Por WAGNER SOUSA*
Considerações sobre a possibilidade de expansão do conflito no Oriente Médio
Os acontecimentos recentes no Oriente Médio, com a eclosão do conflito entre Israel e Hamas, após o ataque do grupo palestino a Israel, em 07 de outubro de 2023, com desdobramentos na fronteira israelense com o Líbano e recrudescimento nas hostilidades com o grupo Hezbollah, ataques dos Houthis, organização que domina o norte do Iêmen a navios no Mar Vermelho, além de bombardeios envolvendo Israel e os EUA na Síria e no Iraque, vão configurando um cenário preocupante de escalada que pode redundar em uma guerra regional.
A reação de Israel ao ataque sofrido tem sido devastadora, com uma matança indiscriminada, envolvendo alto número de civis palestinos, a esmagadora maioria das 23.469 vítimas, com estimados 40% destes de crianças e adolescentes (número atualizado até 11/01/24, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza) contra algo em torno de 1300 israelenses mortos nas ações do Hamas. Em termos humanitários o ataque israelense a Gaza é uma catástrofe: quase toda a população de mais de dois milhões de pessoas teve que deixar a sua residência, os palestinos não tem água potável, energia elétrica, internet, telefonia, os hospitais colapsaram ou funcionam de maneira muito precária e a entrega de suprimentos essenciais como comida e remédios se dá em quantidade muito aquém às necessidades. Fome e doenças atingem grande parte da população.
O Hamas tem o apoio iraniano, assim como o Hezbollah libanês, os Houthis iemenitas e grupos armados na Síria e no Iraque. Até o presente momento, contudo, nenhum ator desses mencionados interferiu diretamente no conflito Israel-Hamas, com exceção de alguns disparos de mísseis pelos Houthis a Israel, todos interceptados. A troca de artilharia entre Israel e o Hezbollah, com alguns bombardeios aéreos a posições do grupo libanês se mantém em “fogo brando”, embora tenha havido certo incremento, com aumentos dos disparos de ambos os lados e dos bombardeios aéreos israelenses.
O Hezbollah possui estimados 150.000 mísseis e foguetes e poderia disparar milhares em um único dia, atingindo seriamente as maiores cidades israelenses, com muitos danos físicos e mortes. Israel não teria, portanto, como se defender de um ataque maciço com o seu “Domo de Ferro”, o sistema de defesa anti-aérea. A previsível resposta avassaladora de Israel, com possível apoio dos EUA, inibe este cenário, assim como um envolvimento direto do Irã.
No Mar Vermelho se desenvolve uma nova frente com os Houthis do Iêmen, em apoio aos palestinos, desferindo ataques a todos os navios que, na avaliação deste grupo, possam ter qualquer relação com Israel. O Mar Vermelho é uma rota crítica da navegação de carga global, entre Ásia e Europa e também Ásia e América do Norte. Contornar a África pelo sul é uma opção mais demorada e cara. A concretização deste cenário eventualmente por tempo prolongado terá impactos negativos importantes na economia internacional, afetando estoques e preços. Algumas empresas já estão evitando o Mar Vermelho devido à falta de segurança.
Uma guerra regional não é o intuito de nenhum dos atores envolvidos. Mas a ameaça à “liberdade de navegação” pelos mares e oceanos do mundo, em especial em um ponto crítico como o Mar Vermelho, pode obrigar os norte-americanos a escalarem o conflito, embora a administração Joe Biden, com o relevante aspecto de tratar-se de ano eleitoral nos EUA, esteja buscando evitar este cenário. O ataque frontal a um dos seus grupos patrocinados do “crescente xiita” pode também fazer o Irã envolver-se diretamente. O Irã enviou um navio destróier em direção ao Mar Vermelho após os EUA atacarem embarcações dos Houthis, matando os seus tripulantes.
A estratégia regional iraniana e os ataques no Mar Vermelho
O Iêmen possui uma longa história de resistência a poderes externos e colonização que inclui os Império Romano, Otomano e Britânico e, mais recentemente, à resistência aos poderes regionais da Arábia Saudita e de Israel, visto como prepostos do poder hegemônico, os Estados Unidos. Os Houthis (termo que faz referência ao fundador do movimento, o clérigo Hussein al-Houthi) professam uma vertente muito antiga do islamismo, o zaidismo, uma dissidência do xiismo, majoritários apenas no Iêmen.
Este grupo iemenita, assim como Hamas, Hezbollah e outros grupos no Iraque e na Síria o chamado “crescente xiita”, são parte da articulação iraniana regional, na qual o país persa apoia, além destes atores, países como Síria e Iraque. No caso do Iraque a invasão norte-americana de 2003 e posterior deposição de Saddam Hussein (com a sangrenta guerra que vitimou, estima-se, mais de 700 mil iraquianos) transformou um país relativamente estável em palco de conflitos sectários. E o Irã, que travou guerra contra o Iraque nos anos 1980, passou a influir nos rumos do país árabe, também de maioria xiita, e tê-lo como aliado, na disputa regional de poder.
A partir de 2015 uma feroz guerra civil opôs os Houthis com o apoio iraniano, ao então governo central do Iêmen, apoiado pela Arábia Saudita e EUA. Em março de 2023 anunciou-se um acordo buscando a reatamento das relações diplomáticas entre o Irã e a Arábia Saudita, dois históricos rivais no Oriente Médio, acordo este, em protagonismo diplomático inédito, mediado pela China, país com estreitas relações econômicas com ambos.
Dentre os pontos do acordo, a pacificação do Iêmen, com a aceitação do status quo com o domínio Houthi de parte do Iêmen e compromisso iraniano de não mais financiar o grupo. Os Houthis conseguiram ter capacidade militar, com mísseis e drones, de atingir alvos na Arábia Saudita, o que ocorreu, como retaliação aos bombardeios sauditas no Iêmen. Este poderio militar certamente pesou na decisão realista dos sauditas de aceitar o domínio Houthi de parte do Iêmen.
Capacidade bélica que vem pondo à prova a segurança das embarcações de transporte e também militares no Mar Vermelho. A iniciativa dos Houthis o projeta como ator regional (e de certa maneira, global) e se encaixa na estratégia iraniana de confrontação a outro rival regional, Israel. O que se vê claramente é que os EUA, embora sigam sendo o ator político mais poderoso, e o que vem mais se movimentando diplomaticamente, não mais conseguem fazer valer suas preferências como anteriormente.
Mesmo no caso de Israel, embora conte com bilionário auxílio norteamericano na área de defesa, o país não tem atendido aos pedidos do governo Biden por “moderação”, ou seja, pela cessação de ataques indiscriminados que vitimam tantos civis palestinos. E além da seara diplomática, os ataques dos Houthis no Mar Vermelho, um espaço de alta relevância para o transporte marítimo e a economia internacional podem ser mais um indicativo de que o período histórico da Pax Americana, iniciado após a Segunda Guerra Mundial, em que um único ator estatal seria capaz de manter a “estabilidade global”, no limite pela força das armas, pode estar ficando para trás.
*Wagner Sousa é pós-doutorando em Relações Internacionais na Unesp.
Publicado originalmente no Observatório Internacional do Século XXI, n°. 3.
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