Wet mácula

Michael Ayrton, Paisagem Grega III, 1960–1
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Por VICTOR SANTOS VIGNERON

Comentário sobre o livro de Jean-Claude Bernardet

Já não é simples dizer que Jean-Claude Bernardet escreveu um livro. Pois na capa de Wet mácula (2023) consta, em tamanho ligeiramente menor que o seu, o nome de Sabina Anzuategui. A diferença suscita a imaginação, aguçada pela folha de rosto, em que se atribui o projeto da edição a Heloisa Jahn, falecida no curso dos trabalhos. Os três constam na descrição “Sobre os autores”, que esclarece que Heloisa Jahn “escrevia” o livro e que Sabina Anzuategui “herdou” o projeto “ao lado de Jean-Claude Bernardet”.

Co-autoria, portanto, mas ponderada graficamente – cada nome em sua página e dimensão. Como leitor, me confesso perturbado, pois aquilo que me trouxe até aqui foi o interesse pela fisionomia do cinema brasileiro moderno e pela figura singular de Jean-Claude Bernardet. E o que tenho em mãos é um livro que – na falta de palavra mais precisa – versa sobre suas memórias.

A diluição da autoria corresponde ao gênero bifronte estampado em subtítulo: memória/rapsódia. O livro contém, em suma, uma série de entrevistas com Jean-Claude Bernardet, realizadas, transcritas e editadas por Jahn e Anzuategui. Ao leitor, são apresentados fragmentos que abordam reiteradamente determinadas lembranças de Jean-Claude Bernardet. O livro – inspirado nas memórias de Vivian Gornick, traduzidas por Jahn – justapõe diferentes perspectivas sobre os mesmos acontecimentos, de modo que Jean-Claude Bernardet não apenas rememora, mas a acareia paulatinamente suas lembranças. Trata-se, é claro, de uma acareação muito particular, uma vez que as memórias são evocadas por uma testemunha que mal enxerga suas interlocutoras e escribas. Wet mácula faz referência a essa condição física, que sugere a performance da evocação pelo rapsodo cego.

Não é de hoje que Jean-Claude Bernardet – me convém tomá-lo como autor – estrutura a escrita a partir de seu corpo. Há pouco foi publicado O corpo crítico (2021), livro calcado em suas experiências com o câncer, a Aids e a meningite. Bem antes disso, A doença (1996) dava vazão – no limiar entre ficção e experiência, subtítulos justapostos – à centralidade adquirida pelo corpo de Jean-Claude Bernardet a partir de seu diagnóstico de HIV. A reiterada reflexão sobre a doença, portanto, deu azo à compreensão do corpo como instância intelectual própria, um “corpo crítico”, que se manifesta na sala de cinema diante de um filme como Jogo de cena (2007).

É conhecida a perambulação do corpo de Jean-Claude Bernardet pelo cinema brasileiro. Em Anuska, manequim e mulher (1968), ele vaga numa redação de jornal até finalmente vir ao primeiro plano para azucrinar Francisco Cuoco. A certa altura, sua presença no cinema se torna visceral. Assim, vemos Bernardet nu, alimentando-se de folhas de livros, em Orgia, ou O homem que deu cria (1970); ou bebendo do espelho d’água da Praça João Mendes, no Centro de São Paulo, em Fome (2015).

De certa forma, essa performance visceral incorpora um programa já esboçado no roteiro de O caso dos irmãos Naves (1967), escrito em parceria com Luiz Sérgio Person, onde salta aos olhos o tratamento dado à tortura infligida a Raul Cortez e Juca de Oliveira. Outro antecedente talvez seja o artigo “Amo o cinema”, de 1960, cujo fecho define a posição do espectador pela metáfora – sempre tão à mão de intelectuais homens – do estupro, do corpo esmagado pelo filme. Roteiro e artigo são citados em Wet mácula.

Tampouco parece secundária a insistência de Jean-Claude Bernardet, nesse e em outros livros, em sua experiência com a dança, que talvez confira rendimento estético a essa intensidade cada vez mais escancarada de seus gestos. Uma dança da morte, enunciada em A destruição de Bernardet (2016) e paulatinamente registrada nos filmes dirigidos por Cristiano Burlan, como Fome e Antes do fim (2017). Não surpreende, portanto, que Bernardet opte por cortar o próprio corpo em #eagoraoque (2020), gesto consistente com a coreografia da deterioração que a essa altura já se consolidara em textos e filmes.

O caminho de Jean-Claude Bernardet adquire um significado mais amplo quando relacionado ao trauma coletivo imposto aos cineastas brasileiros no início dos anos 1990, quando se abate sobre eles o golpe armado à esquerda e à direita por um economicismo paralisante. A extinção da Embrafilme (1990) no governo de Fernando Collor de Mello, apoiada por grandes jornais liberais do país, significa um novo tempo do mundo para mais de uma geração de cineastas.

Daí, por exemplo, a destruição do sentido coletivo da expressão “Cinema Novo”, mesmo que parte de seus integrantes seguisse em atividade. Pouco antes de seu falecimento, Glauber Rocha registra o sentido dessa degradação coletiva em Revolução do Cinema Novo (1981), ao documentar a insólita questão colocada pelo jornalista Reali Júnior de O Estado de S. Paulo: “Você se considera louco?” (p. 472).

O rendimento artístico dessa degradação varia de acordo com as trajetórias individuais. Com seu faro para as tendências que o caracteriza desde os anos 1950, Carlos Diegues dirige Orfeu (1999), releitura da exploração gringa do carnaval e da pobreza cariocas em Orfeu da Conceição (1959); mas a réplica, agora, aproxima a pobreza da violência ressentida, tal como o fariam Fernando Meirelles, Walter e João Moreira Salles e Hector Babenco. Por seu turno, Cinema de lágrimas (1995) também supõe um ajuste de contas da parte de Nelson Pereira dos Santos, embora a crítica incida sobre si mesmo e sobre os elementos tradicionalmente recalcados pelo Cinema Novo, como o melodrama – mais precisamente, os dramalhões mexicanos, que também formaram sua geração.

Outro sintoma que corresponde a uma resposta a esse senso de degradação é a tendência à memorialização, implícita, na virada para os anos 1980, na defesa de uma certa narrativa histórica do cinema brasileiro no já citado Revolução do cinema novo, de Glauber Rocha. Mas o caldo rememorativo engrossa com o fim da Embrafilme e a publicação das memórias de Paulo César Saraceni, Por dentro do cinema novo (1993), e da escrita-refúgio de David Neves, Cartas do meu bar (1993).

A mudança de rumos em Jean-Claude Bernardet, portanto, não é singular nesse momento. Tampouco sua tendência à memória, que desemboca agora em Wet mácula. Mas é muito particular o conjunto de experiências abertas pelo tríptico Aquele rapaz (1990, no limiar de memória e ficção), Os histéricos (1993, escrito em parceria com Teixeira Coelho) e A doença (1996, também entre ficção e relato pessoal).

Neles, Jean-Claude Bernardet retorna ao leito da literatura, que de certa forma ficou recalcado pela opção cinematográfica no início dos anos 1960. Assim, se o senso de vertigem político-estético contribuiu para carrear para o cinema jovens escritores (Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade), a democracia racionada a que se chegou no fim dessa jornada sugere a alguns o retorno a áreas mais seguras da produção intelectual – Arnaldo Jabor, então, retorna definitivamente à crônica jornalística.

Mas o caso de Jean-Claude Bernardet não é típico nessa periodização. Afinal, as experiências que se sucedem no início dos anos 1990 precipitam tendências que se manifestam regularmente em sua produção anterior. Assim, ele comenta na dedicatória de Brasil em tempo de cinema (1967): “Este livro – quase uma autobiografia – é dedicado a Antônio das Mortes” (p. 19). Uma década mais tarde, o olhar retrospectivo para a própria obra se registra em Trajetória crítica (1978), onde a acareação tem sua primeira expressão com o comentário sobre sua produção. Em Piranha no mar de rosas (1982), ao abordar o tema da loucura derradeira em Glauber Rocha (“A (alegada) loucura de Glauber foram as nossas próprias contradições. A loucura de Glauber fomos nós.” [p. 11]), o ponto de vista que preside suas mais recentes intervenções ameaça vir à tona: “Afirmações que fiz sobre o Cinema Novo, ou meu comportamento sexual só eram – na interpretação que ele [Glauber Rocha] lhes atribuía – tão violentamente rejeitados, tão violentamente angustiantes para ele, na medida em que representavam elementos dele mesmo a que não dava vazão” (p. 14).

