O voto dos evangélicos

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Rubens Pinto Lyra*

A perplexidade face à opção por Jair Bolsonaro, em desacordo com os princípios do cristianismo, torna necessário examinar os fatores psicossociais envolvidos nessa escolha.

Sempre identifiquei como virtude cardeais do cristianismo a caridade, o amor ao próximo, a busca da Justiça, a solidariedade com os pobres e oprimidos, acompanhadas da denúncia da injustiça, do luxo, da ostentação, do egoísmo e da intolerância.

Dessa forma, não são poucos os que, como eu, até hoje, se interrogam sobre as razões pelas quais uma parte expressiva do eleitorado cristão – no caso, a maioria evangélica – pôde votar, para o exercício do cargo máximo da Republica, em um candidato que, mesmo tendo fugido dos debates, nunca deixou de proclamar, alto e bom som, sua simpatia por regimes que torturaram, mataram ou perseguiram milhares de brasileiros. Voto que contribuiu, decisivamente, para a vitória do Mito.

Lembremos que Bolsonaro manifestou-se sadicamente, na votação do impeachment de Dilma Rousseff, tripudiando sobre o sofrimento experimentado pela ex-Presidente, no período em que esteve presa durante o regime militar. Ele o fez ao exaltar, na oportunidade, a figura do torturador de Dilma, o Coronel Brilhante Ustra – o que mais se destacou, durante a vigência da ditadura, nessa repulsiva prática.

O ex- capitão também não escondeu suas posições sobre os direitos humanos, por ele sistematicamente criticados, nem disfarçou, em diferentes ocasiões, atitudes agressivamente machistas. E também externou concepções regressivas, em matéria social, ao defender a falsa alternativa entre diminuição de direitos sociais ou desemprego.

A perplexidade face à tão chocante escolha torna particularmente oportuno o estudo dos fatores psicossociais do voto depositado pelos evangélicos. Entendemos que os condicionamentos psicológicos, no que se refere a esses fieis, não são estranhos à doutrina dos dois maiores ícones do protestantismo: Martinho Lutero e João Calvino – semelhantes, na questão em análise, a despeito de suas muitas diferenças doutrinárias. Esses teólogos enfatizam a impotência do individuo face aos insondáveis desígnios do Senhor. Para eles, apenas a vontade divina determina a vida das pessoas e dos acontecimentos históricos.

Calvinistas e seguidores de Lutero – mas não apenas estes – transferiram para o plano político, nas eleições presidenciais de 2020, esse sentimento de submissão incondicional, em momento de crise e de desesperança. Acreditavam que somente um demiurgo poderia evitar a derrocada econômica e social: o Mito, tal como o Füher, na Alemanha, e o Duce, na Itália.

Com efeito, para luteranos e calvinistas, mesmo o pior tirano não pode ser contestado: se governa, é porque Deus quer. Nas palavras de Lutero, citadas por Fromm: “Deus prefere aguentar a continuação de um governo, por pior que seja, do que deixar a ralé rebelar-se, não importa quão justificada ela se ache para fazê-lo” (Fromm:1970, p.74).

Essa mesma visão fatalista, de forma ainda mais acentuada, está presente em Calvino     para quem “os que vão para o Céu não o fazem, absolutamente, por seus méritos, assim como os condenados ao Inferno o são simplesmente porque Deus assim o quis. Salvação, ou condenação, são predeterminações feitas antes do homem nascer” (Calvino:1928).

Tais concepções, que negam radicalmente a autonomia do indivíduo, abriram, nolens volens, o caminho para sua submissão às autoridades seculares detentoras do poder de Estado. Estas, na atualidade, têm preponderantemente pautado suas políticas nos exclusivos interesses do capital. Elas visam à desconstrução do modelo socialdemocrata de Estado (o de Bem Estar Social) e sua substituição pelo “Estado mínimo”, mero instrumento da política neoliberal das classes dominantes.

As concepções supramencionadas se afinam com as das mais destacadas igrejas evangélicas – pentecostais ou neopentecostais – inspiradas na chamada Teologia da Prosperidade, que valorizam o sucesso material, o acúmulo de riqueza e soluções puramente individuais para os problemas sociais. Essa adequação nem sempre se dá de forma consciente. Mesmo para os reformadores religiosos em comento teria sido inaceitável a ideia de que a vida do homem viria a transformar-se em meio para alcançar fins econômicos.

Na dicção de Fromm: “Conquanto o seu modo de encarar as questões econômicas fosse tradicionalista, o destaque dado por Lutero à nulidade do indivíduo contrariava essa concepção, abrindo caminho para uma evolução em que o homem não só deveria obedecer às autoridades seculares, mas igualmente subordinar as suas vidas aos fins de realização econômica” (Fromm, 1970: p.75).

De forma similar, a evolução da doutrina calvinista põe em relevo a ideia do sucesso na vida secular ser sinal de salvação (1970, p.80), tema que mereceu a atenção de Max Weber como sendo um importante elo entre a doutrina de Calvino e o “espírito” do capitalismo. Conforme lembra Ghiardelli, pastores das maiores igrejas evangélicas, alcunhadas de “caça- níqueis”, figuram entre as grandes fortunas do país. Nas suas palavras: “A onda conservadora de costumes no Brasil tem a ver com o crescimento dessas igrejas. Bolsonaro é, em grande parte, a sua expressão O atraso cultural desse movimento é um líquido no qual ele gosta de se banhar” (Ghialdelli, 2029, p.78).

A ideologia de Lutero e de Calvino tornou-se hegemônica em várias igrejas, pentecostais e neopentecostais. O pastor de uma igreja – a Central Presbiteriana de Londrina chegou a pedir explicitamente aos seus membros para assinarem o apoio à criação do novo partido de Bolsonaro, a Aliança pelo Brasil (Pacheco, 2020). Desvela-se, portanto, o elo entre os aspectos autoritários das doutrinas dos teólogos, acima mencionados, e os de importantes setores evangélicos, apoiadores do capitão reformado, que promovem a adequação da ideologia religiosa aos valores do mercado.

Como recompensa à contribuição de expoentes calvinistas à sua eleição, Bolsonaro nomeou para o alto escalão de seu governo alguns dos mais destacados dentre eles, como o professor Benedito Aguiar Neto para a presidência da CAPES, o pastor Sérgio Queiroz para a Secretaria de Desenvolvimento Social e o pastor Guilherme de Carvalho para a Diretoria de Promoção e Educação em Recursos Humanos (Pacheco, 2020).

Não podemos, decerto, olvidar que, a despeito das posições de Lutero e Calvino , acima descritas, o protestantismo surgiu, objetivamente, como um movimento de grande impacto, na luta por liberdade e por autonomia, no seio da Igreja Católica. Contudo, o estudo dessa questão extrapola o objetivo desse trabalho.

Ele visa, tão somente, identificar os aspectos fatalistas da doutrina protestante, que favorecem, a nível político, a aceitação do autoritarismo e, no plano econômico, o ideário neoliberal. Tais aspectos conduziram a um notável retrocesso, especialmente em países como o Brasil, ganhando espaço considerável o neopentecostalismo, e, com ele, opções econômicas, morais e políticas de viés conservador.

Simultaneamente, ficou evidenciada a severa diminuição, dentre os pastores evangélicos, da qualidade de sua formação que se dá, frequentemente, em apenas seis meses, enquanto a dos clérigos da Igreja Católica dura pelo menos cinco anos. Tudo isso concorre para que o “núcleo duro” do bolsonarismo tenha alcançado um expressivo número de evangélicos, mediante combinação deletéria de fundamentalismo, baixo nível cultural e concepção de religião impregnada dos valores do mercado.

*Rubens Pinto Lyra, doutor em Ciência Política, é Professor Emérito da UFPB.

Referências

CALVINO, João. Filadélfia: Institutes of Christian Religion. Presbyterian Board of Christian Education, 1928.

FROMM, Eric. O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970. GHIARDELLI, Paulo. A filosofia explica Bolsonaro. São Paulo: Casa dos Mundos, 2019.

