Tesouro Natterer

Imagem: frame do documentário "Tesouro Natterer" de Renato Barbieri/ Divulgação
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Por CARMO TEDESCO & SOLANGE PEIRÃO*

Comentário sobre o filme dirigido por Renato Barbieri

A descoberta do tesouro

Acompanhar o “É tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários” já se fixou como uma tradição, e uma certeza de bons momentos, de interessantes descobertas. E foi como esse espírito que nos deslocamos ao SESC Vila Mariana, em São Paulo, para assistir ao filme dirigido por Renato Barbieri, Tesouro Natterer, e que acabou sendo o grande vencedor da edição de 2024. Por ganhar o Grande Prêmio, automaticamente passa a ser o pré-indicado, pelo Brasil, ao Oscar 2025 de Documentários.

O filme trata da trajetória do naturalista Johann Natterer, vindo ao Brasil com a expedição que se formou em 1817, por ordenação do Imperador Francisco I, da Áustria. Sua filha, a Arquiduquesa Leopoldina, uniu-se em casamento por procuração, nesse mesmo ano, com D. Pedro, príncipe regente do Brasil, e se deslocou para cá, acompanhando a expedição.

 Os viajantes naturalistas europeus foram vários; eram financiados pelos Estados nacionais e/ou imperiais e tinham demandas específicas de pesquisa e recolha de amostragem nos campos da zoologia, botânica, mineralogia, etnografia. Natterer, como zoólogo, foi um deles, mas que reforçou sua ação, direcionando-a para o campo da etnografia. Amealhou um acervo considerável e precioso.

Entre nós, historiadoras, o nome Johann Natterer provocou estranheza. Conhecíamos Spix, Martius, Saint Hilaire, Koster e alguns outros viajantes, mas Natterer havia, de alguma forma, passado desapercebido. Mesmo assim, nos dirigimos com curiosidade à sessão que, ao longo de sua exibição, foi se transformando em surpresa e em entusiasmo pela expedição que, entre 1817 e 1835, reuniu 50 mil itens, de 68 povos originários do Brasil. Além do que, impressionou a maneira como se estruturou a narrativa, explorando temporalidades e focos narrativos diversos.

Ao terminar a apresentação, ainda impactadas com o que acabávamos de assistir, e cheias de questionamentos, tivemos a oportunidade de trocar algumas impressões com Renato Barbieri. Essa troca se prolongou com algumas questões, posteriormente, gentilmente respondidas pelo diretor. Os comentários, a seguir, são fruto de nossas conversas.

A gestação do projeto

De imediato, perguntamos como nasceu a ideia do filme. Renato conta que seu primeiro contato com Natterer, e seu monumental acervo, foi na exposição que Victor Leonardi, seu amigo e historiador, realizou na Universidade de Brasília (UnB), em 1996.

 “Victor, que no filme assina pesquisa, roteiro e ideia original, é o fogo original de tudo isso que veio depois. O primeiro contato de Victor com Natterer se deu a partir de um livro que ele encontrou em um acervo de obras raras na UnB. As fotos dessa primeira exposição são de Juan Pratginestos e a produção foi de Andrea Fenzl, que no filme assina pesquisa, roteiro, direção de produção e assistência de direção. O projeto em si, de fazer o filme, nasceu em 2003”.

A parceria de trabalho entre Renato e Victor se estendeu por todos esses anos, e já rendeu mais de 20 obras documentais, dentre filmes de longa-metragem, médias e séries. Entre eles, destacam-se os premiados “Atlântico Negro – na Rota dos Orixás” (1998) e “Malagrida” (2001).

Em 2012, surgiu novo alento ao projeto Natterer. O Museu Etnográfico de Viena, que abriga as 2.309 peças da coleção nessa área da etnografia, realizou uma grande exposição. Pela primeira vez, em 200 anos, as peças foram expostas na Áustria, acompanhadas de um belíssimo catálogo intitulado “Além do Brasil”, com versões em alemão, português e inglês. A ideia, a princípio, era filmar essa exposição, mas não houve apoio, à época. Ainda assim, o projeto se fortaleceu com as fotos e textos do catálogo, e a proposta do filme continuou viva. Graças às políticas públicas da ANCINE de fomento ao Cinema Brasileiro, a obra “Tesouro Natterer” tornou-se realidade e foi concluída, depois de vinte e um anos, em 2023.

Os narradores

O entusiasmo que o filme nos propiciou teve como uma das principais razões a apresentação não só da viagem do naturalista Natterer, mas o fato de o percurso ser revisitado contemporaneamente pelo biógrafo do naturalista, Kurt Schmutzer. Além da diversidade temporal, existem também diferentes focos narrativos. O do protagonista Natterer, por meio de trechos das cartas escritas por ele próprio; o do olhar de seu biógrafo; e ainda o do povo Munduruku, pelo olhar de seu representante Hans Munduruku.

Renato Barbieri relata que não queria fazer um filme que retratasse apenas o Brasil que Natterer conheceu há 200 anos, mas também o Brasil de hoje em contraste com aquele.

