Economia para a transformação social

Paul Klee, O olho, 1938
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ MARQUES*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Juliane Furno e Pedro Rossi

A Fundação Perseu Abramo (FPA), em parceria com a Editora Autonomia Literária, lançou Economia para a transformação social: pequeno manual para mudar o mundo, escrito por Juliane Furno, recém-concursada para o Departamento de Economia da UERJ, e Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da UFRJ. Eis uma bela e necessária iniciativa.

“Colaborar com o esforço coletivo de conhecer, compreender e construir argumentos para transformar o mundo em que vivemos. Impossível avançar na luta pela democracia, pela reconstrução e transformação do Brasil sem se apropriar criticamente de conhecimentos essenciais da economia”, explicam no Prefácio Carlos Henrique Árabe e Jorge Bittar. Julian Rodrigues, coordenador de formação política da Fundação Perseu Abramo, reitera o preceito do título na orelha do livro: “Como Paulo Freire (e Karl Marx) nos ensinaram, teoria e prática formam sempre uma unidade dialética. Quem sabe mais, luta melhor”.

A obra – da Coleção Argumento – é escrita numa linguagem atraente com ilustrações artísticas da Gazetinha da Guanabara que tornam a leitura prazerosa, não superficial, tendo ao final de cada capítulo indicações de textos, filmes e outros conteúdos para aprofundar os temas. Uma excelente introdução ao estudo da economia política para os lutadores sociais, uma ferramenta para entender o funcionamento de um sistema – o capitalismo – que produz e reproduz a roda gigante da alienação.

Na contramão da vulgata ortodoxa dos economistas que estimulam o conformismo com o status quo, e cujas reformas visam sempre favorecer as classes dominantes, naturalizar as desigualdades e os privilégios e enfraquecer os sujeitos transformadores da realidade que está aí, os autores se propõem “sistematizar e hierarquizar o conhecimento econômico básico para que esse sirva de instrumento para compreensão crítica da economia brasileira e internacional” (p. 12).

O livro divide-se em quatro partes. A primeira é mais teórica e conceitual; a segunda faz uma exposição do capitalismo do século XIX até os dias atuais; a terceira analisa a economia no Brasil junto com uma proposta de modelo econômico socialmente justo e ambientalmente sustentável, incorporando as reflexões ecológicas que relativizam a noção positivista de progresso; a quarta procura desmontar os mitos econômicos e as narrativas neoliberais para que a militância de esquerda se situe em condições capacitadas na luta política concreta.

A crítica dos autores aos apologistas do livre mercado desconstrói o dogmatismo do Consenso de Washington e lança as bases para um conhecimento das engrenagens sistêmicas, no solo da história. Interessa-lhes mostrar o fundamento de classe de duas visões antagônicas: de um lado “a economia política da burguesia” e, de outro, “a economia política das classes trabalhadoras”. A teoria, pois, implica uma posição política. Criticar a hipocrisia burguesa é assumir uma recusa radical à inumanidade e à falta de empatia com o sofrimento do povo.

A hipocrisia aparece na tentativa de transpor um termo da filosofia moral (“austeridade”) que carrega uma conotação de sacrifício (“disciplina, parcimônia, prudência, sobriedade” para evitar “comportamentos dispendiosos, insaciáveis, pródigos, perdulários”), o que remete a valores virtuosos sob o prisma da vida dos indivíduos, para o âmbito “das funções do Estado, buscando reduzir as suas responsabilidades sociais” (p. 185).

A assertiva é fraudulenta, e aqueles que a repetem no jornalismo econômico da mídia corporativa ajudam na fabricação de uma grande mistificação. Integram o time dos “ideólogos”, junto com as consultorias financeiras, conferindo ao discurso hegemônico sobre a economia uma dimensão política para a defesa do establishment, em consequência, das desigualdades abissais entre as classes na sociedade.

No entanto, isso não significa cair numa espécie de sociologismo do tipo que oporia uma classe e “sua” teoria a outra classe e “sua” teoria, esquematicamente. “O neoliberalismo não ganhou primazia porque a sociedade leu seus autores e se convenceu das suas ideias, especialmente nos momentos de crise econômica pela qual passaram os principais países que adotavam políticas intervencionistas conhecidas como ‘Estado de bem-estar social’.

O neoliberalismo ganha relevância ao culpar o Estado interventor e o conjunto de direitos sociais pela crise que atingiu essas nações no final da década de 1970. Segundo essa interpretação, o Estado permissivo ampliou demasiadamente o gasto público e colocou diversas barreiras ao livre funcionamento do mercado, sendo o responsável pela crise” (p. 50-1).

O desafio “é organizar uma economia baseada em direitos impulsionada por dois motores principais de crescimento econômico: (i) a distribuição de renda; e (ii) a expansão da infraestrutura social e ambiental”. O objetivo é “a solução de problemas históricos da sociedade brasileira como mobilidade urbana, saúde, educação, racismo estrutural, desigualdade de gênero, degradação ambiental, mas também uma nova lógica de organização do planejamento econômico” (p. 171).

O campo democrático-popular amplia, assim, o acervo bibliográfico para a emancipação sociopolítica, econômica e cultural. Encorpa a “guerra de posição” dos “subalternos”, no léxico gramsciano, em nome da justiça social e da dignidade contra toda modalidade de subordinação e dominação que crie obstáculos ao direito a ter direitos, ou que negue a lição por excelência instituída na Idade Contemporânea, após a Revolução Francesa, com a esperança de universalizar na República a “liberdade, a igualdade e a fraternidade” a partir do governo Lula 3.0, impulsionado pelos partidos progressistas, movimentos sociais, sindicatos, entidades comunitárias…

Depois de fechar o livro, podemos responder com segurança às Perguntas dum operário leitor, formuladas no poema de Eugen Bertolt Friedrich Brecht (Augsburgo, 1898 – Berlim Leste, 1956):

“Quem construiu a Tebas das Sete Portas?
E a várias vezes destruída Babilônia –
Quem é que tantas vezes a reconstruiu?
Em que casas da Lima refulgente de ouro moraram os construtores?
Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta
A Muralha da China?

O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Ele sozinho?
Felipe de Espanha chorou, quando a Armada
Se afundou. Não chorou mais ninguém?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos. Quem

Venceu além dele?

Cada página uma vitória.
Quem cozinhou o banquete da vitória?
Cada dez anos um Grande Homem.
Quem pagou as despesas?

Tantos relatos.

Tantas perguntas.”

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

Referência


Juliane Furno & Pedro Rossi. Economia para a transformação social: pequeno manual para mudar o mundo. São Paulo, Fundação Perseu Abramo / Ed. Autonomia Literária, 2023, 232 págs.

https://amzn.to/3PDGCJj

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES