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O jogo de ganha-ganha

Clara Figueiredo, a falsa escolha, fotomontagem digital, 2020
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Seja cara ou cora, o ministro da Economia e o presidente do Banco Central ganham em ambas as faces da moeda

A primeira semana de outubro de 2021 se iniciou com “O Mundo” (sic) sem comunicação digital. Cerca de 2,9 bilhões de pessoas ficaram sem acesso ao WhatsApp e às redes Instagram e Facebook por uma falha em manutenção de rotina em seu data center. O volume de usuários mensais de seus serviços saltou de 5,2% da população mundial, em 2009, para 35,9%, em 2020, segundo dados da consultoria Statista.

O pior apagão da história da rede social provocou uma queda de 4,89% (de US$ 343/ação para US$ 326/ação) nas ações do Facebook na segunda-feira. Equivaleu uma perda de valor de mercado de US$ 47,3 bilhões. A big tech não se recuperou totalmente, no dia seguinte, embora suas ações tenham fechado em alta de 2,06% (US$ 333/ação).

Antes, seu valor de mercado era US$ 920 bilhões ou cerca de 2/3 do PIB do Brasil. Em poucas horas, a fortuna pessoal de Mark Zuckerberg, cofundador e CEO do Facebook, encolheu quase US$ 7 bilhões. Com US$ 120,9 bilhões, passou a ocupar o 5º lugar no ranking de maiores fortunas mundiais, atrás de Bill Gates, da Microsoft.

O episódio, mais uma vez, revela a volatilidade da avaliação de riqueza acionária por “expectativas dos acionistas a respeito das próprias expectativas”. Qualquer factoide leva ao acionamento do “stop loss”, isto é, para logo a perda com a venda das ações para as recomprar logo adiante com a cotação bem mais baixa, registrando um ganho de capital.

Esse comportamento de manada, baseado em impressões, sem maior análise dos fundamentos microeconômicos, setoriais ou macroeconômicos da empresa, revela uma diferença fundamental entre a economia de mercado de capitais e a economia de endividamento, seja público, seja privado. A possibilidade de acumulação de riqueza pessoal, ao conduzir o rebanho de acordo com seus interesses, é muito maior naquela.

Por exemplo, o valor total dos acordos globais de Fusões e Aquisições encerrou o terceiro trimestre de 2021 em US$ 3,8 trilhões, segundo dados da Bloomberg. Com isso, o volume em 2021 está a apenas algumas centenas de bilhões de dólares de ultrapassar o recorde anual de US$ 4,1 trilhões estabelecido em 2007.

Em conjuntura de crise mundial, com péssimos fundamentos econômicos, as transações com aposta em tecnologia lideram, pois as empresas de todos os setores adaptam seus negócios para a Era Digital. Esse objetivo de obter acesso à tecnologia disruptiva por meio de aquisições tem estimulado a atividade na faixa de US$ 1 bilhão a US$ 10 bilhões.

Os rendimentos dos bônus do Tesouro dos EUA subiram, com os investidores antecipando o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) poderá elevar o juro básico para conter a alta da pressão inflacionária no ano: 5,3% lá. Quando os juros pagos em novos títulos de dívida pública se elevam, caem os preços dos títulos em circulação com remuneração menor de juros.

As perdas nas duas grandes classes de ativos (ações e títulos de dívida pública) levaram a uma queda de 3,5%, em setembro de 2021, nas carteiras de investimentos típicas, nos EUA, com a proporção de 60% em ações e 40% em bônus. O mix 60/40 não sofre uma perda tão grande desde a queda de 5% no crash de março de 2020, início da pandemia.

A estratégia 60/40 revela participação majoritária em ações com exposição ao risco de empresas com boas perspectivas de lucros e dividendos. Em contraparte dessa renda variável carrega-se um percentual menor em renda fixa de risco soberano. Essa seleção da carteira de ativos atua com proteção compensatória, quando a elevação de juros provoca flutuações no mercado de ações.

Na década de 2010, nos EUA, o portfólio 60/40 proporcionou um retorno anualizado de 10,2%. No ano passado, rendeu aos investidores um ganho de 15,3%.

Segundo dados da Meta Asset, o mercado de ações brasileiro é pequeno, com a capitalização das empresas abertas representando somente 70% do PIB contra 190% nos EUA. Porém, com a queda da Selic até sua fixação em 2% aa, no ano passado, o comportamento de manada de fuga da renda fixa para a renda variável elevou o número de investidores PF na B3 de 814 mil em 2018 para 3,97 milhões em setembro de 2021.

As participações em valor dos investidores pessoas físicas se elevaram de 18,2% em 2019 para 21,3% em 2020, mas já caiu para 19,5% na média mensal do ano corrente até 30/09/21. Em contrapartida, as dos investidores institucionais caíram nesses três anos: 31,5%-27,3%-25,6%. E as dos investidores estrangeiros subiram: 45,1%-46,6%-49,5%.

Com a administração de recursos de terceiros, os fundos de investimento somam R$ 6,8 trilhões de patrimônio ou 85% do PIB brasileiro. Em janeiro de 1995, o volume investido em fundos de renda fixa correspondia a 84% do total, enquanto o montante aplicado em fundos de renda variável alcançava só 2%. Atualmente, este alcança 10%.