“Nosso desejo sempre foi fazer uma “ponte temporal” de 200 anos, sem nos determos no que ocorreu nesse meio. Uma “ponte” desse porte é raríssima e com os elementos nela inseridos já teríamos assunto o suficiente para tratar em um longa-metragem. E, para que isso ocorresse de fato, criamos o desafio de ter um “transe” transatlântico contemporâneo de contar com a presença no filme de um austríaco no Brasil e de um indígena brasileiro na Áustria. O mais delicado nisso tudo foi definir: quem seriam esses novos personagens do filme, o austríaco e o indígena brasileiro. Nessas escolhas estaria selada a forma final do filme. Isso demandou pesquisa, lá e cá. No meio desse processo descobrimos o Kurt Schmutzer, considerado hoje o maior biógrafo de Natterer, que havia concluído sua tese ‘Por Amor à História Natural – As viagens de Johann Natterer no Brasil, de 1817 a 1835’, por volta de 2015.”

Barbieri informa, também, um outro desafio de mesma envergadura: escolher a etnia indígena, dentre as 68 representadas na Coleção Natterer, a ser privilegiada. O primeiro recorte se deu pelas etnias que tinham um conjunto de peças mais expressivas. Depois de muita pesquisa, consultorias especializadas e pesquisa de campo, com visitas técnicas à Terras Indígenas de três etnias (Baniwa, Munduruku e Saterê-Mawê), ficou definido que as filmagens seriam em terras Munduruku, e seu representante, a falar pela comunidade, Hans Munduruku.

Mas foi o próprio personagem histórico Johann Natterer que amarrou essa trilogia de protagonistas do filme. A principal base documental para conhecer o pensamento de Natterer estão nas 60 cartas enviadas por ele, paulatinamente, do Brasil à Viena. O historiador Victor Leonardi, em sua ida à Viena, em 1996, trouxe consigo a microfilmagem de todas elas, mas com um detalhe perturbador: todas escritas em alemão gótico, indecifrável para quem fala alemão hoje.

Ele declara: “Eu imprimi as cartas todas e ficava olhando para elas como se fossem um mistério impenetrável, pensando em como acessar seu conteúdo de um Brasil que raramente foi motivo de escrita há 200 anos; pois os portugueses, por uma questão de segredo comercial, não tinham o hábito de escrever seus saberes sobre a Terra Brasilis e nem mesmo fazer mapas, quase tudo era tête-à-tête. Foi com o acesso à tese do Kurt que tivemos pela primeira vez conhecimento do seu conteúdo”.

Além dessas interessantes escolhas, Barbieri adotou outra estratégia narrativa, ao mesclar desenhos das paisagens brasileiras, efetuados pelos viajantes das expedições de naturalistas pelo Brasil, com as tomadas atuais, dos mesmos locais, em plano geral. O jogo entre ambas as situações, que explorou de forma magistral a luz, nesse último caso, é marcante. Esse foi mais um recurso – imagético – encontrado para dar mais densidade e tangibilidade à tão desejada e encontrada “ponte temporal”.

As denúncias

Por meio de Hans Munduruku foi possível ainda explorar alguns temas importantes. Um deles, o complexo debate, atualíssimo, sobre o repatriamento da coleção para o Brasil. A Áustria se disponibiliza para as conversações, e esse tom amigável fica perceptível pela visitação de Hans ao Museu, cenas que, aliás, abrem o filme. Não se pode esquecer, contudo, que no cerne do debate está também a questão da preservação do acervo. Sabe-se que os requisitos que a moderna museologia e museografia disponibilizam são eficazes, mas nem todas as instituições deles dispõe.

E se há as ameaças que pairam sobre a preservação natural do acervo, outras tantas são mais complexas: a destruição das terras indígenas, a vulnerabilidade de sua integridade, e a dificuldade de preservação da identidade cultural das diversas comunidades. Esses foram temas não esgotados, evidentemente, mas introduzidos para reflexão, pelo roteiro.

Um tesouro a ser apreciado

A exposição das questões acima, decorrentes do rico diálogo que pudemos ter com Renato Barbiere, nos fornece um arcabouço das peripécias que foram sendo solucionadas pela direção, na produção do documentário. Questões essas que, certamente, cada um trará consigo após a exibição, mas de nenhuma forma ofuscam a experiência da narrativa que se produziu. Conhecer as peças que se encontram preservadas em dois museus de Viena, o Museu de História Natural e o Weltmuseum Wien (Museu do Mundo), de excepcional beleza e criatividade, nos enche o coração.

Viajar com a equipe, reconstituindo o percurso feito há mais de 200 anos por Johann Natterer, vivenciar cerimônias junto às comunidades indígenas que resistem ao processo de destruição que lhe é impingido, tudo isso constitui registros fundamentais da história desse País, dos quais nos apropriamos graças à sensibilidade e qualidade artística de Renato Barbieri e sua equipe.

*Carmo Tedesco é historiadora.

*Solange Peirão, historiadora, é diretora da Solar Pesquisas de História.

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