Por RASHID KHALIDI*
O governo Biden mergulhou de cabeça em um abismo de depravação moral ao conceder apoio material a Israel no massacre de palestinos e na transformação de Gaza em um lugar inabitável
Esta palestra, seis semanas atrás, teria outro título, com conteúdo um pouco diferente. O contexto histórico da atual conjuntura seria exposto partindo do meu livro, The Hundred Years’ War on Palestine: A History of Settler-Colonialism and Resistance [A guerra dos cem anos contra a Palestina: histórias de resistência e do colonialismo de povoamento]. Este livro explica os acontecimentos na Palestina desde 1917 a partir da guerra travada contra os povos originários palestinos, ao longo de distintas fases, por diferentes grandes potências que se aliaram ao movimento sionista — um movimento que foi ao mesmo tempo nacionalista e de colonização por povoamento. Estas potências mais tarde se aliaram ao Estado-nação israelense surgido desse movimento.
Essa estrutura me parece a melhor forma de explicar a história do século passado em diante. Este não é um conflito antigo entre árabes e judeus, e não acontece desde os tempos imemoriais. É um produto novo da irrupção do imperialismo no Oriente Médio e da ascensão do Estado-nação moderno e dos nacionalismos, árabe e judaico. Esta guerra, vale lembrar, não foi só entre o sionismo e Israel, de um lado, e os palestinos, do outro, contando as vezes com o apoio árabe e externo.
Ela sempre envolveu a intervenção massiva das grandes potências ao lado do movimento sionista e de Israel: a Grã-Bretanha até à Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e outras potências desde então. Estas grandes potências nunca foram neutras, nunca foram mediadoras honestas, elas integram parte ativa do lado israelense nesta guerra. Considerando estes fatos, longe de uma equivalência entre ambos os lados, é uma guerra entre colonizador e colonizado, entre opressor e oprimido, com enorme desequilíbrio separando, sempre, os dois lados na Palestina a favor do sionismo e de Israel.
Porém, mesmo acreditando que esse cenário tenha sido reforçado ao longo das últimas seis semanas, pela intensidade muscular da participação norte-americana e pela natureza bastante limitada da ação dos iranianos e dos estados árabes, podemos estar assistindo, desde 7 de outubro, uma mudança paradigmática, produto do surgimento de novos elementos. Apresentarei algo de natureza provisória. Como historiador, reluto prever a possível evolução dos acontecimentos. Mas, à luz dos sentidos deste conflito bélico de mais de um século, esta claro o surgimento de novos elementos indicando uma potencial nova fase nesta guerra. Destaco quatro desses elementos:
(i) O número de mortos em Israel, mais de 1.200, é o terceiro maior na história do país. Mais de 800 civis israelenses morreram, bem como mais de 350 militares e policiais, todos no espaço de pouco mais de um dia. 64 soldados israelenses foram mortos desde então. É provável que esse seja o maior número de mortes de civis israelenses desde sempre (719 civis foram mortos ao longo da segunda intifada em quatro anos; a maioria dos 6.000 mortos em Israel durante 1948, sua guerra mais violenta, eram soldados). As baixas militares e policiais israelenses, combinadas com as ocorridas desde o início da invasão terrestre semanas atrás, já ultrapassaram 400. Este número em breve se aproximará da quantidade de soldados israelenses (mais de 450) que morreram participando, em 1982, da invasão do Líbano.
O atual número de mortos palestinos, mais de 11.500, assim como o de israelenses, ainda não esta definido e aumentará com as taxas de mortes evitáveis por doenças, mortalidade infantil e outros motivos, assim como pelo provável acréscimo da maior parte das 2.700 pessoas desaparecidas. Esse já é o segundo maior número de palestinos mortos desde 1948, quando cerca de 20.000 pessoas morreram, a maioria civis, e um número maior, ao que tudo indica, comparado à guerra israelense no Líbano em 1982, quando 20.000 pessoas morreram, mais da metade eram palestinos e o resto libaneses (durante a segunda intifada, cerca de 5.000 palestinos foram mortos).
Recordo estas estatísticas macabras como prova de um elemento do que pode indicar uma mudança de paradigma. O número de vítimas israelenses, em particular o número de civis mortos, criou um choque traumático que repercutiu em Israel, nas comunidades judaicas pelo mundo e em todo o Ocidente. Os seus efeitos políticos a longo prazo são impossíveis de prever, mas já afetaram em peso as tomadas de decisões dos governos israelense e americano, intensificando a agressividade e intransigência de ambos os países.
