Relatório Focus

Prédio do Banco Central em Brasília/ Foto: Rafa Neddermeyer/ Agência Brasil
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Por LUIZ SÉRGIO CANÁRIO

Um primeiro sinal de questionamento ao Banco Central por usar previsões obtidas sem ninguém saber como para ser um dos pilares da fixação da taxa SELIC

O Banco Central do Brasil – BCB publica semanalmente, normalmente às segundas-feiras, o Relatório Focus – Relatório de Mercado. Esse documento contém as expectativas do mercado financeiro para a posição no final do ano corrente e dos três subsequentes de quatro indicadores: IPCA, PIB, Taxa de Câmbio e Taxa SELIC. Como o Banco Central chama a atenção essas não são as expectativas da instituição, mas sim do mercado. É como o mercado entende que esses indicadores estarão ao final de cada ano.

Em 14/05/2024 havia 171 instituições representado o mercado informando suas expectativas. São bancos, gestores de recursos, distribuidoras e corretoras, além de consultorias e outras empresas não-financeiras “que possuem equipes especializadas que projetam as principais variáveis macroeconômicas, com o intuito de assessorar a tomada de decisões, tanto por profissionais da própria instituição, como por seus clientes.”. “O Sistema Expectativas de Mercado, desenvolvido pelo Banco Central do Brasil (BCB), é um sistema de coleta de projeções junto a profissionais de mercado.”, segundo o site do Banco Central.

As instituições para participarem desse levantamento precisam se habilitar no Banco Central, obtendo o acesso ao site onde são inseridas as informações. A rotina não obrigatória, mas cumprida por grande parte das instituições, é informar uma vez por semana. Segundo site do Banco Central: “As estatísticas produzidas pelo Sistema e divulgadas pelo BCB são mediana, média, desvio-padrão, máximo, mínimo e número de respondentes para todas as variáveis coletadas … Por ser menos sujeita a valores extremos, a mediana das expectativas é a estatística monitorada com maior atenção e divulgada no “Relatório Focus” toda segunda-feira (ou primeiro dia útil da semana), regularmente entre 8h25 e 8h30, com base nos dados coletados até a sexta-feira anterior. O número de respondentes de cada horizonte de cada variável também é divulgado”.

Ainda segundo o site: “As expectativas de mercado são subsídio importante para as decisões de política monetária. Além disso, a disponibilização das estatísticas de expectativas ao público em geral, por meio da página do BCB na internet, possibilita que empresas e cidadãos tenham conhecimento sobre o que os agentes de mercado estão projetando, constituindo dessa forma ferramenta importante para o planejamento de suas ações de curto, médio e longo prazos”.

É um engano pensar que o mercado é um agente econômico com grandes graus de assertividade, coerência e coordenação. A tabela abaixo (Distribuições de Frequência das Expectativas de Mercado para IPCA Selic PIB Câmbio) publicada em 06/05/2024 no site do Banco Central, mostra o grau de dispersão das expectativas dos agentes do mercado.

Nessas três datas houve expectativas de IPCA para 2024 variando entre 2,94% e 5,34%. São 2,4 pp de diferença ou quase o dobro de diferença entre os extremos. Há uma convergência de quase 90% na faixa de 3,34% a 4,14%, mesmo assim não é insignificante a diferença entre eles. Usar a mediana corrige um pouco essa dispersão. O IPCA no FOCUS de 10/05/2024 foi estimado em 3,76%. Esses números dão uma ideia do grau de assertividade e coerência dos agentes do mercado financeiro.

Os dois gráficos a seguir dão uma ideia do comportamento das expectativas em relação à realidade.

O IBGE publica o IPCA acumulado nos doze meses anteriores ao fim de cada mês. Esses valores, que são reais, não são estimativas, estão plotados junto com as estimativas dos FOCUS. As estimativas começam altas e vão convergindo para o valor real ao se aproximar o fim do ano.

Ao fim de cada trimestre o IBGE publica o PIB acumulado nos quatro trimestres anteriores. Da mesma forma que com o IPCA, mas no sentido inverso, a expectativa do PIB do FOCUS converge para o real à medida que o ano se aproxima.

Curioso esse comportamento. O poderoso e eficiente mercado começa o ano de 2023 com expectativas ruins de dois indicadores importantes e ao longo do ano converge para o valor real. Mesmo que a vida real, medida pelo IBGE, mostre situação diferente. Se por um lado pode ser esperado que à medida que o ano avance o cenário do final do ano vá ficando mais claro, não deveria ser esperado que agentes econômicos com ferramentas especializadíssimas e as melhores cabeças para previsão econômica errassem tanto no inicio do ano. Mas penetrar nesse mundo sombrio dos economistas da Faria Lima não é tarefa para qualquer um. Como diz o ditado, não creio em bruxas, mas que elas existem, existem.