PACHECO, Ronilson. Quem são os evangélicos calvinistas que avançam silenciosamente no governo Bolsonaro? Intercept Brasil, 20 fev. 2020.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ronaldo Tadeu de Souza Luciano Nascimento Henri Acselrad Luiz Marques Fábio Konder Comparato Kátia Gerab Baggio João Paulo Ayub Fonseca Boaventura de Sousa Santos José Geraldo Couto Carlos Tautz Flávio R. Kothe Daniel Brazil Berenice Bento José Machado Moita Neto João Lanari Bo João Carlos Loebens Rubens Pinto Lyra Heraldo Campos Jean Marc Von Der Weid Marcos Silva Francisco de Oliveira Barros Júnior Jean Pierre Chauvin André Márcio Neves Soares Eleutério F. S. Prado Michael Löwy Flávio Aguiar Marcos Aurélio da Silva Luiz Bernardo Pericás Renato Dagnino Everaldo de Oliveira Andrade Valerio Arcary Juarez Guimarães Antonio Martins Jorge Luiz Souto Maior Paulo Nogueira Batista Jr Paulo Fernandes Silveira Francisco Pereira de Farias Mariarosaria Fabris Osvaldo Coggiola Paulo Capel Narvai Anselm Jappe Ricardo Antunes Rafael R. Ioris Alexandre Aragão de Albuquerque Luis Felipe Miguel Thomas Piketty Luiz Eduardo Soares Andrés del Río Gilberto Maringoni Mário Maestri André Singer Dênis de Moraes Sergio Amadeu da Silveira Celso Frederico Lincoln Secco Gilberto Lopes Vanderlei Tenório Michael Roberts Jorge Branco Liszt Vieira Rodrigo de Faria Ladislau Dowbor Francisco Fernandes Ladeira Marjorie C. Marona Antonino Infranca Eliziário Andrade Lucas Fiaschetti Estevez Tales Ab'Sáber José Micaelson Lacerda Morais Eugênio Trivinho Airton Paschoa Luiz Carlos Bresser-Pereira Yuri Martins-Fontes Maria Rita Kehl Dennis Oliveira Fernando Nogueira da Costa Alexandre de Freitas Barbosa Lorenzo Vitral Manuel Domingos Neto José Raimundo Trindade Manchetômetro Celso Favaretto Leonardo Avritzer Priscila Figueiredo Daniel Costa Plínio de Arruda Sampaio Jr. Bernardo Ricupero Luiz Roberto Alves Bruno Machado João Adolfo Hansen Alexandre de Lima Castro Tranjan Chico Whitaker Leonardo Boff Ricardo Fabbrini Gabriel Cohn Eugênio Bucci Valerio Arcary Marilia Pacheco Fiorillo Annateresa Fabris Matheus Silveira de Souza Michel Goulart da Silva Remy José Fontana Carla Teixeira Caio Bugiato Afrânio Catani Eduardo Borges Otaviano Helene Igor Felippe Santos Luís Fernando Vitagliano Andrew Korybko Tadeu Valadares Leonardo Sacramento Samuel Kilsztajn Eleonora Albano Denilson Cordeiro Julian Rodrigues Marcelo Módolo Vladimir Safatle João Sette Whitaker Ferreira Tarso Genro Luiz Werneck Vianna Vinício Carrilho Martinez Sandra Bitencourt José Dirceu Daniel Afonso da Silva Bento Prado Jr. Marcelo Guimarães Lima Ricardo Musse Ronald León Núñez Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marcus Ianoni Marilena Chauí João Feres Júnior Gerson Almeida Fernão Pessoa Ramos Armando Boito Luiz Renato Martins Milton Pinheiro Salem Nasser Chico Alencar Antônio Sales Rios Neto Paulo Martins Elias Jabbour Alysson Leandro Mascaro Ricardo Abramovay João Carlos Salles Ari Marcelo Solon Walnice Nogueira Galvão Benicio Viero Schmidt Leda Maria Paulani Slavoj Žižek Atilio A. Boron Ronald Rocha José Costa Júnior Paulo Sérgio Pinheiro Érico Andrade Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Claudio Katz Henry Burnett José Luís Fiori

NOVAS PUBLICAÇÕES