É significativo que a tendência ao relato em primeira pessoa e que o ajuste de contas com o passado se esbocem na passagem para os anos 1980, quando se assiste a uma mudança generalizada no registro historiográfico. Em outras coordenadas, é possível assistir a uma mudança na dicção autoral existente entre as obras do historiador Eric J. Hobsbawm, de A Era das Revoluções (1962) a A Era dos Impérios (1987) e Era dos Extremos (1994). Ocorre que esses dois últimos livros tocam na relação pessoal do autor com o período narrado. O problema é abordado na “Introdução” de A Era dos Impérios, onde o historiador se vê na necessidade de justificar-se perante a zona de penumbra entre a memória e a história desse período (1875-1914), decisivo para a fixação de sua família, britânica, no Egito. Dessa forma, acrescenta Hobsbawm, trata-se de uma época na qual já não se vive, embora não esteja claro o quanto ela ainda vive em nós.

A evocação de Hobsbawm serve aqui de parâmetro para o caso de Jean-Claude Bernardet. Em comum, ambos apresentam questões em torno da autoria e das memórias em período semelhante. Mas a comparação torna-se um pouco mais pertinente quando lembramos que, em 1995, Jean-Claude Bernardet publicou sua Historiografia clássica do cinema brasileiro.

Ora, verifica-se nesse livro que a apresentação de novas perspectivas de investigação da história do cinema brasileiro se liga a uma agenda historiográfica que se entrevê ao longo do texto. Da ocorrência a citações de autores como Paul Veyne (“Acreditam os brasileiros nos seus mitos?” [p. 19]) e Jacques Le Goff (o problema da “idade de ouro” [p. 33-34]), o autor apresenta os limites da historiografia clássica, chamando a atenção para a circularidade da criação de contextos históricos em função do projeto de determinados grupos. É o caso do Cinema Novo, por exemplo, que teria fundamentado uma leitura centrada na figura do produtor, adequada a sua própria posição. Memória e história, portanto, se imbricam.

Jean-Claude Bernardet documenta, assim, um momento na produção historiográfica marcado pela condição recessiva da história. Os ganhos dessa revisão, penso, são claros e já foram incorporados pela historiografia do cinema brasileiro. O que me parece merecer atenção, no entanto, são os efeitos colaterais pouco abordados desde então. É nesse sentido que a perspectiva oferecida por Hobsbawm me parece evidenciar algumas questões delicadas presentes em Wet mácula.

Não é uma intenção do livro apresentar-se no campo da história. O título, como vimos, deixa isso claro: memória/rapsódia. A combinação se liga não apenas a um recuo geral da dicção histórica – hoje, uma moeda corrente – mas a uma intensificação da performance subjetiva nos diálogos que formam o material do livro. Note-se a diferença: Hobsbawm recorre muitas vezes a anedotas em Era dos Extremos, mas o procedimento é controlado pelos modos de operação sedimentados pela prática historiográfica, intersubjetiva.

Em Jean-Claude Bernardet, ao contrário, a performance individual é intensificada por uma série de decisões editoriais que se encadeiam: primeiro, a realização de entrevistas entre velhos conhecidos; depois, a resistência da entrevistadora às falas de Jean-Claude Bernardet (e vice-versa); em seguida, a edição das entrevistas e sua seriação em comentários que versam sobre os mesmos acontecimentos, o que desencadeia um efeito de auto-defrontação; por fim, uma ênfase nos quiprocós da memória, que evidenciam a fragilidade do exercício de rememoração. O livro, portanto, não apenas lembra a trajetória de Bernardet como também critica seus esforços de lembrá-la.

