Solano Trindade, passado e presente

João José Rescala, Água, 1943.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ZENIR CAMPOS REIS*

Apresentação do livro “Poemas antológicos de Solano Trindade”

(Para João Victor)

Viver é lutar

Em “Poesia doméstica”, Solano Trindade nos apresenta liricamente o lugar ameno, a casa, o espaço seguro, da harmonia, dos afetos, da nutrição, do prazer, contrapondo do território do trabalho, popularmente chamado “luta”:

“A minha estante
É um caixão de cebola
E são poucos os livros
Que eu possuo.
Mas eu tenho um jardim
Que dá flores coloridas
E o cachorro do vizinho
Dá guarda à minha casa
E me festeja
Quando eu chego da luta.”

Luta foi o que não faltou na vida de Solano Trindade, nascido pobre e negro no Recife, em 1918. A memória comovida revive, em “Reencarnação”, a origem humilde:

“D. Micaela
Foi a parteira que me pegou
E anunciou o meu sexo
Homem!

A minha mãe
Foi operária cigarreira
Da Fábrica Caxias
Nascida de índio
E africano

Meu pai
Foi sapateiro
Especialista em Luís XV
Nasceu de branco e africano
Sabia falar em Nagô”

Todos os sentidos da palavra “luta” foram experimentados e exercitados: o trabalho para garantir a subsistência e os bens indispensáveis, o estudo, para o acesso à cultura, isto é, as letras e as artes, e muita luta contra os preconceitos, mais imediatamente o de cor, espraiando-se em dimensões variadas, alcançando mesmo o espaço do sagrado, das religiões africanas, perseguidas e anatematizadas, ontem e hoje. Mesmo legalizadas, mas apenas depois de 1976, continua a campanha de demonização, movida por algumas confissões religiosas, sobretudo evangélicas.

Estas lutas foram comuns aos intelectuais negros, no Brasil e no mundo. Luiz Gama (1830-82), poeta e militante da emancipação do negro escravo do século XIX, registra em verso:

“Na terra que rege o branco,
Nos privam té de pensar.”

Lança o desafio:

“Quero que o mundo me encarando veja,
Um retumbante Orfeu de carapinha,
Que a Lira desprezando por mesquinha.
Ao som decanta de Marimba augusta”

O exercício da poesia lírica muitas vezes se vê forçado a ceder lugar à exigência momentânea da militância política:

“ia falar do seu corpo
de suas mãos
amada
quando soube que a polícia espancou um companheiro
e o poema não saiu”

Respiramos o mesmo ar da poesia de Brecht:

“Que tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?”

Causas individuais se mesclaram inevitavelmente a causas coletivas. Não existe emancipação solitária, quando estão em jogo pobreza, opressão, preconceito. Inevitável a transição do “eu” para o “nós” comunitário, como podemos ler em “Meu canto de guerra”: o “meu poema” torna-se “poema da multidão”.

Muitas vozes

A poesia de Solano Trindade tem uma vocação pública, que se realizou no palco, integrado à música e à dança, nos espetáculos, primeiro do Teatro Folclórico Brasileiro, que criou com a primeira esposa, Margarida Trindade, e com Édison Carneiro (1950).

Percorreu terras, no Brasil e no exterior, levando sua voz e seu gesto, sua mensagem viva. E incorporando aos versos essas andanças, a memória dos espaços, humanizados pelas vivências de criança e de adulto. Mesmo as enumerações colorem-se de um conteúdo emocional. Leia-se no poema “Tem gente com fome” a ladainha das estações da Estrada de Ferro Central do Brasil, que percorre os subúrbios do Rio de Janeiro. Leia-se o desfile de nomes dos bairros populares do Recife, em “Meu canto ao mar”.

O tributo aos folguedos populares e aos pregões de rua recupera essa primeira fonte da cultura oral das camadas populares brasileiras, a rigor formas de comunicação correntes entre crianças e adultos, iletrados e letrados, em todos os povos e em quase todos os momentos históricos.

Nos dias atuais, assistimos a um novo momento desse desdobramento estético, nos poemas musicados pelo neto, Victor da Trindade, que percebeu a afinidade da poesia do avô com o Samba e com o Hip-Hop, por exemplo. Habituados a ler silenciosamente a poesia, não podemos perder de vista essa dimensão daqueles versos.

Graciliano Ramos escreve, em Memórias do cárcere:

“Não supunha os homens bons nem maus: julgava-os sofríveis, pouco mais ou menos razoáveis, naturalmente escravos dos seus interesses. Sem dúvida: uma razão miúda, variável com as circunstâncias, e o egoísmo natural: dormir, comer, amar, reproduzir-se; um pouco acima disto, avaliar quadros e livros, inspirar respeito, mandar”.

