Cenas dantescas

Blanca Alaníz, serie Cuadrados, fotografía digital y fotomontaje a partir de la obra Baindeirinhas de Iván Serpa, Brasilia, 2016.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES*

É indispensável fazer uma grande investigação sobre todos os atos antidemocráticos dos governos de Temer e Bolsonaro

Escrevo ainda sob forte comoção decorrente do ataque promovido por uma horda de fanáticos bolsonaristas, com viés fascista, contra o Estado democrático de direito em nosso país. De fato, a invasão da Esplanada dos Ministérios por uma ala mais radical da parcela da população que apoiou o candidato à presidência derrotado nas últimas eleições majoritárias mais tem a ver com uma delinquência amadora do que propriamente um movimento político organizado.

As cenas dantescas de pessoas iradas, desfiguradas pelo ódio mais nefasto, associadas à violência desmedida, só confirmaram os piores temores que rondavam o país, Brasília em especial, de que uma tentativa de golpe estaria sendo germinada nos intermináveis acampamentos de militantes da extrema direita. Com efeito, vários foram os alertas no sentido de que esses acampamentos, estranhamente tolerados pelo Exército, não consistiam em mero protesto de uma trupe desordeira. Felizmente a tentativa de golpe falhou! O pior parece ter passado. Para o bem de uma nação tanto sofrida quanto imprudente, e cuja maioria tem acreditado cada dia mais em dias melhores. No entanto, mais uma vez pagamos o preço por adotarmos a velha máxima de “fechar a porta depois de roubados”.

Peço licença aos leitores para enumerar algumas verdades que foram confirmadas por esse infeliz episódio, inédito na história desse país, de tentativa de tomada à força dos rumos do país por uma minoria antidemocrática. São elas:

Em primeiro lugar, todos devem ter em mente a fragilidade constante da nossa democracia representativa. Realmente, apesar da vitória da esperança de dias melhores na figura do presidente Lula, é fato que as alianças que ele firmou para garantir a eleição foram amplas demais, e que, sob o verdadeiro pretexto de unir o país novamente em bases democráticas, agregou muitos integrantes de primeira ordem do obscuro período posterior à tomada do poder pelo golpe de mercado contra a presidente Dilma Rousseff.

Em segundo lugar, é preciso ter em mira que o terceiro mandato do presidente Lula não será, de forma alguma, parecido com os dois primeiros, no quesito da tranquilidade institucional para promoção das mudanças que se fazem urgentes em todas as políticas desse país, especialmente nas áreas econômica, financeira, social e ambiental. Nessa toada, o presidente Lula e seu “núcleo duro” devem entender que não se faz política apenas com amor, mas com inteligência também. Sei que Lula é inteligente o suficiente para entender a gravidade do momento, mas o deve ser também para exercer seu papel de chefe de estado, mostrando firmeza em relação aos golpistas. Sem a aplicação dos rigores da lei contra essa massa despótica e os seus financiadores – que permanecem ainda escondidos -, Lula corre o risco de sofrer de um ataque pior em um futuro breve.

Até por conta das constatações anteriores, surge a certeza de que sem uma faxina nos postos chaves da República, Lula não conseguirá governar como pretende nesse, que deve ser seu último mandato. Para ser bem explícito, Lula não deveria permanecer nas mãos de figuras como o deputado Artur Lira, atual presidente de Câmara dos Deputados, muito menos do atual Procurador-Geral da União, Augusto Aras, ambos bolsonaristas de carteirinha. Se adotar a política do menor esforço, ou do menor dano colateral, Lula corre o risco de vir a sofrer nova tentativa de golpe, desta feita orquestrada nos moldes da que derrubou a presidente Dilma Rousseff, especialmente se o seu governo perder credibilidade junto a uma parcela significativa do seu eleitorado, seja pelo desgaste inerente ao desenrolar do mandato seja pelas ações de boicote que podem ser orquestradas na surdina pelos que hoje estão sendo poupados.

É indispensável fazer uma grande investigação sobre todos os atos antidemocráticos dos governos de Temer e Bolsonaro, não se limitando apenas aos manifestadamente ilegais. Nesse sentido, é preciso adotar medidas afirmativas contra as mudanças, ainda que legais, que se mostraram degradantes para os/as trabalhadores/as e o meio ambiente, como forma de garantir a credibilidade de um governo que já se provou genuinamente preocupado com o bem-estar da sua população (e nem tanto assim com o meio ambiente) no passado, mas que agora precisará reafirmar seu compromisso com a pequena maioria dos/as eleitores/as que o levou de volta ao poder.

Em complementação à constatação anterior, se faz necessário entender que é preciso acelerar a adoção de medidas urgentes em favor das classes menos favorecidas, a exemplo da retomada dos programas econômicos e sociais que fizeram o pais sair do mapa da fome em 2014, bem como implementar uma política verde de desmatamento zero, que passe para o mundo a mensagem definitiva do Brasil como um país na vanguarda da luta contra o aquecimento global. Deveras, sem a melhoria rápida e significativa das condições de vida da população mais carente desse país, Lula corre o risco de, assim como Dilma Rousseff, ficar à mercê da velha politicagem suja de gabinetes, que visa apenas o ganho privado, em prejuízo dos interesses nacionais.

Por fim, mas não menos importante, é preciso que Lula entenda, de uma vez por todas, que ele não é onipresente, nem muito menos eterno. Todos nós vimos que sua falta de visão política ou, o que é pior, sua ambição pessoal de retornar ao poder, o fez cometer um erro estratégico na indicação de Dilma Rousseff como sua candidata. Menos pela integridade moral dela, irretocável até hoje e recentemente reconhecida pelo seu próprio algoz, Michel Temer, e mais pelo erro de indicar uma pessoa que não possuía o traquejo político necessário para lidar com a população em momentos desfavoráveis e, mais ainda, com a classe política desse pais. A valer, quando os cenários interno e externo se deterioraram entre 2015/2016, ficou claro que Dilma Rousseff não possuía o carisma necessário para agregar as massas como seu mentor, nem a devida flexibilidade para contornar uma disputa política pelo poder, ainda que para tanto fosse preciso “perder os anéis para não perder os dedos”.

Portanto, as cabeças pensantes ao lado do presidente Lula precisam alertá-lo de que sem um/a sucessor/a que comungue dos seus ideais e que também possua representatividade junto ao povo, corremos o risco no futuro de perder novamente os avanços civilizatórios que certamente serão alcançados nesse seu terceiro governo, seja para algum/a candidato/a do mercado, eufemisticamente chamado de terceira via, seja, o que seria uma catástrofe, para o retorno da ideologia fascista.

*André Márcio Neves Soares é doutorando em políticas sociais e cidadania na Universidade Católica do Salvador (UCSAL).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
A fragilidade financeira dos EUA
Por THOMAS PIKETTY: Assim como o padrão-ouro e o colonialismo ruíram sob o peso de suas próprias contradições, o excepcionalismo do dólar também chegará ao fim. A questão não é se, mas como: será por meio de uma transição coordenada ou de uma crise que deixará cicatrizes ainda mais profundas na economia global?
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O ateliê de Claude Monet
Por AFRÂNIO CATANI: Comentário sobre o livro de Jean-Philippe Toussaint
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Donald Trump ataca o Brasil
Por VALERIO ARCARY: A resposta do Brasil à ofensiva de Trump deve ser firme e pública, conscientizando o povo sobre os perigos crescentes no cenário internacional
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES