Por IVANA BENTES*
Como a série da NetFlix parte de traumas e situações de abuso para encarar a masculinidade em crise e sair dos clichês psicológicos
Fazia tempo que uma série não produzia tantas análises e derivas, “pegando” o espectador por sua densidade e complexidade para tratar temas difíceis. O roteiro e os próprios personagens de Bebê Rena fazem sempre o espectador sair da sua zona de conforto mental e explodir os clichês sobre “stalkers”, relações abusivas, relacionamentos tóxicos e de simbiose, ou sobre nossa própria sexualidade.
A complexidade, humor, sarcasmo e inteligência dos dois abusadores e do próprio personagem de Donny Dunn, o ator Richard Gadd, produtor e criador da série da NetFlix e que de fato viveu uma história obsessiva com uma mulher que o persegue, torna tudo catártico e envolvente, o que é acentuado pelo tom de confissão, com a história sendo narrada na primeira pessoa, e como se fosse uma autoanálise a quente do protagonista.
A série não segue um manual de clichês psicológicos, e se ainda se escora nos traumas do passado dos personagens para tentar explicar o presente, vai além. Não damos conta de tudo que sentimos ou de todas as nossas decisões, algo nos escapa irremediavelmente. “Por que não a denunciou antes?” Pergunta o policial a Donny, sobre sua perseguidora. Resposta: “Não sei!”. Nessa falta de resposta podemos dar não uma, mas mil razões para o que é narrado.
Nessa mesma cena, quando o policial pergunta se Donny tem um relacionamento com Martha, sua perseguidora, entendemos o misto de vergonha, sentimento de culpa, desolação e dúvida no seu rosto. Perceber-se como “vítima” e “em relação” com seu algoz, pode ser algo subjetivamente tão doloroso quanto a própria violência psicológica e sexual sofrida, e ser homem nesse caso não ajuda. Porque os homens são justamente o sujeito socialmente, historicamente e estatisticamente reconhecidos como os que assujeitam e violam de fato, e de forma naturalizada, nas sociedades patriarcais.
Os homens ficam em silêncio não apenas quando abusam, o mesmo machismo e as expectativas em torno da masculinidade fazem com que fiquem em silêncio quando são abusados. Daí a dificuldade de Donny de admitir o que está acontecendo, seja na sua relação com Martha, uma mulher que encarna o estereótipo da perseguidora, ou com seu mentor abusador. Só depois que a situação escala e passa envolver sua família, seus relacionamentos, passa a envolver terceiros, é que ele decide pedir ajuda.
Bebê Rena causa impacto por sua narrativa intimista e subjetiva, funcionando como uma incrível fala confessional e analítica em um mundo em que o número de vítimas de violência sexual que não registram o crime, não buscam apoio, não quer falar sobre o que aconteceu é impactante.[i]
Só muito recentemente, em 2017, vimos movimentos como o do #MeToo que encorajava mulheres que sofreram assédio sexual narrarem suas histórias publicamente, usando as redes e produzindo um impacto para além de Hollywood, com uma proliferação de narrativas de assédio. E o que vimos foi a eclosão massiva de narrativas: desde micro acontecimentos soterrados nas memórias, nas sessões de terapias, os “segredos” familiares abafados, até escândalos envolvendo celebridades com repercussão mundial.
Bebê Rena é impactante justamente porque conta uma dessas histórias e coloca um homem no centro da roda, um homem cuja masculinidade também está em crise, um homem fragilizado com quem as mulheres podem se identificar, se revoltar e também sofrer com ele.
Um homem que passa de virtual predador sexual para abusado é algo que o machismo silencia e não se inscreve na narrativa da masculinidade “hétero top” e de seus estereótipos.
Em Bebê Rena, esse machismo e as pressões sociais, aparecem nas piadinhas sexuais dos amigos de bar de Donny, que se divertem com a presença diária de Martha e incentivam Donny a brincar e a se divertir com a obsessão de Martha pelo rapaz, o que faz com que o personagem demore para perceber o que há de problemático nesse vínculo.
Fabulação delirante e duplo vínculo
Também a figura de Martha, a mulher astuta e manipuladora, ao mesmo tempo no comando e super vulnerável é impactante. Martha está apaixonada e siderada por um vínculo, por uma relação idealizada em que Donny cumpre apenas um papel “auxiliar”.
Ele não precisa fazer nada, ou pouco, além de lhe oferecer aquela primeira xícara de chá no bar quando ela diz que não tem dinheiro para pagar. E ela passa a voltar todo dia para tomá-la e construir um relacionamento no balcão do bar que prescinde de efetivação. Aqui temos um modo muito específico de ideação que perpassa e caracteriza o mundo das redes, os relacionamentos por aplicativos e que levado para as relações efetivas produz desajustes e frustrações.
