função estratégica, numa época em que o cerceamento à liberdade de pensamento não era maiormente econômico, como hoje, mas ameaçava a vida mais diretamente, sem as mediações do espetáculo contemporâneo que camuflam a violência – que persiste.
O livro está dividido em seis partes, desdobradas em treze capítulos, através de que se trilha desde a questão pessoal da autoidentificação de Inca Garcilaso como indígena, às ressonâncias de suas ideias ao longo dos séculos até o presente, passando por diversas reflexões e dados históricos, e apresentando ainda várias citações de relatos e análises de contemporâneos do cronista, que reforçam a força de veracidade tanto das crônicas como das teses expostas na obra.
Inca Garcilaso: “índio” e crítico da invasão europeia
Inicialmente, nos dois capítulos que compõem a Primeira Parte, “Soy indio”, é apresentada a questão pessoal de Inca Garcilaso, que para além de sua “biológica” ascendência mestiça, entende-se a si mesmo como indígena. “Sou índio”, declara ele no final do século XVI, quando a palavra já se usava comumente para designar a população americana originária; e portanto, reflete: “que me seja lícito, pois que sou índio, que nesta história eu escreva como índio”. A partir dessa atitude, abandonaria seu nome de batismo, adotando outro que inclui sua origem e identificação com os incas.
Com isto, Inca Garcilaso sugere que sua identidade não se pauta por determinantes genéticos, mas por uma decisão existencial, política: ele se sente espiritualmente como indígena. E aqui Alfredo Gómez-Muller – em um gesto de honestidade intelectual que denota o cuidado com que elaborou este livro – faz interessante autocrítica de seu trabalho anterior sobre o tema, publicado há 25 anos, no qual havia considerado Inca Garcilaso enquanto mestiço; no decorrer do capítulo de abertura, expõe ainda como seu equívoco, de cunho eurocêntrico, foi disseminado por muitos autores, como Miró Quesada, que reduziram a “mestiçagem” de Inca Garcilaso a algo “biológico”, menosprezando portanto os decisivos aspectos culturais, ideológicos.
Filho de um militar da coroa espanhola e de uma princesa inca, Garcilaso nasce em Cuzco, em 1539; é batizado como Gómez Suárez de Figueroa, nome-homenagem que foi o de vários familiares de seu pai. Com vinte e poucos anos, a fim de obter certo reconhecimento da corte, passaria a usar o mesmo nome de seu progenitor, Garcilaso de la Vega, abraçando por alguns anos, também à semelhança do pai, a carreira militar. Uma década mais tarde, tendo se decepcionado com o ofício de soldado, retira-se à casa de um tio, tornando-se “estudante” – período em que se dedica fortemente à leitura e começa a escrever. Já conta com quarenta anos quando, ao traduzir obra filosófica do italiano ao castelhano, adiciona pela primeira vez o nome “Inca” a sua nova assinatura.
Se com sua inicial mudança de nome, expressa identificação com a figura “guerreira” paterna, ato que abarca dimensões não só sociais e psicológicas, mas também tático-políticas, agora, como “Inca Garcilaso”, acena para o reconhecimento de sua origem materna. Com o primeiro movimento, abre espaços conservadores na aristocrática Espanha de então; com o último – pelo qual será reconhecido –, expressa sua dupla origem, espanhola e inca, sem contudo vir a se considerar efetivamente um “mestiço”, termo que, como ele nota, era carregado de menosprezo. “Sou índio inca” – declara: “sou índio cristão católico”.
Eis aqui a deixa para a Segunda Parte: “Justificación de la conquista?”. Conforme mencionado, certa interpretação, razoavelmente estabelecida, afirma que o “católico” Inca Garcilaso seria um “mestiço”, já que, em nome da possibilidade de cristianização dos indígenas, teria supostamente “justificado” as atrocidades da invasão europeia. Esta posição, contudo, é refutada por Gómez-Muller, para quem Inca Garcilaso se utiliza aqui de uma espécie de adulação tática; corroborando esta posição, é citado o antropólogo e historiador Emilio Choy, quem considera que o cronista dissimulou sua crítica à destruição do império inca, para não provocar a ira do truculento Santo Ofício.
Com efeito, não obstante sua discrição, Inca Garcilaso não se cala; seu dizer é “tácito” – que significa silencioso, calado, subentendido. Como exemplo, veja-se a seguinte passagem dos “Comentarios reales”, em que, relatando a morte de Túpac Amaru, Garcilaso mostra o que considera “legítimo”, e portanto, “ilegítimo”: “Así acabó este Inca, legítimo heredero de aquel imperio(…)”. Como nota também Flores Galindo, outro estudioso do tema, a mensagem do cronista é a de que “os espanhóis são usurpadores”, sugerindo pois que deve haver a “restituição do Império a seus governantes legítimos”.
A argumentação de Alfredo Gómez-Muller envereda então por elementos de “comparação tácita”. Inca Garcilaso, ao escrever sobre o “governo, leis e costumes”, afirma com prudência que não tem a intenção de comparar nada. Porém, no decorrer de seu relato, em dezenas de capítulos constrói a imagem de uma sociedade “próspera, justa e bem-organizada”, que soube “fundar um modelo de bom governo” – tanto para os tempos de paz, como de guerra. Noutra parte da extensa crônica, após um preâmbulo no qual afirma que o objetivo daquela seção seria mostrar a virtude dos conquistadores, em realidade ele descreve o advento da conquista como um acontecimento que abre uma era de violência, arbitrariedade, espoliação, injustiça.
Os temas mais frequentes ao longo de duas centenas de capítulos são: traição, crimes, destruição, assassinatos, torturas, violações, enforcamentos, decapitações, rebeliões, motins, massacres, roubos, saqueios – em uma descrição que se sucede em ritmo alucinante. De acordo com a síntese do cronista indígena, à diferença da época do império dos incas: “em todo aquele tempo [da invasão] não houve senão guerra e mortandade”.
Relatos e dados do “bom governo” incaico: um socialismo agrário
Em sua Terceira Parte, La memoria utópica del lnca Garcilaso envereda por um assunto que é dos mais interessantes aos comunistas e variados estudiosos do socialismo contemporâneo: o relato acerca do “comunismo agrário” dos incas, tema caro ao grande pensador marxista José Carlos Mariátegui.
Identificando o deus dos cristãos com o deus Sol dos incas, o cuzquenho entende a divindade como sendo portadora de justiça: proporcionando aos seres humanos “razão” e “urbanidade”. Em sua concepção do relato mítico da fundação do império inca, Manco Cápac e Mama Ocllo, “filho e filha do Sol”, são deuses “civilizadores” cujo principal ensinamento tem caráter “moral”, em um sentido que atualmente compreenderíamos como uma “ética social” (ou como as pessoas devem se tratar umas às outras); e ainda, como um saber “político” (relativo ao “bom governo” ou a como devem os reis governar para beneficiar seus súditos).
Inca Garcilaso – aqui sempre analisado na perspectiva exposta por Alfredo Gómez-Muller – considera que foi justamente neste quesito da “filosofia moral” que os incas mais se desenvolveram, tendo aí inclusive superado seus conhecimentos técnicos e sua “filosofia natural”. Afastando-se da artificial separação moderno-europeia entre teoria e prática, a filosofia moral, conforme a concepção do cronista, é em um só tempo sabedoria e prática de regras, valores e normas de convivência; não está expressa em tratados abstratos ou teóricos, mas em práticas sociais cotidianas e em leis. Ou de outro prisma: não se trata de um saber rígido, dogmático, mas de um conhecimento vivo, em movimento histórico, posto que surge da reflexão contínua sobre a “lei natural” e a “experiência vivida”.
Em defesa de seu ponto de vista, o pensador indígena convoca em seu relato autores espanhóis, cujos comentários também denotam singular admiração pela sociedade e conhecimentos incas – a quem os europeus da época em geral consideravam infiéis e com práticas diabólicas. É o caso de Pedro Cieza de León, quem no século XVI, analisando a organização política, social e econômica desse povo, afirma que “tiveram tão bom governo que poucos outros no mundo lhes levam vantagem”; ou do jesuíta José de Acosta, para quem a lei inca era “digna de admiração” e “mais avançada” que “muitas das repúblicas” europeias.