É incalculável, ao mesmo tempo, o impacto político a longo prazo do número brutal de mortes palestinas em um período curto e reduzido de tempo, não só entre os palestinos, mas também em todo mundo árabe, com possíveis alcances ainda mais distantes. Uma situação que pode muito bem afetar as políticas internas dos vários estados árabes, assim como o futuro de Israel na região.
Estes números devem ser entendidos no contexto de dois outros fatores. Primeiro, o ataque surpresa do Hamas e o esmagamento das defesas de Israel, incluindo a derrota de uma divisão inteira do exército israelense (a divisão de Gaza), o completo fracasso da tecnologia de inteligência e vigilância israelense, e o massacre de tantos israelenses civis, a primeira vez que uma guerra foi travada com esta ferocidade em solo israelense desde 1948. Israel já sofreu graves ataques à sua população civil antes, de foguetes e homens-bomba, mas desde 1948, todas as grandes guerras israelenses – 1956, 1967, a Guerra de Atrito de 1968-70, 1973, 1982, a segunda intifada e todas as guerras em Gaza – foram na prática travadas em solo árabe. Nada parecido aconteceu com Israel em 75 anos.
(ii) O segundo fator é o colapso temporário da doutrina de segurança de Israel representado nessa guerra. Isto é muitas vezes denominado de forma errada como “dissuasão”, mas é, na verdade, produto da doutrina agressiva ensinada primeiro aos fundadores das forças armadas israelenses por especialistas britânicos em contra-insurreição, como Orde Wingate. Segundo essa doutrina, ao se atacar de forma preventiva ou retaliatória com força esmagadora, o inimigo sofrerá uma derrota decisiva, uma intimidação permanente que o force a aceitar os termos israelenses. No que diz respeito a Gaza, isso significou ataques periódicos os habitantes da faixa, matando um grande número deles para forçá-los a aceitar um cerco e um bloqueio, que já dura 16 anos.
Digo o colapso temporário desta doutrina porque, embora os eventos de 7 de Outubro tenham explicitado sua falência total, o sistema de segurança israelense não aprendeu nada, dobrando sua aposta. Parecem ter esquecido a máxima de Clausewitz, da guerra como continuação da política por outros meios. É evidente que a liderança israelense não tem qualquer objetivo político claro ao travar esta guerra, para além da vingança pelo número de vítimas civis e da humilhante derrota militar do 7 de Outubro, enquanto reivindicam a restauração da “dissuasão”.
Em vez de um objetivo político preciso para o confronto, o governo e os militares israelenses postularam a meta impossível da destruição do Hamas, uma entidade político-militar-ideológica que talvez possa ser derrotada no campo militar, mas que não pode ser destruída. O fortalecimento ou enfraquecimento do Hamas só ficará claro depois do fim dessa guerra, porem ele não será destruído como força política e ideologia enquanto a ocupação e a opressão do povo palestino continuar.
(iii) Outro possível novo elemento nessa mudança paradigmática estaria no giro inicial de simpatia ampla a Israel em nível mundial, para uma intensa reprovação da guerra israelense em Gaza. Isso tem ocorrido em todo o mundo árabe, na maioria dos países muçulmanos e na maior parte do mundo (ou melhor, no mundo real, excluindo os EUA e alguns países ocidentais). A rejeição tem também sido intensa até entre amplos segmentos das populações norte-americana e europeia.
É impossível avaliar se essa reação terá efeito duradouro. Com certeza teve quase nenhum efeito perceptível na política do governo de Joe Biden de apoio generalizado a Israel, cujo nível é de participação ativa na guerra contra Gaza. Um envolvimento que pode levar à participação direta das forças dos EUA, Deus nos livre, caso este conflito se transforme em uma guerra regional mais ampla.
A reação nos países árabes prova ao menos a ignorância plena das autoridades políticas e especialistas ocidentais e israelenses, cujas afirmações diziam em aberto que “os árabes não se importam com a Palestina”. Ao afirmar isto com confiança, confundiram os autocratas e cleptocratas que governam a maioria dos países árabes com os seus povos, de preocupação evidente com a Palestina, organizando as maiores manifestações vistas na maioria das capitais árabes em uma dúzia de anos. Como qualquer historiador sério lhes afirmaria, durante mais de um século, os povos árabes demonstraram uma profunda preocupação pela Palestina.
É impossível afirmar se esta forte reação negativa a Israel será duradoura, assim como se e quando os regimes antidemocráticos que assolam a região consigam reprimir as expressões destes sentimentos. Em suas futuras políticas com Israel, está obvio que terão de ser muito mais cuidadosos que antes, considerando o apoio convicto dos seus povos à causa palestina.
(iv) Há um quarto e último elemento nesta possível mudança de paradigma. As medidas desiguais usadas pelas elites e os políticos ocidentais para desvalorizarem as vidas pretas ou árabes, em oposição à valorização de vidas brancas ou israelenses, produzem uma atmosfera tóxica nos locais dominados por estas elites, como seus espaços políticos, incluindo as grandes empresas, os meios de comunicação, e universidades como Columbia.
Estas elites, e muitas outras, consideram os massacres de civis israelenses tendo qualidade distinta dos massacres de mais de uma dúzia de vezes maior de civis palestinos. O sofrimento dos civis israelenses, e apenas deles, foi citado de forma direta mais uma vez pelo presidente Joe Biden no dia 15 de Novembro, encobrindo ao mesmo tempo os bombardeios israelenses a Gaza com incoerência típica, repetindo os discursos rotineiros israelenses.
Essa obvia abordagem desigual é uma faca de dois gumes: embora possa servir Israel a curto prazo, o preconceito inerente e a duplicidade de critérios estão evidentes para o mundo e para segmentos crescentes da opinião pública no Ocidente, em particular entre os mais jovens. Isto em geral se aplica a todos aqueles que não estão intoxicados pelas exposições engajadas dos principais meios de comunicação, que apenas publicam aquilo que agrada Israel. O apoio de 68% dos americanos, incluindo uma grande maioria dos Democratas, ao cessar-fogo em Gaza, uma medida contestada com veemência pelo governo israelense e seu facilitador na Casa Branca, é fato relevante, se não um prenúncio da mudança de paradigma.
No entanto, apesar da exploração política sem escrúpulos das mortes e sequestros de civis israelenses, é preciso reconhecer que estas questões constituem, alem de um grave problema moral, problemas jurídicos e políticos para os defensores dos direitos palestinos. O elemento moral é óbvio: as mulheres, as crianças, os idosos e todos os não-combatentes desarmados devem ser protegidos sem questionamentos em tempos de guerra. A questão legal também deveria ser óbvia. Pode-se escolher a não aplicabilidade das normas do direito internacional humanitário.
No entanto, se quisermos aplicá-las, elas deverão ser aplicadas a todos. Israel mente ao afirmar que adere ao direito internacional humanitário, apesar de já ter admitido em público, através da sua “doutrina Dahiya”, anunciada em 2007 pelo ex-general Gadi Eizenkot (integrante do atual gabinete de guerra israelense) que não o faz. Os líderes de Israel declararam não obedece, de forma repetida e aberta, a pelo menos dois dos elementos-chave do direito internacional humanitário, a proporcionalidade, que exige que a perda de vidas humanas ou de bens não seja excessivas em relação à vantagem esperada da destruição de um alvo militar, e distinção, que exige distinguir entre a população civil e os combatentes. Nos seus ataques diários a Gaza, como repetidas vezes no passado, Israel demonstrou desrespeito total por estes princípios, destruindo as vidas de um número incontável de civis, para supostamente procurar ou matar um ou alguns guerrilheiros.
É fato que o direito internacional garante aos povos sob ocupação o direito de resistir, e isto se aplica, é claro, no caso dos palestinos. No entanto, se quisermos exigir a aplicação do direito humanitário internacional a Israel, ele também precisa ser aplicado às forças palestinas. Sem negar as flagrantes violações destas leis pelos israelenses, as violações do Hamas e de outros devem estar sujeitas aos mesmos padrões.
O problema político esta na aprovação geral dada pelos EUA e alguns governos ocidentais as violações completas do direito humanitário internacional por Israel, enquanto as violações palestinas da moralidade e do direito humanitário internacional, ligadas à morte e sequestro de civis, são exploradas para difamar e deslegitimar a causa palestina como um todo, e não apenas seus autores. Como podemos ver na reação política, mediática e institucional nos EUA e na Europa desde 7 de Outubro (como vimos na Universidade de Columbia e noutros campi), cuja relação com estas violações é umbilical, elas têm como seus verdadeiros alvos a luta pelos direitos dos palestinos.
Os desdobramentos nos espaços hostis que ocupamos na política, nas instituições e na imprensa norte-americana e ocidental são de extrema importância. Ao aceitarmos que Israel é um projeto colonial (e também nacional), então os EUA e o Ocidente são a sua metrópole. Assim como entenderam os movimentos de libertação da Irlanda, Argélia, Vietnã e Africa do Sul, não era suficiente resistir ao colonialismo na colónia. Também era preciso conquistar a opinião da metrópole, envolvendo muitas vezes a limitação ao uso da violência, assim como ao uso de meios não violentos (por mais difícil que seja frente à violência monumental do colonizador).
Foi assim que os irlandeses venceram a Guerra da Independência de 1916 a 1921, como os argelinos venceram em 1962 e como também venceram os vietnamitas e os sul-africanos. Nos espaços hostis da política e da imprensa, em que operam os apoiadores dos direitos palestinos nos EUA e na Europa, é necessária lucidez absoluta sobre estas questões, não apenas por razões morais e legais, mas também por motivos políticos.
