G-20 – O declínio do “multilateralismo ocidental”

Imagem: Kaboompics
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Por ANDRES FERRARI & JOSÉ LUÍS FIORI*

Sergueï Lavrov, colocou o “dedo na ferida” que esvaziou a reunião de Nova Delhi, ao falar do desejo dos euro-americanos de “ucranizar” a reunião do G-20

Na recente cúpula do G20 na Índia não estiveram presentes os líderes máximos da China nem da Rússia. E não há dúvida de que essa ausência colocou em questão os limites de um grupo que vai sendo esvaziado pelo aumento da intensidade dos conflitos que dividem seus membros neste momento. E a prova mais palpável desta perda de legitimidade e de eficácia foi sua declaração final, anódina e sem compromissos reais entre seus participantes.

Foi a primeira vez que um presidente chinês não compareceu à cúpula de líderes desde seu início, em 2008. Alguns explicaram a ausência de Xi Jinping por certas tensões entre a China e a Índia, devido às disputas fronteiriças que resultaram em um breve conflito entre suas tropas em 2020, e pela recente publicação, na China, de um mapa que reivindica todo o seu território em disputa. No entanto, a China participou da recente cúpula virtual, organizada pela Índia, da Organização de Cooperação de Xangai, na qual seus Estados membros “acordaram os contornos da ordem mundial emergente”.

As mesmas postura e relação que mantiveram a Índia e a China – uma visão que continuou dias atrás durante a reunião dos BRICS+ na África do Sul, onde Xi Jinping e Narendra Modi, o primeiro-ministro da Índia, se encontraram separadamente para discutir e acordar a declaração final desse evento. Assim, apesar dos conflitos bilaterais, ambos os países parecem compartilhar a visão de colaborar na formação de uma nova ordem global diferente da ocidental.

Portanto, a despeito das inúmeras tentativas de criar fissuras e atritos entre os membros da “nova maioria global”, todos os movimentos dos dois países sugerem que, em última instância, Índia e China compartilham uma mesma visão crítica a respeito da “ordem baseada em normas” criada e tutelada pelas potências euro americanas.

É esta posição crítica que explica que, apesar das pressões, os dois países asiáticos tenham se mantido firmes em não conceder um convite ao líder ucraniano Volodymyr Zelensky para a Cúpula do G20. A Índia argumentou que o G20 foi criado para que os países deliberem sobre questões econômicas e financeiras globais, e não é um fórum para questões geopolíticas, ao contrário da posição defendida pelos Estados Unidos e pelo G7.

Nessa reunião, e pela primeira vez, a Índia refere-se a si mesmo nos documentos oficiais da reunião como Bharat – expressão contemplada no primeiro artigo de sua Constituição, de 1950, e que é a designação para a Índia em algumas línguas do país, como o sânscrito. Embora não tenha havido explicações oficiais a respeito, não há a menor dúvida de que esta foi uma forma – talvez a mais radical e “ghandiana” – de romper seus últimos laços com a Grã-Bretanha, sua antiga potência colonial.

Fontes próximas ao governo afirmaram explicitamente que este foi um movimento a favor de uma designação não colonial, em contraste com o nome “Índia”, vinculado ao Império Britânico. Além das disputas internas, mediante a nova nomenclatura, a Índia quer sugerir que superou a mentalidade colonial e agora se posiciona como um dos grandes líderes da nova ordem internacional que está sendo proposta e desenhada progressivamente pela “nova maioria global”.

O primeiro-ministro Narendra Modi enfatizou o crescimento inclusivo como uma das prioridades da presidência do G20 do país. Apresentou o modelo “Sabka Saath Sabka Vikas”, que significa “desenvolvimento para todos”, afirmando que “independentemente do tamanho do PIB, cada voz importa”. Por isso, ele afirma ter colocado as preocupações do “Sul Global” – escassez de alimentos e fertilizantes – como principais objetivos para o G20.

A Índia já se posicionou assim em janeiro, quando convocou quase 125 países em desenvolvimento para a Cúpula da Voz do Sul Global, para discutir a questão da falta de alimentos. Também concordou com os demais membros dos BRICS+ na declaração de Johannesburgo II, ao expressar preocupação com as medidas restritivas ao comércio que são incompatíveis com as normas da OMC, incluindo medidas unilaterais ilegais, como as sanções que afetam o comércio agrícola – esta última frase diretamente dirigida às sanções contra a Rússia devido à Ucrânia.

A Índia, juntamente com o Brasil, é uma das vozes mais críticas da velha ordem tutelada pelos países do chamado “ocidente restrito”, que priorizam a transição energética por questões climáticas em detrimento da questão da “desigualdade” e das necessidades mais urgentes dos países pobres. Ambos os países também alertam para o fato de que as antigas potências ocidentais não têm cumprido os compromissos assumidos.

Não apenas a China se manifestou de forma semelhante repetidamente, mas a Rússia, cujo presidente Vladimir Putin foi o outro grande ausente no G20. O ministro das Relações Exteriores russo, Sergueï Lavrov, declarou no encontro dos BRICS que “as promessas ocidentais de ajudar os países africanos – no valor de 10 bilhões de dólares por ano – simplesmente foram esquecidas, no contexto da generosa ajuda ocidental a Kiev”.

Deve-se lembrar aqui a importância histórica e econômica da Rússia para a Índia: os dois países têm vínculos militares e estratégicos muito sólidos, que a Índia vem preservando a despeito de todas as pressões e vantagens que vêm sendo oferecidas insistentemente pelos Estados Unidos. Além disso, a Índia aumentou significativamente suas importações russas, sobretudo de petróleo, após as sanções impostas à Rússia por um grupo de 40 países liderados pelos Estados Unidos, quase todos pertencentes ao velho eixo euro-americano. Por tudo isso, é muito difícil imaginar que a Índia rompa com a Rússia, a despeito de que sua movimentação estratégica não se restrinja a suas alianças e acordos asiáticos.

O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergueï Lavrov, colocou o “dedo na ferida” que esvaziou a reunião de Nova Delhi, ao falar do desejo dos euro-americanos de “ucranizar” a reunião de Nova Dehli, buscando inserir o tema da Ucrânia em cada questão – inclusive na Declaração final – algo que a Rússia não aceitaria.

Os líderes ocidentais acreditavam na possibilidade de isolar os russos e de pressioná-los, a fim de aceitarem incluir a questão da Ucrânia, mas isto não aconteceu: a Rússia não só não foi isolada como conseguiu fazer prevalecer sua oposição na declaração final da reunião. O resultado desse complexo embate diplomático foi uma declaração branda, para dizer o mínimo, que não condenou a conduta de Moscou nem se rendeu à pressão euro-americana, mas reiterou o princípio da integralidade territorial das nações.

Esse “consenso mínimo” logrado na cúpula do G20 é o retrato fiel de um mundo dividido e fragmentado por uma verdadeira guerra econômica dos Estados Unidos contra a China, e por um enfrentamento militar direto da OTAN com a Rússia.

Está chegando ao fim o multilateralismo ocidental, sacramentado pela afirmação do presidente Lula, numa entrevista paralela à reunião do G20, de que receberia no Brasil o presidente Putin, desconhecendo ordem do Tribunal Internacional criado pelos euroamericanos.

*Andres Ferrari é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS.

*José Luís Fiori é professor Emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O mito de Babel e a disputa do poder global (Vozes).
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Publicado originalmente no Boletim de Conjuntura do Observatório Internacional do Século XXI, do Nubea/UFRJ.


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