Uma das características de Martha é a fabulação delirante dessa relação, que ela vai criando com detalhes, humor, ironia, com sua “risada incrível e desconcertante” e, na história real, “mais de 41.071 e-mails, 350 horas de mensagens de voz, 744 tweets, 46 mensagens no Facebook e 106 páginas de cartas”, segundo o ator Richard Gadd.
Uma compulsão narrativa e obsessiva, que se em Bebê Rena está direcionada para o personagem de Donny, podemos constatar que atravessa também nossa compulsão contemporânea nas redes sociais em narrar e buscar vínculos e atenção de forma serial e automatizada.
Martha é obcecada por celebridades, se apresenta como advogada de famosos, apesar de não ter dinheiro para um café, tenta viver em um mundo paralelo que posta no seu Facebook e passa a tratar, elogiar, mimar Donny como um “bebê rena para amar e proteger”. E ele gosta disso inicialmente e mesmo depois de descobrir que se trata de uma stalker, que responde criminalmente por assédio a outros homens, se sente no domínio da situação ao receber elogios e ver no espelho das palavras de Martha seu narcisismo afagado. Um espelho que vai se quebrar e se estilhaçar produzindo uma situação de terror psicológico.
Essa característica de Martha de passar do afago para a ameaça é a do duplo vínculo, o dilema teorizado pelo teórico Gregory Bateson nos anos 1950, em que se expressa uma ou duas mensagens conflitantes, onde uma nega a outra, e quem a recebe mesmo que responda positivamente a uma delas estará em conflito em relação a outra. Ou seja estará automaticamente errado, independente da resposta.
E vemos Donny tentar driblar as expectativas de Martha, entrando e saído do seu jogo e se vendo cada vez mais enredado em uma teia em que não há uma resposta certa afetiva ou relacional, a não ser o próprio jogo. Esse duplo vínculo é a forma de produzir controle, assujeitamento, sem uma coerção ou violência explícita, até que se torne insustentável. Ao romper esse duplo vínculo a expressão de ódio, raiva e abandono e desejo de punição se manifesta. E vemos isso acontecer em momentos distintos tanto com Martha quanto com Donny.
A série também não aposta em maniqueísmos, bons e maus, pessoas “normais” ou monstruosas etc., mas no que seria quase um olhar clínico e empático em que a moral pode ser suspensa por um tempo para tentar entender o sofrimento do outro e certa confusão de sentimentos e ações.
As reações de Donny passam da empatia, para a raiva, acolhimento e dependência da sua perseguidora, que por sua vez oscila entre muitos extremos A personalidade afetiva e odiosa da personagem é impressionante, desprezível e ao mesmo tempo envolvente e mesmo comovente: Martha, a extraordinária atriz Jessica Gunning, deixa o protagonista e o expectador confusos.
Psicopatologia social e redes digitais
E parece que essa confusão transborda a série e chega na realidade e nas redes. Não deixa de ser sintomático ver os espectadores de Bebê Rena se comportarem como stalkers também, ao darem uma de detetives tentando localizar os personagens da série na vida real. Quando o próprio ator e criador da série, Richard Gadd, preferiu não fazê-lo.
A síndrome de juízes do mundo, nas redes e “perseguidores”, o ímpeto de linchamentos por minuto, é algo que deveríamos cuidar. Um estranho sintoma social genérico hoje, uma psicopatologia social?
Um filme, uma série, pode ajudar pessoas em estado de sofrimento? Acredito que sim. Bebê Rena também é corajosa ao expor um estupro ocorrido entre homens adultos e com um estuprador que é fino, requintado, um estupro que é a expressão do jogo de sedução e poder no meio televisivo, mas que poderia se passar em qualquer outro meio profissional.
Apaixonamento entre homens e abuso
A série joga luz sobre os mais complexos sentimentos nas relações que envolvem admiração, mentoria, reciprocidade intelectual, um tipo de assujeitamento e dependência, em que a parceria, o prazer da criação conjunta, a “brodagem” masculina emburaca em um comportamento que escala para um estupro por seu intrigante e charmoso mentor Darrien, interpretado de forma admirável por Tom Goodman-Hill.
A relação de Darrien com Donny se mostra orgânica, afetuosa, afinal ele encontra alguém que vê uma de suas apresentações fracassadas como comediante e começa efetivamente a ajudá-lo com o texto, com as piadas, com todo um apoio afetivo e intelectual irresistível.
Um tipo de relação que vemos se repetir muitas vezes no meio acadêmico (as relações com mentores, orientadores, professores), no meio artístico (a cumplicidade entre diretores e atores, as parceiras com o roteirista, a dependência de um produtor etc.) e se espraiar por mil outras situações.
