A rebelião dos manés – derrota provisória?

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Por LAYMERT GARCIA DOS SANTOS*

Considerações a partir do livro “8/1 A rebelião dos manés ou Esquerda e direita nos espelhos de Brasília”

1.

Ao que parece, nas últimas semanas, a percepção de alguns integrantes do governo Lula e de parte da esquerda institucional está mudando, em relação à atuação da extrema direita. Como se estivesse caindo a ficha de que o fascismo opera em termos de mobilização permanente e que, portanto, a vitória nas urnas não é garantia de paz social nem de uma neutralização da ameaça.

Muito pelo contrário, o exercício das forças fascistas nas mais diversas frentes – no Congresso, no mercado financeiro, no agronegócio, nas igrejas pentecostais, nas ruas e nos crimes contra os pobres e as mulheres – explicitam que há uma inversão da máxima de Clausewitz: a guerra deixou de ser a continuação da política por outros meios; hoje, o que vigora é que a política é a continuação da guerra.

Aos poucos, então, vai ficando cristalina a necessidade de ter de enfrentar a mobilização fascista com todos os recursos disponíveis. A ideia de que bastaria melhorar as condições de vida do povo através de recuperação de políticas públicas, de crescimento da atividade econômica, de retomada do desenvolvimento, de promoção dos direitos humanos… mostrou sua insuficiência. Passados um ano e cinco meses de governo, a sociedade continua dividida e envenenada, os efeitos das mudanças positivas seguem desapercebidos por parcelas importantes da população (segundo Jean Marc von der Weid, em virtude do alto preço dos alimentos), as agressões e o clima de ódio são estimulados diariamente como dantes, as campanhas de desinformação sistemática se renovam e se intensificam o tempo todo.

Não basta, portanto, procurar melhorar a comunicação do governo, tentar “esclarecer” uma população presa fácil das mais poderosas tecnologias de mobilização permanente, cujos interesses econômicos, políticos e ideológicos estão intimamente interligados. E a própria dificuldade renitente em se regular minimamente as redes sociais para buscar neutralizar o seu caráter tóxico já é indício do tamanho do problema. Seria preciso uma decisão política radical de enfrentamento da mobilização fascista. Mas, aparentemente, não há vontade ou força para tanto.

É nesse contexto que precisa ser apreciado o recente livro de Pedro Fiori Arantes, Fernando Frias e Maria Luíza Meneses, intitulado 8/1 A rebelião dos manés ou Esquerda e direita nos espelhos de Brasília. Muito já se escreveu, e se leu, sobre a escandalosa ocupação da Praça dos Três Poderes, uma semana depois da posse do Presidente Lula. Com certeza ainda há muitas questões no ar. Tenho, porém, a impressão de que os autores foram certeiros ao investigarem a participação dos populares bolsonaristas no episódio golpista do 8 de Janeiro. Porque demonstraram que ela não é nada óbvia, e só uma avaliação simplista a reduz à caricatura, que dificulta o entendimento do real papel desempenhado pelo “gado”.

2.

O livro deixa claro que os manés foram ao mesmo tempo cúmplices e vítimas da prolongada manipulação de massas fascista. Cúmplices porque se engajaram, literalmente, de corpo e alma na tentativa de golpe – nesse sentido, foram protagonistas ativos e, portanto, criminosos, por transgredirem a ordem estabelecida; vítimas porque, abduzidos por uma “realidade paralela”, não tinham o tirocínio político e jurídico da ilegalidade de suas ações, funcionando, assim, como mera bucha de canhão para interesses poderosos, que não eram deles.

Ora, é essa condição ambivalente que se torna objeto de análise. Os manés sabem o que estão fazendo, mas ignoram o caráter perverso do papel que lhes cabe dentro da lógica do golpe, que abarca políticos, empresários, militares, policiais, em suma a extrema-direita organizada – esta teria tudo a ganhar, caso fosse possível emplacar a vitória através do recurso à Garantia da Lei e da Ordem, validando uma interpretação fajuta do art. 142 da Constituição Federal.