O Banco Central admite que o FOCUS é uma das ferramentas usadas como base de informação para a tomada de decisão mais importante da instituição e do próprio governo: a SELIC, a taxa de juros mais importante do país. É o principal mecanismo que os Banco Centrais têm para controlar a inflação. É um dos maiores freios ou aceleradores da atividade econômica e por consequência do desemprego. O último FOCUS sinaliza uma SELIC de 9,75% esse ano, 9% em 2025 e 2026 e somente no longínquo ano da graça de 2027 teremos uma SELIC de 8,63%. Por que esse número tão preciso para um ano tão distante? Ninguém sabe.

O Banco Central no último comunicado do COPOM afirma explicitamente em uma nota de pé de página; “No cenário de referência, a trajetória para a taxa de juros é extraída da pesquisa Focus”. O mercado fornece a autoridade monetária o cenário de referência para a taxa de juros. Com certeza há nos compêndios herméticos de economia, que os agentes do mercado são profundos conhecedores, toda a racionalidade para que funcione dessa forma.

Um ano atrás escrevi um texto comentando sobre o hermetismo em que os economistas enfiaram a economia. A nossa economia. A que governa as nossas vidas. A que decide se vamos ou não ficar desempregados. Se podemos ou não fazer um financiamento para comprar uma TV, uma geladeira ou uma casa para morar. Desde as coisas grandes até as coisas mais miúdas do dia a dia. Precisamos todos ter o hábito de querer saber porque as coisas são dessa e não daquela maneira. Por que a SELIC é fixada usando como cenário de referência expectativas do mercado que é quem mais se beneficia do movimento da taxa de juros? E com expectativas definidas com tamanho grau de dispersão? Os principais agentes econômicos não podem combinar suas expectativas para forçar uma direção que lhes interesse? Decifra-me ou te devoro.

Na segunda, 27/05/2024, depois que esse texto já havia sido escrito, o Subprocurador Geral Lucas Rocha Furtado apresenta representação junto ao TCU para a “adoção das medidas necessárias a identificar eventuais desvios de finalidade pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central na definição da taxa Selic”. Na representação ele diz: “dado que sobre o cálculo correspondente, em aparente ofensa aos princípios da motivação e da transparência (art. 37 da CF/88), exercem grande influência as projeções constantes do chamado “Boletim Focus”, elaborado a partir de pesquisas macroeconômicas realizadas por diversas instituições, tais como bancos, consultorias, corretoras, entre outras, que podem ter interesse na manipulação do índice para ganhos próprios e privados indevidos e em prejuízo aos interesses públicos e ao erário.”.

E segue: “Acima de qualquer positivação legal, a nossa Constituição Federal determina que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Qual o controle que o povo – detentor do poder – pode exercer sobre as definições da Política Monetária do Copom?”

Por fim ele encerra com: “Ante o exposto, este representante do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, com fulcro no artigo 81, inciso I, da Lei 8.443/1992, e no artigo 237, inciso VII, do Regimento Interno do TCU, requer ao Tribunal, pelas razões acima aduzidas, que decida pela adoção das medidas necessárias a: (i) a identificar eventuais desvios de finalidade pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central na definição da taxa Selic, dado que sobre o cálculo correspondente, em aparente ofensa aos princípios da motivação e da transparência (art. 37 da CF/88), exercem grande influência as projeções constantes do chamado “Boletim Focus”, elaborado a partir de pesquisas macroeconômicas realizadas por diversas instituições, tais como bancos, consultorias, corretoras, entre outras, que podem ter interesse na manipulação do índice para ganhos próprios e privados indevidos e em prejuízo aos interesses públicos e ao erário; (ii) formar parcerias com a Polícia Federal para apurar o assunto; (iii) encaminhar cópia da presente representação e da decisão que vier a ser proferida ao Presidente do Congresso Nacional”.

Pode não prosperar, mas é um primeiro sinal de questionamento ao Banco Central por usar previsões obtidas sem ninguém saber como para ser um dos pilares da fixação da taxa SELIC.

Para ilustrar um exemplo do FOCUS:

*Luiz Sérgio Canário é mestrando em economia política na UFABC.


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