Solano Trindade, passado e presente

João José Rescala, Água, 1943.
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Por ZENIR CAMPOS REIS*

Apresentação do livro “Poemas antológicos de Solano Trindade”

(Para João Victor)

Viver é lutar

Em “Poesia doméstica”, Solano Trindade nos apresenta liricamente o lugar ameno, a casa, o espaço seguro, da harmonia, dos afetos, da nutrição, do prazer, contrapondo do território do trabalho, popularmente chamado “luta”:

“A minha estante
É um caixão de cebola
E são poucos os livros
Que eu possuo.
Mas eu tenho um jardim
Que dá flores coloridas
E o cachorro do vizinho
Dá guarda à minha casa
E me festeja
Quando eu chego da luta.”

Luta foi o que não faltou na vida de Solano Trindade, nascido pobre e negro no Recife, em 1918. A memória comovida revive, em “Reencarnação”, a origem humilde:

“D. Micaela
Foi a parteira que me pegou
E anunciou o meu sexo
Homem!

A minha mãe
Foi operária cigarreira
Da Fábrica Caxias
Nascida de índio
E africano

Meu pai
Foi sapateiro
Especialista em Luís XV
Nasceu de branco e africano
Sabia falar em Nagô”

Todos os sentidos da palavra “luta” foram experimentados e exercitados: o trabalho para garantir a subsistência e os bens indispensáveis, o estudo, para o acesso à cultura, isto é, as letras e as artes, e muita luta contra os preconceitos, mais imediatamente o de cor, espraiando-se em dimensões variadas, alcançando mesmo o espaço do sagrado, das religiões africanas, perseguidas e anatematizadas, ontem e hoje. Mesmo legalizadas, mas apenas depois de 1976, continua a campanha de demonização, movida por algumas confissões religiosas, sobretudo evangélicas.

Estas lutas foram comuns aos intelectuais negros, no Brasil e no mundo. Luiz Gama (1830-82), poeta e militante da emancipação do negro escravo do século XIX, registra em verso:

“Na terra que rege o branco,
Nos privam té de pensar.”

Lança o desafio:

“Quero que o mundo me encarando veja,
Um retumbante Orfeu de carapinha,
Que a Lira desprezando por mesquinha.
Ao som decanta de Marimba augusta”

O exercício da poesia lírica muitas vezes se vê forçado a ceder lugar à exigência momentânea da militância política:

“ia falar do seu corpo
de suas mãos
amada
quando soube que a polícia espancou um companheiro
e o poema não saiu”

Respiramos o mesmo ar da poesia de Brecht:

“Que tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?”

Causas individuais se mesclaram inevitavelmente a causas coletivas. Não existe emancipação solitária, quando estão em jogo pobreza, opressão, preconceito. Inevitável a transição do “eu” para o “nós” comunitário, como podemos ler em “Meu canto de guerra”: o “meu poema” torna-se “poema da multidão”.

Muitas vozes

A poesia de Solano Trindade tem uma vocação pública, que se realizou no palco, integrado à música e à dança, nos espetáculos, primeiro do Teatro Folclórico Brasileiro, que criou com a primeira esposa, Margarida Trindade, e com Édison Carneiro (1950).

Percorreu terras, no Brasil e no exterior, levando sua voz e seu gesto, sua mensagem viva. E incorporando aos versos essas andanças, a memória dos espaços, humanizados pelas vivências de criança e de adulto. Mesmo as enumerações colorem-se de um conteúdo emocional. Leia-se no poema “Tem gente com fome” a ladainha das estações da Estrada de Ferro Central do Brasil, que percorre os subúrbios do Rio de Janeiro. Leia-se o desfile de nomes dos bairros populares do Recife, em “Meu canto ao mar”.

O tributo aos folguedos populares e aos pregões de rua recupera essa primeira fonte da cultura oral das camadas populares brasileiras, a rigor formas de comunicação correntes entre crianças e adultos, iletrados e letrados, em todos os povos e em quase todos os momentos históricos.

Nos dias atuais, assistimos a um novo momento desse desdobramento estético, nos poemas musicados pelo neto, Victor da Trindade, que percebeu a afinidade da poesia do avô com o Samba e com o Hip-Hop, por exemplo. Habituados a ler silenciosamente a poesia, não podemos perder de vista essa dimensão daqueles versos.

Graciliano Ramos escreve, em Memórias do cárcere:

“Não supunha os homens bons nem maus: julgava-os sofríveis, pouco mais ou menos razoáveis, naturalmente escravos dos seus interesses. Sem dúvida: uma razão miúda, variável com as circunstâncias, e o egoísmo natural: dormir, comer, amar, reproduzir-se; um pouco acima disto, avaliar quadros e livros, inspirar respeito, mandar”.

No lugar de “interesses”, podemos ler “necessidades”. A poesia de Solano veicula essas necessidades, belamente. A necessidade de amar figura em lugar privilegiado. Esta necessidade sintetiza duas dimensões, a individual e a coletiva da vida humana, por ser o amor e o sexo veículos da reprodução, continuidade da pessoa, mas também da humanidade. Encontramos em Solano o amor másculo, macho-fêmea, e o companheirismo, comunhão de corpo e sentimento, bússola da existência, aqui traduzido na terminologia musical: “canto”, “música”, “ritmo”.

(O amor) “Foi o canto da minha adolescência
Foi a música da minha felicidade
É o ritmo da minha velhice”

*Zenir Campos Reis (1944-2019) foi crítico literário e professor de Literatura Brasileira na FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Augusto dos Anjos: poesia e prosa (Ática).

 

Referência


Poemas antológicos de Solano Trindade. Seleção e introdução: Zenir Campos Reis. São Paulo: Nova Alexandria, 2007.

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