Conforme Inca Garcilaso, o que é admirável na filosofia moral dos incas são seus saberes práticos relativos à materialidade da vida, às condições de reprodução e desenvolvimento social. Nos capítulos dos Comentarios reales em que descreve os “costumes, leis e governo”, ele apresenta a chamada “lei comum”: característica refinada da sociedade incaica, a que Alfredo Gómez-Muller, em se usando da conceituação do filósofo socialista Karl Polanyi, relaciona com as práticas de “redistribuição” e de “reciprocidade”. Essa lei comum diz respeito à estrutura estatal: ao trabalho comum realizado nas “coisas da república”.
As terras incas eram repartidas em três partes: uma era destinada ao deus Sol, outra ao rei (o Inca), e a última aos “naturais” – ao povo em geral. Tais parcelas, contudo, eram divididas sempre tendo como princípio que “os naturais tivessem o bastante para poder semear”, de modo que “antes lhes sobrasse que faltasse”. Outro aspecto importante é que as terras dos naturais pertenciam conjuntamente aos “moradores” – ou seja, eram propriedades comunais, não privadas: seu cultivo “comum” se orientava à satisfação das necessidades da comunidade como um todo.
Já com relação às terras do Sol e do Inca, eram também os “naturais” – os comuneiros, aqueles que viviam em cada “comuna” – quem as trabalhavam, de modo a sustentar o grupo dos sacerdotes e o dos governantes; proporcionavam assim os bens necessários à celebração em comum do sagrado, que era comum a todos; e a manutenção dos funcionários do governo, responsáveis pela administração da coisa pública (coleta de impostos, redistribuição da produção geral, realização de obras públicas como caminhos, depósitos de alimentos e outros bens necessários à vida).
Embora tal sistema caracterize certa exploração de uma classe social por outras, note-se que havia um limite absoluto, objetivo, para a apropriação dos tributos dos comuneiros pelos grupos socialmente hegemônicos (sacerdotes e governantes): a mencionada regra de que não faltasse a ninguém nenhuma satisfação das necessidades básicas. Se a população crescia – exemplifica Garcilaso – destinava-se terras “da parte do Sol e da parte do Inca para os vassalos”, de forma que o rei só tomava para si ou para o deus “as terras que haviam de ficar desertas, sem dono”. Tais limites – que impediam possíveis arbitrariedades por parte do poder político e religioso – constituem para o cronista cuzquenho, e para muitos de seus contemporâneos, um aspecto determinante do valor da “filosofia moral” desse povo.
Outro ponto importante para o funcionamento desse sistema é que os tributos pagos pelos comuneiros, além de regulamentados por uma série de leis e fóruns considerados invioláveis, eram pagos não por meio de bens de sua própria produção, mas diretamente em trabalho: um trabalho comum, que previa a realização de tarefas específicas nas quais cada qual não era obrigado a fazer nada que estivesse fora do âmbito de seu próprio ofício (ainda que muitos comuneiros tivessem vários ofícios). Embora a maioria da população se ocupasse com a lavoura das terras do Sol e do Inca, havia também certos especialistas que, como pagamento dos impostos, exerciam seus trabalhos especializados: caso dos artesãos da prata, ceramistas, músicos, pintores, tecedores, construtores, etc. Já os soldados em exercício militar – assim como os membros da elite social (governadores, juízes, religiosos, etc) – eram isentos de tributação, posto que seus afazeres já eram considerados, por si, como tributo.
Tal repartição bastante equânime do trabalho-tributo permitia que a contribuição de cada comuneiro não pesasse demasiado a ninguém. “A carga tributária que aqueles reis impunham a seus vassalos” – pondera Inca Garcilaso – “era tão leve”, que a muitos poderá parecer “uma burla”. Além disto, completa, os governantes “distribuíam em grande quantidade as coisas necessárias para comer e vestir”.
Como dito, além das terras pertencentes às “coisas da república” – as do “Sol” e do “Inca” –, havia uma parte que pertencia aos “naturais da província”, aos “moradores” de cada povoado ou “comunidade”. Se aquelas terras dos grupos dominantes estavam regidas pela chamada “lei comum”, estas, as dos comuneiros, estavam sujeitas a uma lei ainda anterior: a “lei da irmandade”. Tais terras, destinadas à generalidade dos “vassalos”, não eram propriedade privada de ninguém, mas terras coletivas – da comunidade como um todo. Os incas não consideravam a si mesmos como indivíduos autossuficientes, regidos por seu interesse “privado”, mas sim como membros de sua comunidade, parte de seu povoado.