A série tem o cuidado de mostrar esse fascínio e “apaixonamento” entre os dois homens que vai se tornando um abuso continuado e não perceptível em um primeiro momento (o uso escalado de drogas como sinônimo de cumplicidade e confiança), até o real abuso sexual traumático.
A relação com Darrien também produz em Donny para além do “ódio, raiva e confusão” pelo estupro, uma busca em desvendar sua “verdadeira” sexualidade, experimentando sites pornográficos e encontros com pessoas de todos os gêneros. “Eu acabava em situações em que arriscava ser estuprado de novo” e vai se arriscando até constatar que seu desejo “mudou”.
A raiva e confusão de Donny é descobrir que ao ser estuprado por um homem abriu também uma deriva e busca que o tira da sua heteronormatividade e o roteiro foge de uma relação óbvia de causa e efeito: “Comecei a sentir uma confusão sexual angustiante dentro de mim. Achei que passaria, mas virou uma insegurança, que virou uma loucura furiosa. Eu não sabia se sentia isso por causa dele ou se lá no fundo sempre senti”.
No meio desse turbilhão, o roteiro traz mais um elemento que complexifica a investigação de Donny em torno do seu desejo. Donny navega sua confusão e dor enquanto tenta simultaneamente ter e esconder um relacionamento com uma mulher trans, Teri. Mais uma vez o duplo vínculo: o desejo e a denegação do desejo: amar Teri e envergonhar-se dela.
A relação de Donny com uma mulher trans, Teri, acaba replicando alguns comportamentos de Martha, ele também mente, inventa outra profissão, esconde que é comediante e que trabalha em um bar. Também não consegue assumir o relacionamento e tenta escondê-la em público. Donny se sente confuso sobre sua sexualidade e tem medo. Acha Teri em um site de relacionamentos para pessoas trans.
Donny inventa um “perfil”, um nome e emprego fictício nesse site, inventa um personagem. Atitudes comuns hoje, em um mundo mediado pelas redes, aplicativos de relacionamentos, em que podemos mostrar algumas coisas e esconder outras. Ou simplesmente mentir para navegar de forma anônima por outros mundos. “Eu me odiava por isso, mas não poderia nem pensar em ser descoberto”, escreve, confessando sua confusão e medo de ser visto com uma mulher trans.
Teri, além disso é uma terapeuta e Donny se apaixona por ela. Na série, as duas mulheres, Martha e Teri, de formas muito distintas, funcionam como esse detonador e desbloqueador de traumas e frustações, mas também como validação de uma investigação sobre a sua própria sexualidade.
Martha é a “louca”, o clichê da mulher possessiva, ciumenta, doentia na sua dependência, mas que valida sua heteronormatividade com todos os clichês do amor romântico padrão tornados hiperbólicos e tóxicos. Martha, mesmo com atitudes doentias, é a ilusão de um relacionamento normativo, que junto com os amigos do bar, “misóginos comuns e heteronormativos” afastavam o desejo por outras sexualidades.
“Quando Martha apareceu, toda aquela confusão desapareceu” (…) “Martha me viu como eu queria ser visto”.
O mais comovente em Bebê Rena é esse impulso de restituir a complexidade das coisas e das relações A série deixa o espectador se sentir inteligente, completando com suas próprias vivências ou se colocando em pontos de vista e pontos de existência pouco usuais. As perguntas que Donny se faz são perturbadoras, inclusive sobre a construção da sexualidade e do desejo, uma construção que inclui abusos, violações dos corpos, relações assujeitantes. Bebê Rena não “se livra” do problema denunciando Martha a polícia. Da mesma forma que estranhamente não denuncia o seu mentor Darrien.
A série impacta o espectador porque seu protagonista decide “viver com o problema”, ou seja, lidar com os dois abusos de forma muito distinta e singular, transformando um trauma, ou traumas, experiências de sofrimento e confusão mental, em uma investigação sobre sua sexualidade, uma linha de fuga.
*Ivana Bentes é professora titular da Escola de Comunicação da UFRJ. Autora, entre outros livros, de Mídia-Multidão: estéticas da comunicação e biopolíticas (Mauad X) [https://amzn.to/4aLr0vH]
Nota
[i] No Brasil, dos 822 mil estupros por ano estimados ou dois por minuto, segundo o Ipea, majoritariamente contra mulheres, apenas 8,5% chegam à polícia e 4,2%, ao sistema de saúde. https://revistagalileu.globo.com/sociedade/noticia/2023/03/brasil-tem-822-mil-estupros-por-ano-ou-dois-por-minuto-estima-ipea.ghtml
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