No lugar de “interesses”, podemos ler “necessidades”. A poesia de Solano veicula essas necessidades, belamente. A necessidade de amar figura em lugar privilegiado. Esta necessidade sintetiza duas dimensões, a individual e a coletiva da vida humana, por ser o amor e o sexo veículos da reprodução, continuidade da pessoa, mas também da humanidade. Encontramos em Solano o amor másculo, macho-fêmea, e o companheirismo, comunhão de corpo e sentimento, bússola da existência, aqui traduzido na terminologia musical: “canto”, “música”, “ritmo”.

(O amor) “Foi o canto da minha adolescência
Foi a música da minha felicidade
É o ritmo da minha velhice”

*Zenir Campos Reis (1944-2019) foi crítico literário e professor de Literatura Brasileira na FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Augusto dos Anjos: poesia e prosa (Ática).

 

Referência


Poemas antológicos de Solano Trindade. Seleção e introdução: Zenir Campos Reis. São Paulo: Nova Alexandria, 2007.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Gabriel Cohn Igor Felippe Santos Caio Bugiato Luiz Werneck Vianna Henri Acselrad Chico Whitaker Henry Burnett João Carlos Loebens Rafael R. Ioris Afrânio Catani Gerson Almeida Marcos Silva João Feres Júnior André Márcio Neves Soares Manchetômetro Eleutério F. S. Prado Daniel Costa Samuel Kilsztajn José Micaelson Lacerda Morais Carlos Tautz Leonardo Sacramento Alexandre Aragão de Albuquerque Rubens Pinto Lyra Daniel Brazil Leda Maria Paulani João Sette Whitaker Ferreira Luiz Renato Martins Flávio Aguiar Luiz Bernardo Pericás Benicio Viero Schmidt Jorge Luiz Souto Maior Eliziário Andrade Francisco de Oliveira Barros Júnior Paulo Fernandes Silveira Gilberto Maringoni Bruno Fabricio Alcebino da Silva Paulo Martins Elias Jabbour Eugênio Trivinho Manuel Domingos Neto Anselm Jappe Ari Marcelo Solon Carla Teixeira Bento Prado Jr. Michael Löwy Marcus Ianoni José Raimundo Trindade Andrés del Río Flávio R. Kothe João Lanari Bo Luiz Marques Celso Frederico Chico Alencar João Carlos Salles Berenice Bento Jorge Branco Ladislau Dowbor Jean Marc Von Der Weid Lorenzo Vitral Bernardo Ricupero Osvaldo Coggiola Boaventura de Sousa Santos Ricardo Musse Ronaldo Tadeu de Souza Sandra Bitencourt Antônio Sales Rios Neto Alexandre de Lima Castro Tranjan Tadeu Valadares Slavoj Žižek Leonardo Boff Andrew Korybko Alexandre de Freitas Barbosa Rodrigo de Faria Matheus Silveira de Souza José Luís Fiori Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Nogueira Batista Jr Bruno Machado Paulo Sérgio Pinheiro Lincoln Secco Thomas Piketty Everaldo de Oliveira Andrade Valerio Arcary Ricardo Antunes José Dirceu Mário Maestri Maria Rita Kehl Priscila Figueiredo Luiz Eduardo Soares Julian Rodrigues José Geraldo Couto Fernão Pessoa Ramos Celso Favaretto Annateresa Fabris Yuri Martins-Fontes José Machado Moita Neto Michel Goulart da Silva Luiz Roberto Alves Luiz Carlos Bresser-Pereira Antonino Infranca Luciano Nascimento Jean Pierre Chauvin Marcelo Guimarães Lima Sergio Amadeu da Silveira Valerio Arcary Airton Paschoa Eduardo Borges Heraldo Campos André Singer Juarez Guimarães Plínio de Arruda Sampaio Jr. Vladimir Safatle Marilena Chauí Eugênio Bucci Daniel Afonso da Silva Otaviano Helene Walnice Nogueira Galvão Ronald Rocha João Paulo Ayub Fonseca Ronald León Núñez Eleonora Albano Tales Ab'Sáber Vinício Carrilho Martinez Érico Andrade Kátia Gerab Baggio Fábio Konder Comparato Luís Fernando Vitagliano Gilberto Lopes Vanderlei Tenório Tarso Genro Claudio Katz Armando Boito Milton Pinheiro Antonio Martins Marjorie C. Marona Salem Nasser Renato Dagnino Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Adolfo Hansen Remy José Fontana Francisco Pereira de Farias Paulo Capel Narvai Marilia Pacheco Fiorillo Ricardo Fabbrini Francisco Fernandes Ladeira Leonardo Avritzer Fernando Nogueira da Costa Atilio A. Boron Dênis de Moraes Marcelo Módolo Mariarosaria Fabris Alysson Leandro Mascaro Denilson Cordeiro Liszt Vieira Ricardo Abramovay Michael Roberts Marcos Aurélio da Silva José Costa Júnior Luis Felipe Miguel Dennis Oliveira

NOVAS PUBLICAÇÕES