O território comunal – comum a todos os moradores, que nele produziam conjuntamente – compreendia terras cultiváveis, pastos e bosques, e também recursos hídricos. Existia, porém, uma divisão prática das terras entre os comuneiros – não no sentido de “propriedade”, mas de “usufruto” –, e esta distribuição era redesenhada anualmente por um conselho comunal que verificava possíveis imprecisões na destinação dos espaços da temporada anterior, redistribuindo a terra comunal entre as famílias, de acordo com o “necessário” a cada qual.
Há outra característica surpreendente da organização social incaica, a que Garcilaso denomina “lei em favor dos pobres”: o “compromisso efetivo a favor da justiça” promovido pelo “bom governo”, segundo o qual se redistribuía os bens comuns prioritariamente aos considerados como pobres. E veja-se aqui, aspecto da maior importância, que – nessa sociedade em que ninguém era desprovido de bens – os tidos como “pobres” eram aqueles que não podiam, não eram capazes de trabalhar. A condição de “pobre” era atribuída “aos anciãos e doentes”, “às viúvas e órfãos” – pontua Inca Garcilaso. Outros cronistas agregam a esta lista os mancos, cegos, pessoas com deficiências de modo geral, bem como aqueles que tinham família escassa. Em contraste, “ricos” eram os saudáveis, os que tinham filhos e família com os quais trabalhar; os que produziam e pagavam seus tributos.
Com relação à questão dos pobres, Inca Garcilaso, além de diversos cronistas e mesmo funcionários da coroa espanhola, afirma que como meio para suprir suas necessidades os incas mantinham depósitos, que formavam parte da organização de redistribuição de bens, voltados sobretudo à população carente. Fora esta redistribuição estatal, havia também um sistema solidário de redistribuição comunal, baseado na lei de irmandade, segundo o qual se ordenava os trabalhos comunais: trabalhava-se “primeiro as terras do Sol”, em seguida as das “viúvas e órfãos”, dos “idosos” e “doentes” – ou seja, dava-se prioridade a todos que eram tidos como pobres; e somente depois cada qual trabalhava as terras de seu usufruto.
Sob tal ordem social, marcadamente ética, infere-se pelos relatos de Garcilaso que por entre os incas ainda que houvesse desigualdade e exploração de classe estava garantida uma vida no mínimo modesta a todos, em que se garantia universalmente os recursos necessários para que a população vivesse ao menos de maneira simples, mas nunca na iminência da fome, do frio: entre os incas não havia miséria; os regia um reconhecimento social de deveres de todos para com todos, uma prática regulamentada por limites éticos que são os das necessidades mais básicas humanas – alimentar-se, vestir-se, abrigar-se.
“Comunismo inca” e o impacto de Inca Garcilaso no socialismo contemporâneo
O denso conteúdo ético-político dos Comentarios reales viriam a alcançar com o tempo uma ressonância extraordinária, chegando a figurar como referência importante do novo pensamento sociopolítico que ascende na Europa setecentista: disto trata a Quarta Parte do livro, intitulada “El impacto de los comentarios reales em el sigo XVIII”. A partir de uma pretensa aproximação entre o cristianismo primitivo e o comunalismo indígena, a crônica de Garcilaso teria sido usada desde o século XVII para a catequização jesuítica; é o que considera, entre outros, Mariátegui, em seus Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana (1989 [1928]).
Entretanto, na parte final do século XVIII este relato histórico expande seu impacto noutra direção. Nesta época de turbulências pré-independentistas americanas, setores cada vez maiores da população crioula (descendentes de europeus nascidos na América) passam a se identificar antes como “americanos”, que como “espanhóis da América”, de modo que nesse processo histórico os Comentarios reales viriam a ser usados como uma referência “americanista”, em posturas críticas ao governo colonial.