Embora seja impossível prever os resultados desta guerra na fase atual, ela ao menos resultou nas mudanças descritas acima. Isso resultará em transformações profundas de paradigmas humanitários e políticos? Vejo três questões principais:
(a) A expulsão de um milhão e meio de pessoas do norte da Faixa de Gaza, incluindo da Cidade de Gaza, que já é uma espécie de nova Nakba, levará à limpeza étnica permanente desta região norte? (b) A comunidade internacional, ou os EUA (que muitas vezes atuam como se eles sozinhos fossem a comunidade internacional), apresentarão uma resolução política original e inovadora para o conflito baseada nos princípios da igualdade e justiça? (c) Ou, mais provável, irá apenas restabelecer alguma forma opressiva do status quo anterior de ocupação e cerco dos palestinos em espaços cada vez menores, enquanto bombeiam mais formaldeído no cadáver mofado da “solução de dois estados”, morta há muito tempo?
É impossível responder a estas perguntas hoje, embora meu palpite seja que as respostas possam ser, na prática, sim para a primeira, não para a segunda e sim para a terceira.
Contudo, esperamos que uma hipótese possa ser excluída: a limpeza étnica parcial ou total da população da Faixa de Gaza e da Cisjordânia e sua expulsão da Palestina histórica para o Sinai Egípcio e Jordânia. Durante as suas primeiras visitas à região após a eclosão da guerra, o Secretário de Estado Anthony Blinken, agindo, ao que tudo indica, como mensageiro israelense, pressionou os governantes do Egito, Jordânia e Arábia Saudita a aceitarem a medida. Todos o rejeitaram sem titubear. Assim, estes governos agiram baseados no interesse nacional de seus Estados e no interesse da preservação de seus regimes, mas também no interesse dos palestinos, que sabem, graças a 75 anos de amarga experiência, que Israel nunca permitiu qualquer pessoa que tenha sido expulso da Palestina a voltar.
As provas cabais das intenções malignas da Casa Branca de Joe Biden podem ser encontradas no projeto orçamentário enviado pelo Gabinete de Gestão e Orçamento, dia 20 de Outubro de 2023, ao Congresso, requerendo bilhões de dólares para ajuda militar à Ucrânia e Israel. Isto inclui um pedido de financiamento intitulado “Assistência à Migração e Refugiados” voltados a “eventuais necessidades dos moradores de Gaza em fuga para países vizinhos”, nos “deslocamentos entre fronteiras” e para “requisitos de assistência fora de Gaza”.
A miopia da administração de Joe Biden no alinhamento servil aos esforços de guerra israelense, englobando múltiplos prováveis crimes de guerra, sem qualquer resultado político discernível ou alcançável, devem ser somados aos fracassos na política interna. Ignorou por absoluto à oposição crescente ao seu apoio ilimitado à guerra de Israel em Gaza por muitos dos seus próprios servidores, assim como de elementos-chave da base do Partido Democrata. Composta em grande parte por eleitores jovens, elementos liberais e progressistas das comunidades judaica e cristã, árabes, muçulmanos e elementos dirigentes das comunidades negras e de outras comunidades minoritárias. À medida que o ataque de Israel a Gaza continua com o total apoio do governo, é cada vez mais difícil ver como um grande número destes grupos, em particular aqueles localizados nos principais estados decisivos, conseguirão votar para Joseph Biden em 2024.
Além do apoio americano a Israel na expulsão de mais de um milhão de pessoas do norte da Faixa de Gaza, se não fosse a oposição resoluta (até agora) de alguns governos árabes, a participação vergonhosa dos Estados Unidos teria incluído uma nova fase no processo de 75 anos de limpeza étnica dos palestinos na sua terra natal por Israel. Não chegamos a esse ponto e espero que nunca cheguemos. No entanto, embora até agora tenha sido impedido de ser cúmplice nessa atrocidade específica, o governo Biden já mergulhou de cabeça em um abismo de depravação moral ao conceder apoio material a Israel no massacre de milhares de palestinos e na transformação de Gaza em um lugar inabitável, tolerando a limpeza étnica no seu interior.
*Rashid Khalidi é professor de estudos árabes na Universidade Columbia. Autor, entre outros livros, de The Hundred Years’ War on Palestine: A History of Settler Colonialism and Resistance, 1917-2017 (Metropolitan Books).
Discurso proferido em 16 de novembro de 2023 na Universidade Columbia.
Tradução: Sean Purdy.
Publicado originalmente no site Mondoweiss.
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