Os manés se sentem heróis de uma guerra contra o establishment, acreditam piamente na pantomima canalha de Bolsonaro contra “o sistema”, desejam intensamente uma ruptura constitucional em favor de uma regressão colonial. E nem mesmo seu abandono pelo líder máximo e pelas “forças da ordem” os fará acordar para o fato de terem sido usados e abusados o tempo todo. São pobres coitados fazendo selfie na beira do abismo, imaginando que a batalha estava ganha com a ocupação e depredação consentidas das instalações dos Três Poderes da República.

Para demonstrarem essa condição ao mesmo tempo grotesca e miserável dos manés (que na sequência vão arruinar suas vidas quando o braço de ferro da lei e da ordem se abater sobre elas), os autores recorrem, logo no primeiro capítulo, ao conceito brechtiano de “distanciamento”. Tal recurso se impõe porque, do ponto de vista político e simbólico, historicamente, desde a Revolução Francesa, a tomada de palácios governamentais sempre foi obra de camadas populares insurretas visando à mudança de regime, isto é a revolução.

Mas tanto no ataque ao Capitólio pela massa trumpista quanto no ataque a Brasília pela massa bolsonarista, há uma inversão de sinal – agora são as massas radicalizadas de extrema-direita que praticam o assalto ao centro do poder estabelecido. Tal aberração suscita estranhamento. Como observam os autores, quem executou o feito não foram os sem-terra, sem-teto, povos indígenas, nem black-blocs, petistas, estudantes ou comunistas; a autoria foi dos autodenominados “patriotas”, “cristãos” e “cidadãos de bem”.

Daí a pergunta: “O que o ataque (…)revela sobre o Brasil contemporâneo? Como expõe a capacidade de pensamento e ação da esquerda e da direita, no sentido de atuar para mudar a história em seu favor/” A resposta será buscada à luz do “distanciamento”. Segundo Bertold Brecht, “distanciar um acontecimento ou um caráter significa antes de tudo retirar do acontecimento ou do caráter aquilo que parece óbvio, o conhecido, o natural, e lançar sobre eles o espanto e a curiosidade”.

Estranhando, os autores distanciam o acontecimento e, na distância, percebem como se deu, no Brasil, a inversão de papéis entre esquerda e direita, a partir das Jornadas de 2013, que selaram uma ruptura entre a esquerda institucional, no poder, e uma nova esquerda, insurgente e anticapitalista. Em seu entender, foi esse desencontro histórico que possibilitou a ascensão da extrema-direita e, com ela, o risco à democracia.

Não cabe aqui nos estendermos sobre os diversos acontecimentos que, desde então, foram aprofundando a tendência desencadeada em 2013. Mas importa notar que a inversão de papéis está na matriz da transformação que torna a direita insurgente, enquanto a esquerda se torna gestora do sistema, da conciliação, da manutenção da ordem e da pacificação.

Assim, o 8 de Janeiro explicita o jogo intrincado e perverso em que surgem os manés, auto-identificados como os perdedores de uma eleição dita fraudada, ou seja manés submetidos à “malandragem” dos ministros do STF, supostamente mancomunados com os “bandidos” do PT. Vale lembrar que o ataque a Brasília pelos “patriotas” em fúria foi convocado como “Levante dos Manés”. Nesse impulso, nesse “espantoso deslizamento semântico entre esquerda e direita”, escreveu Paulo Arantes, a extrema direita, mirando-se no espelho da esquerda, se viu como radical antissistema, adepta da “guerra insurrecional”.

3.

Nos capítulos seguintes, os autores vão pontuando como, de deslizamento em deslizamento, a evolução do processo foi tirando o “fazer a história” das mãos das classes populares e depositando-o nas mãos dos bolsonaristas. Cabe assinalar a influência que Olavo de Carvalho exerceu na dinâmica de apropriação indébita de símbolos, discursos, práticas e armas da luta de classes e povos, e sua conversão em instrumentos do repertório da extrema-direita.

Também vale a pena destacar as apropriações cínicas e debochadas do MBL, bem como a performance patética de Sara Winter e dos “300 do Brasil”, inspiradas em filmes de quinta categoria. Tudo isso, antes da invasão do Capitólio, em 6 de Janeiro de 2021, expressão máxima de levante da extrema direita, que iria se constituir no modelo a ser imitado pelo “Levante dos Manés”.