O interesse suscitado pelos escritos de Inca Garcilaso nos séculos XVII e XVIII não se deve portanto a uma superficial atração pelo “exótico”, mas sobretudo a seu conteúdo político e ético. Vale notar, com Alfredo Gómez-Muller, que os europeus que então liam Garcilaso estavam imersos em uma catastrófica sociedade que produzia imensos contingentes de desamparados: eram milhões e milhões as pessoas condenadas a uma vida miserável marcada pela fome, insalubridade, repressão, violência, pestes, miséria. Neste contexto de catástrofe social, o debate sobre o “bom governo” não tinha somente um caráter teórico, abstrato, mas era questão que estava na ordem urgente do dia. Por estes tempos, os cercamentos das terras comunais e campos abertos, cultivados por camponeses, constituíram-se em uma imensa tragédia que afligiu parte significativa da população europeia. Como já colocado, a este processo de acumulação privada e violenta das terras comuns, Marx (no primeiro volume de O capital) denominou “acumulação primitiva”, concebendo-a como base para o advento do regime capitalista. Conforme bem observa Alfredo Gómez-Muller, a evolução do capitalismo não foi “um fator entre outros” da evolução exponencial da pobreza europeia, mas sim sua “determinação essencial”.
Assim se daria que, nos séculos XVII e XVIII, a ideia de “bom governo” incaico – concepção construída especialmente a partir das crônicas de Inca Garcilaso – viria a ser desenvolvida por distintos pensadores no intuito de criticar a ordem socioeconômica, política e cultural moderno-europeia. Nos derradeiros dias da Revolução Francesa, o projeto político-social da comunidade de bens, descrita por Garcilaso, aparece de forma explícita no Manifesto dos Iguais (1797), que Alfredo Gómez-Muller aponta como das iniciativas mais interessantes deste processo revolucionário; Sylvain Maréchal, a quem se atribui a redação desse manifesto, comprovadamente conhecia os Comentarios reales – de que reproduz, em um livro seu, descrições e termos usados pelo autor cuzquenho.
Décadas depois, no início do século XIX, o debate sobre as possibilidades de igualdade socioeconômica ressurgiria com força no cenário da nova “questão social” que a Revolução Industrial colocava: tema da Quinta Parte da obra, “‘Comunismo incaico’ y anticapitalismo ‘moderno’”.
Incorporando novas tecnologias a atividades produtivas sempre orientadas para a apropriação privada, este acontecimento foi dos mais violentos da história da humanidade: nas grandes unidades industriais, homens, mulheres e crianças entregavam 15 horas ou mais de sua vida diária, submetidos a trabalhos em ambientes insalubres, vigiados, violentados, sujeitos a uma disciplina de tipo militar e sem dispor de nenhum direito trabalhista, em troca de um salário ínfimo. No final do século XIX, destaca Gómez-Muller, Londres era um inferno dantesco: um milhão de pessoas, de um total de quatro milhões, eram paupérrimos; famintos, desnutridos, vivendo amontoados em cubículos sujos, acometidos por epidemias; um universo de terror em que somente metade das crianças conseguia sobreviver até a idade de cinco anos.
A “questão social” – eufemismo com que se oculta a enorme tragédia que era a realidade de miséria do proletariado europeu – suscita ao longo do século XIX diversos protestos populares. Com estes conflitos, a discussão em busca de soluções para o problema se acirra. Na primeira metade do século, intelectuais como Saint-Simon, Robert Owen, Charles Fourier e Pierre-Joseph Proudon começam a desenvolver as novas teorias socialistas, embora suas concepções, de tendências filantrópicas, fossem limitadas pela falta de uma perspectiva que abrangesse a totalidade social e abrisse caminhos para uma efetiva transformação social. Tais teorias foram por isso chamadas por Karl Marx e Friedrich Engels de “socialismo utópico” (e aqui o termo “utopia” é usado em seu sentido negativo, de proposta frágil, desconectada da realidade como um todo, incapaz de romper com a estrutura do sistema).
Já por volta da metade do século, grandes pensadores críticos, como Marx e Mikhail Bakunin, aprofundam o conteúdo do debate em torno do projeto por uma sociedade mais justa; a partir de então, os conceitos de socialismo e comunismo – em seu sentido moderno – vão se consolidando, acompanhados de adjetivações diversas. Inicialmente, ser comunista tem o sentido de ser partidário da “comunidade de bens”, entendida como um sistema igualitário de redistribuição da produção baseado na propriedade comum e na satisfação das necessidades fundamentais da existência humana. Segundo anota Alfredo Gómez-Muller, em 1854, surgiria a que provavelmente é a primeira caracterização explícita da sociedade incaica como sendo um sistema “comunista”; trata-se da enciclopédia do filósofo Ange Guépin, intitulada Filosofia do século XIX, na qual se afirma que os incas viviam em uma “teocracia comunista muito paternal e de governo muito hábil”.
