Cenas dantescas

Blanca Alaníz, serie Cuadrados, fotografía digital y fotomontaje a partir de la obra Baindeirinhas de Iván Serpa, Brasilia, 2016.
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Por ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES*

É indispensável fazer uma grande investigação sobre todos os atos antidemocráticos dos governos de Temer e Bolsonaro

Escrevo ainda sob forte comoção decorrente do ataque promovido por uma horda de fanáticos bolsonaristas, com viés fascista, contra o Estado democrático de direito em nosso país. De fato, a invasão da Esplanada dos Ministérios por uma ala mais radical da parcela da população que apoiou o candidato à presidência derrotado nas últimas eleições majoritárias mais tem a ver com uma delinquência amadora do que propriamente um movimento político organizado.

As cenas dantescas de pessoas iradas, desfiguradas pelo ódio mais nefasto, associadas à violência desmedida, só confirmaram os piores temores que rondavam o país, Brasília em especial, de que uma tentativa de golpe estaria sendo germinada nos intermináveis acampamentos de militantes da extrema direita. Com efeito, vários foram os alertas no sentido de que esses acampamentos, estranhamente tolerados pelo Exército, não consistiam em mero protesto de uma trupe desordeira. Felizmente a tentativa de golpe falhou! O pior parece ter passado. Para o bem de uma nação tanto sofrida quanto imprudente, e cuja maioria tem acreditado cada dia mais em dias melhores. No entanto, mais uma vez pagamos o preço por adotarmos a velha máxima de “fechar a porta depois de roubados”.

Peço licença aos leitores para enumerar algumas verdades que foram confirmadas por esse infeliz episódio, inédito na história desse país, de tentativa de tomada à força dos rumos do país por uma minoria antidemocrática. São elas:

Em primeiro lugar, todos devem ter em mente a fragilidade constante da nossa democracia representativa. Realmente, apesar da vitória da esperança de dias melhores na figura do presidente Lula, é fato que as alianças que ele firmou para garantir a eleição foram amplas demais, e que, sob o verdadeiro pretexto de unir o país novamente em bases democráticas, agregou muitos integrantes de primeira ordem do obscuro período posterior à tomada do poder pelo golpe de mercado contra a presidente Dilma Rousseff.

Em segundo lugar, é preciso ter em mira que o terceiro mandato do presidente Lula não será, de forma alguma, parecido com os dois primeiros, no quesito da tranquilidade institucional para promoção das mudanças que se fazem urgentes em todas as políticas desse país, especialmente nas áreas econômica, financeira, social e ambiental. Nessa toada, o presidente Lula e seu “núcleo duro” devem entender que não se faz política apenas com amor, mas com inteligência também. Sei que Lula é inteligente o suficiente para entender a gravidade do momento, mas o deve ser também para exercer seu papel de chefe de estado, mostrando firmeza em relação aos golpistas. Sem a aplicação dos rigores da lei contra essa massa despótica e os seus financiadores – que permanecem ainda escondidos -, Lula corre o risco de sofrer de um ataque pior em um futuro breve.

Até por conta das constatações anteriores, surge a certeza de que sem uma faxina nos postos chaves da República, Lula não conseguirá governar como pretende nesse, que deve ser seu último mandato. Para ser bem explícito, Lula não deveria permanecer nas mãos de figuras como o deputado Artur Lira, atual presidente de Câmara dos Deputados, muito menos do atual Procurador-Geral da União, Augusto Aras, ambos bolsonaristas de carteirinha. Se adotar a política do menor esforço, ou do menor dano colateral, Lula corre o risco de vir a sofrer nova tentativa de golpe, desta feita orquestrada nos moldes da que derrubou a presidente Dilma Rousseff, especialmente se o seu governo perder credibilidade junto a uma parcela significativa do seu eleitorado, seja pelo desgaste inerente ao desenrolar do mandato seja pelas ações de boicote que podem ser orquestradas na surdina pelos que hoje estão sendo poupados.

É indispensável fazer uma grande investigação sobre todos os atos antidemocráticos dos governos de Temer e Bolsonaro, não se limitando apenas aos manifestadamente ilegais. Nesse sentido, é preciso adotar medidas afirmativas contra as mudanças, ainda que legais, que se mostraram degradantes para os/as trabalhadores/as e o meio ambiente, como forma de garantir a credibilidade de um governo que já se provou genuinamente preocupado com o bem-estar da sua população (e nem tanto assim com o meio ambiente) no passado, mas que agora precisará reafirmar seu compromisso com a pequena maioria dos/as eleitores/as que o levou de volta ao poder.

Em complementação à constatação anterior, se faz necessário entender que é preciso acelerar a adoção de medidas urgentes em favor das classes menos favorecidas, a exemplo da retomada dos programas econômicos e sociais que fizeram o pais sair do mapa da fome em 2014, bem como implementar uma política verde de desmatamento zero, que passe para o mundo a mensagem definitiva do Brasil como um país na vanguarda da luta contra o aquecimento global. Deveras, sem a melhoria rápida e significativa das condições de vida da população mais carente desse país, Lula corre o risco de, assim como Dilma Rousseff, ficar à mercê da velha politicagem suja de gabinetes, que visa apenas o ganho privado, em prejuízo dos interesses nacionais.

Por fim, mas não menos importante, é preciso que Lula entenda, de uma vez por todas, que ele não é onipresente, nem muito menos eterno. Todos nós vimos que sua falta de visão política ou, o que é pior, sua ambição pessoal de retornar ao poder, o fez cometer um erro estratégico na indicação de Dilma Rousseff como sua candidata. Menos pela integridade moral dela, irretocável até hoje e recentemente reconhecida pelo seu próprio algoz, Michel Temer, e mais pelo erro de indicar uma pessoa que não possuía o traquejo político necessário para lidar com a população em momentos desfavoráveis e, mais ainda, com a classe política desse pais. A valer, quando os cenários interno e externo se deterioraram entre 2015/2016, ficou claro que Dilma Rousseff não possuía o carisma necessário para agregar as massas como seu mentor, nem a devida flexibilidade para contornar uma disputa política pelo poder, ainda que para tanto fosse preciso “perder os anéis para não perder os dedos”.

Portanto, as cabeças pensantes ao lado do presidente Lula precisam alertá-lo de que sem um/a sucessor/a que comungue dos seus ideais e que também possua representatividade junto ao povo, corremos o risco no futuro de perder novamente os avanços civilizatórios que certamente serão alcançados nesse seu terceiro governo, seja para algum/a candidato/a do mercado, eufemisticamente chamado de terceira via, seja, o que seria uma catástrofe, para o retorno da ideologia fascista.

*André Márcio Neves Soares é doutorando em políticas sociais e cidadania na Universidade Católica do Salvador (UCSAL).

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