A insurreição vinha sendo preparada e alimentada desde antes da eleição e da vitória de Lula, conforme ficaríamos sabendo depois, com a revelação dos projetos de golpe de Jair Bolsonaro pela Operação Tempus Veritatis. Preparada e alimentada em duas esferas distintas, mas obviamente com intersecções. Em primeiro lugar, na esfera do poder e do dinheiro, mobilizando Jair Bolsonaro, o clã, assessores, políticos, especialistas em mobilização de redes, militares, pastores e empresários. O que talvez pudesse ser caracterizado como os mandantes do golpe.

Em segundo lugar, na esfera do “gado”, dos manés, da massa de manobra convocada para dar à insurreição o seu caráter “popular”. Ao que as investigações ainda em curso indicam, as duas esferas entrariam em cena em momentos diferentes: primeiro os manés,acampados em frente aos batalhões das Forças Armadas, instaurariam a desordem em Brasília e em outros lugares; na sequência, militares e policiais interviriam, restabelecendo a “ordem” e, com ela, instaurando o golpe fascista.

Ocorre que o golpe falhou, por razões que não estão esclarecidas, pois ainda continua parcialmente nebulosa para a opinião pública a conduta criminosa dos atores envolvidos na esfera do poder e do dinheiro. O segundo momento não aconteceu, a GLO não foi proclamada, as Forças Armadas não se posicionaram, o ex-presidente ficou em silêncio em seu refúgio na Disney…

E os manés, feito patetas, se viram sozinhos dentro de uma armadilha, pois agora seus protetores militares os entregavam à polícia, que os levava para a Papuda e a Colméia, onde posteriormente seriam enquadrados como “terroristas”.

Ora, tal criminalização conta com o apoio entusiasmado da esquerda institucional que, já tendo recalcado sua fração insurgente, agora pode aderir à repressão dos subversivos. Fecha-se assim, sob a aparência de um círculo virtuoso, o círculo vicioso. Pois os espelhos quebrados de Brasília configuram tanto a insurgência da extrema direita quanto a emasculação da esquerda institucional e rebelde; a institucional por não ter força até agora para obrigar os militares a responderem pelo envolvimento institucional das Forças Armadas, que saem ilesas, entregando as “ovelhas negras”, mas buscando manter incólume a sua pretensão de “poder moderador” acima dos Poderes da República; e a esquerda rebelde por não conseguir articular minimamente uma resposta à altura da ameaça, incapaz de sair da inércia.

Assim, a “vitória” da democracia no pós-8 de Janeiro é mais do que relativa. Como se o golpe tivesse sido apenas suspenso, deixando, entretanto, pouco comprometida a máquina infernal que pode voltar a ser acionada num momento mais propício. Daí a pergunta inquietante dos autores, na parte final do livro: Depois de Janeiro, a paz será total? Em seu entender, ela só seria viável se o bolsonarismo for desarticulado na esfera dos mandantes; mas os indícios de que isso acontecerá são muito tênues.

Por outro lado, como está muito bem analisado nos últimos capítulos, a punição exemplar apenas dos manés pode ensejar o que os autores designam como “punitivismo às avessas” – afinal, a pesada criminalização dos “terroristas” pode um dia se voltar contra os verdadeiros contestadores da ordem estabelecida, isto é, aqueles que, à esquerda, querem ir além da defesa da ordem neoliberal injusta e garantidora da reprodução da espantosa desigualdade vigente.

Por isso, na última página do livro, escrevem os autores: “O governo Lula 3 é um tampão contra a ascensão neofacista no Brasil, mas se não lutarmos pela justiça social e por futuros emancipatórios, seguiremos submetidos à pacificação pró-mercado, ao novo punitivismo às avessas e logo abriremos o caminho para que a extrema-direita se reorganize e retome o comando”.

Com efeito, nem bem escreveram estas palavras de advertência, e já se vê no Congresso Nacional, na insolência de certos militares, na desenvoltura dos deputados bolsonaristas, na eterna cruzada neopentecostal, na idolatria de Elon Musk, os sinais de retomada da mobilização permanente…

*Laymert Garcia dos Santos é professor aposentado do departamento de sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Politizar as novas tecnologias (Editora 34).

Referência


Pedro Fiori Arantes, Fernando Frias e Maria Luíza Meneses. 8/1 A rebelião dos manés ou Esquerda e direita nos espelhos de Brasília. São Paulo, Hedra, 2024, 184 págs. [https://amzn.to/3wfyWpQ]


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