Na segunda metade do século XIX, os termos comunismo e socialismo ganham protagonismo, em paralelo ao movimento operário que cresce – e seus significados vão se diferenciando, de modo que, a rigor, “socialismo” viria a abarcar um leque ideológico mais amplo, no qual se insere não só o “comunismo” contemporâneo (vertente propriamente “marxista” do socialismo), como o socialismo libertário, o anarco-sindicalismo, entre outras correntes anticapitalistas. Em 1864, é criada a Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional); em 1869 funda-se o Partido Operário Social-Democrata Alemão; em 1871 os trabalhadores promovem a primeira experiência comunista moderna: a Comuna de Paris. Em 1889, é criada a Internacional Socialista (Segunda Internacional). E um ano depois, o etnólogo Heinrich Cunow, membro da Social-Democracia alemã, o mais forte partido da Internacional dos Trabalhadores, propõe tese que viria a ganhar significativa amplitude na época, segundo a qual: no “Peru” antigo havia uma forma de “comunismo primitivo”.
Por este tempo, uma série de investigações antropológicas se dedicaram a compreender as formas de organização comunal de sociedades originárias de diversos períodos da história: é o caso de Henry Morgan, cuja principal obra, A sociedade antiga (Ancient society, 1877), descreve a organização socioeconômica das comunidades iroquesas, sua forma de vida, como “comunismo”, frisando que este povo indígena compartilhava até mesmo a habitação. O sistema comunitário descrito nesse livro teve considerável impacto na antropologia e pensamento da época, de modo que a dimensão política desses novos conhecimentos sobre os povos originários começaria a ser percebida por vários pensadores.
É o caso de Marx e Engels, que leram essa obra de Morgan (a partir da qual Marx escreve seus estudos que viriam a ser chamados Cadernos etnológicos). E também de Rosa Luxemburgo, que já no século XX escreve sobre o “comunismo antigo” ou “originário”, expondo a reação política de intelectuais conservadores contra os avanços da antropologia. Com sagacidade, Rosa nota que a burguesia tinha intuído “uma sinistra relação entre as antiquíssimas tradições comunistas” de povos que resistiam firmemente à invasão colonial, “ávida de lucro”, e “o novo evangelho do impulso revolucionário das massas proletárias”.
Cabe aqui destacar que o significado político da tese antropológica do “comunismo originário” não se limita à crítica da naturalização da propriedade privada, base da ideologia capitalista, mas se contrapõe também ao chamado “evolucionismo social”, ideia mecanicista de viés eurocêntrico que supõe a evolução histórica da Europa como sendo um modelo universal a ser observado por todos os povos do mundo – concepção de influência positivista que viria a afetar inclusive correntes dogmáticas do marxismo.[i] Efetivamente, de acordo com esta perspectiva histórica restringida, desvio no qual incorre Cunow, não se admite que a evolução humana possa comportar trajetórias diversas, e que nestes percursos haja também retrocessos. Assim, para o etnólogo social-democrata, o termo “primitivo” – com que ele caracteriza o “comunismo” inca – tem conotação negativa, designando a ideia de que se trata de um sistema “atrasado”, que teria sido definitivamente “superado” pelo “progresso” (no sentido ideológico moderno deste conceito).
Contra tais teorias não dialéticas, insurge-se Rosa Luxemburgo, afirmando que essa “nobre tradição do distante passado” – a “sociedade comunista-democrática” – “estendeu a mão aos esforços revolucionários do futuro”. Em sua análise do “comunismo originário”, termo que quase sempre prefere a “primitivo”, ela destaca as seguintes características que justificam a denominação “comunista”: a existência de “terras comunais”; e a “redistribuição de lotes” para cultivo, em função das necessidades familiares. Para a pensadora marxista, há uma relação dialética entre o comunismo “passado” e “futuro”, o que nos permite refletir, com mais elementos, por exemplo o aspecto “democrático” da sociedade comunista. Tal visão desta dialética temporal está também presente em J. C. Mariátegui, quem se refere ao sistema sociopolítico inca ora como “comunismo agrário”, ora como “socialismo indígena”, entre outros termos – mas considerando-o como “a mais avançada organização comunista, primitiva, que registra a história”.