No caso da referência à participação do pai na resistência à ocupação nazista na França, estamos diante de um fato intuído, com base num conjunto de impressões. Essa incerteza contrasta com a clareza com que o fato é narrado: o pai é uma figura central, domina a lembrança dos primeiros tempos de vida em São Paulo, das relações com a mãe; ele fornece um enquadramento recorrente para aferir, ainda, a posição de Jean-Claude Bernardet na ditadura brasileira. Me parece que a narração apresenta aqui ganhos inegáveis, uma vez que versa sobre acontecimentos pouco verificáveis. O apelo recorrente à zona de penumbra das primeiras impressões conjuga, nesse caso, uma narrativa fortemente concatenada com o tensionamento dos limites da memória.

Por outro lado, a referência à vida sob a ditadura é marcada por alguns problemas. Não se trata de imprecisões de ordem factual, embora a ausência de legendas apostas às imagens e de identificação clara de personagens citadas leve o relato, por vezes, ao limite da inteligibilidade. O problema central, me parece, é de ordem propriamente historiográfica: estamos diante de uma narração em que não há – em que pese a resistência da interlocução – mecanismos de controle das relações entre o relato que emerge diante do leitor e as tomadas de posição de Jean-Claude Bernardet, que costuram sub-repticiamente esse relato.

Em outras palavras, Jean-Claude Bernardet produz uma narrativa fortemente concatenada sobre sua própria trajetória e, por mais que a fragmentação do formato sugira um processo de retomada e de revisão contínua, é o caso de se olhar com cautela para a dimensão “crítica” assim sugerida. Pois o que se cristaliza dessa forma é a imagem de Jean-Claude Bernardet como um crítico contumaz, visão que esbarra na continuidade cândida de posições assumidas ainda nos anos 1960 em sua atuação nos últimos anos. É o caso, por exemplo, da vizinhança de posições acerca da relação entre intelectuais e o povo entre Brasil em tempo de cinema e #eagoraoque, num lapso de cinquenta anos.

Há, portanto, ao lado da autocrítica, um “movimento inercial” que fornece o pano de fundo das idas e vindas, ao passo que a opção formal do livro termina por sugerir uma imagem de mudança, que torna opaca a permanência. A diluição da autoria reforça esse mecanismo, pela ausência de uma indicação clara das diferentes responsabilidades editoriais dos “autores” e, em suma, pela fraca resistência que, no fim das contas, é fornecida diante de aspectos centrais da narração de Jean-Claude Bernardet.

A essa altura, é impossível ponderar se a confissão da vergonha (quando Jean-Claude Bernardet se dá conta da sua ridícula crítica ao elitismo de Terra em transe [1967]) ou a exposição involuntária ao ridículo (os dois momentos em que trata de sua nudez, mas não se dá conta de seu caráter classista ou machista) é sinal da força ou da fraqueza do livro. Este, me parece, é o principal mérito da edição. Não se trata aqui de reivindicar a narrativa historiográfica tal como ela existe em sua dicção tradicional – pois também em Hobsbawm há uma crise.

Mas talvez Wet mácula nos ofereça a oportunidade de pensar se o desrecalque subjetivo operado desde o fim dos anos 1970 revela uma potência criadora (um sujeito exposto, cuja singularidade se liberta da pretensa universalidade dos saberes) ou uma saída de emergência (uma reação impotente diante da ruína da promessa de consórcio civilizacional rompida nos Golpes de 1964 e 1968 e bloqueada na Abertura Política).

Em suma, Wet mácula expressa nossa dificuldade de ver e, ao mesmo tempo, nos ajuda a palmilhar as causas que nos levaram do engajamento à performance. De todos os corpos, a este corpo.

*Victor Santos Vigneron é doutor em história social pela USP.

Referência


Jean-Claude Bernardet. Wet Mácula: Memória/rapsódia. São Paulo, Companhia das Letras, 2023. [https://amzn.to/3QZIyvL]


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