O Brasil está muito abaixo dos padrões internacionais quanto ao investimento em ações. Na Europa, em média, a participação dos fundos de ações no total chega a 30%, enquanto nos EUA esse número atinge 55%. Este país parece ter a única verdadeira Economia de Mercado de Capitais no mundo.

Os investidores brasileiros, em geral, optam pela acumulação de reservas financeiras em renda fixa, dada a disparatada taxa de juro brasileira face às do restante do mundo. O ano passado foi uma exceção para confirmar a regra.

Com a sinalização da tendência de queda da Selic, o Ibovespa atingiu 115.645 pontos em 2019 (variação de 31,6%), mas no ano do “pandemônio da pandemia” não subiu tanto: 119.017 (2,9%). Neste ano, até 01/10/21, já caiu para 112.900 (-5,1%).

Na véspera do caso “apagão do Whatsapp” foi revelada por veículos como a revista Piauí e o jornal El País, participantes do projeto do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ, os documentos da Pandora Papers, investigação sobre paraísos fiscais, promovida pelo consórcio. Em 2015, o ministro da Economia do Brasil tinha US$ 9,5 milhões em um deles. Com sua política econômica, provocadora de depreciação da moeda nacional, sua aposta em dólares vale aproximadamente R$ 51 milhões em valores atuais. O conflito de interesses é tão grave como o do presidente do Banco Central do Brasil (BCB), responsável em última análise pela política cambial brasileira.

No jogo de “ganha-ganha”, eles fizeram um hedge cambial ao ficarem “comprados” em dólares e “vendidos” em reais. “Vamos combinar”: com o Conselho Monetário Nacional (CMN), ao qual o BCB se subordina, reduzido aos dois, caso eles determinem a elevação da Selic, aumentam suas fortunas aplicadas no Brasil, caso permitam a depreciação da moeda nacional, aumentam seus depósitos em dólares no exterior.

Tais como especuladores do mercado financeiro, conservam, deliberadamente, suas posições de câmbio abertas: vendem divisas nas quais antecipam depreciação e compram divisas para as quais antecipam apreciação. A especulação consiste em deter divisas estrangeiras na esperança de realizar ganho cambial em data posterior. Nada melhor, para esse resultado, “sacrificar-se pessoalmente em prestar serviço público para o bem do País”… (risos).

Uma Economia de Mercado de Capitais, sonho da equipe neoliberal do ministério da Economia no Brasil, é distinta de uma Economia de Endividamento Público ou Bancário. Lá nos States, juro baixo provoca bolha de ativos e maior concentração da riqueza. Aqui, no ano passado, houve um arremedo disso no ano passado. Resultado: fuga da renda fixa para ativos de risco: ações e… dólar!

Em seu livro recém-lançado nos EUA, Engine of Inequality: The Fed and the Future of Wealth in America [Motor da Desigualdade], Karen Petrou contesta a sabedoria keynesiana: quanto mais as taxas permanecem ultrabaixas, a economia não voltará a crescer, mas sim a desigualdade social continuará crescendo. No início de 2021, o 1% mais rico dos americanos detinha 32% da riqueza do país, seu nível mais alto desde o início desses registros em 1989. Os 50% mais pobres, por sua vez, detinham apenas 2% da riqueza do país.

Desde o início de 2020, os 50% mais pobres norte-americanos ganharam US$ 700 bilhões em riqueza. No mesmo período, o 1% mais rico ganhou US$ 10 trilhões.

Com fatos e argumentos, Petrou defendeu a hipótese em seu livro: o Fed controla o fluxo de dinheiro – e ele flui para os ricos. Os ativos, retirados pelo Fed da economia como parte do QE [Flexibilização Quantitativa ou afrouxamento monetário], estão repostos em moeda circulante: US$ 8,1 trilhões ou cerca de 1/3 do PIB norte-americano.

Embora o enorme portfólio, baseado em QE do Fed, tenha evitado inicialmente um caos econômico ainda pior, quando as crises financeiras de 2008 e 2020 aconteceram, seus benefícios ao longo do tempo foram dez vezes maiores para os preços do mercado de ações. Sem projetos governamentais, não colaboraram para a recuperação econômica.

Taxas de juros ultrabaixas destinam-se a estimular o crescimento da renda e emprego. Mas param de ter efeito benéfico quando caem tanto a ponto de distorcerem os incentivos à reserva financeira dos mais pobres em renda fixa. Em vez disso, direcionaram o fluxo de dinheiro para o investimento especulativo, como em ações ou Bitcoin. Empresas se capitalizam, recompram ações, mas não investem na produção.

Muitos americanos possuem ações, mas a maioria das ações (54%) pertence a 1% e grande parte do restante aos 9% seguintes. Karen Petrou informa 86% delas estarem em mãos dos 10% mais ricos nos Estados Unidos.

Quando o ministro da Economia e o presidente do Banco Central do Brasil tomaram posse, no dia 02/01/19, a cotação do dólar estava em R$ 3,86. No dia 01/10/21, antes do escândalo, estava em R$ 5,39. Na sexta-feira seguinte (08/10/21), já atingia R$ 3,51, ou seja, no “jogo de cara ou coroa”, eles ganham em ambas faces da moeda.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Política e Planejamento Econômico.

Publicado originalmente no Jornal GGN.

 

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