Nesta discussão histórica, há decerto autores que por motivos diversos, sobretudo a existência de hierarquia social, não consideram que a sociedade incaica possa ser considerada uma espécie de “comunismo primitivo”. O sociólogo Guillaume de Greef é um exemplo: em sua interpretação, há uma “divergência lógica” entre a face comunal (“igualitária”) e a estatal (“hierarquizante”) dos incas. Já o anarquista Elisée Reclus, como observa Alfredo Gómez-Muller, embora utilize o termo “comunismo quéchua”, parece associá-lo ao “comunalismo tradicional” da população, não ao sistema como um todo; ao dar menos valor à ausência de propriedade privada entre os incas, Reclus põe seu foco em que tal sociedade era hierarquizada, sujeita a “amos”, acusando-a de “despótica” e afirmando que nela não se permitia a liberdade do “indivíduo”.
Acerca deste tema da “liberdade individual”, vale recorrer a Mariátegui (1989), quem faz interessantes ponderações a respeito, argumentando que a “liberdade individual é um aspecto do complexo fenômeno liberal”, uma demanda do espírito “moderno”, “individualista” – algo de que um inca, com sua disciplina solidária, não sentiria “nenhuma necessidade”.
De todo modo, durante décadas, entre o final do século XIX e o começo do XX, irá se aprofundando o debate sobre a questão do “comunismo” ou “socialismo” inca, reflexões que, como observa Gómez-Muller, em grande medida foram influenciadas pelo relato histórico de Inca Garcilaso. E para além da discussão sobre a pertinência desses conceitos, é certo que contribuíram para o delineamento de ideias e políticas concretas que influenciarão o próprio questionamento sobre as noções de “socialismo” e “comunismo”: veja-se o caso de concepções caras ao pensamento socialista moderno, como emancipação, liberdade e justiça social, além de reflexos em práticas políticas de várias nações.
Fechando este trabalho de fôlego, Alfredo Gómez-Muller apresenta em “Ressonancias contemporáneas” – Sexta Parte da obra – os ecos hodiernos alcançados pelo discurso de Inca Garcilaso, que atravessam o século XX e ganham ainda mais força no século XXI, com o aumento do protagonismo político de organizações indígenas e camponeses: quando se agrava violentamente a questão ambiental, um dos frutos podres da crise estrutural capitalista, foco hoje de tantos debates e preocupações concretas. Neste movimento dialético histórico, vale destacar-se a concepção do “bem-viver”, saber ancestral que orienta a atividade humana no mundo, sua relação com o cosmos em que está inserido.
Colocada em questão inicialmente pelos povos andinos quéchuas e aimarás, esta concepção de mundo, que envolve a qualidade material (objetiva) e espiritual (subjetiva) da relação entre o ser humano e a natureza, foi então elaborada nas primeiras décadas desse novo século por diversos pensadores socialistas, contrários ao materialismo vulgar capitalista – regime estático, mesquinho e autodestrutivo que nos submete e afeta a todos –, em um debate que chegou até mesmo a patamares constitucionais, ao ser reconhecido como proposta política nacional por governos progressistas na Bolívia e no Equador.
Encerra o livro uma extensa e diversificada bibliografia que pode servir de orientação aos que se aventurem nos estudos desse tão pertinente assunto. Como singela sugestão deste resenhista e estudioso do tema aos editores, talvez valesse constar como apêndice, em uma bem-vinda próxima edição, um índice expondo os tantos livros e centenas de capítulos que compõem este amplo relato histórico, o que instigaria ainda mais os interessados.
Eis, portanto, um aperitivo de A memória utópica do Inca Garcilaso, esse livro intenso que nos oferece Alfredo Gómez-Muller; obra madura para ser lida, meditada e ter suas ideias cada vez mais postas em prática.
*Yuri Martins-Fontes é professor e doutor em História Econômica (USP/CNRS). Autor, entre outros livros, de Marx na América: a práxis de Caio Prado e Mariátegui (Alameda).
Publicado originalmente na revista História Unisinos, no. 27, jan.-abr. 2023.
Referência
Alfredo Gómez-Muller. La memoria utópica del Inca Garcilaso: comunalismo andino y buen gobierno. Buenos Aires, Tinta Limón Ed., 2021, 388 págs.
Nota
[i] Este tema está mais desenvolvido na obra Marx na América (Alameda/Fapesp, 2018).
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