Certa herança marxista

Eduardo Berliner, Joelhos, 2018, óleo sobre tela, 35,5 x 25,5.
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Por BENTO PRADO JR.*

Comentário sobre o livro de José Arthur Giannotti

Como fazer trabalho útil apresentando, nos limites de uma resenha, um livro tão complexo como o de José Arthur Giannotti? É claro que estamos condenados a ficar muito aquém do que espera a curiosidade do leitor diante de um livro de tantas facetas e tão polêmico.

Mas talvez possamos dar uma contribuição mínima, reduzindo nossa tarefa a apenas duas operações: em primeiro lugar, oferecer uma radiografia sumária do livro (ou das múltiplas camadas estratigráficas de que se compõe), dando pistas ao leitor, que poderá se sentir desorientado percorrendo suas páginas; e, em segundo, formulando uma questão geral que visa menos à obra em si mesma que seus desdobramentos futuros, isto é, seu télos último, sem o qual o seu sentido não se pode esclarecer completamente. Arrisco-me mais, é claro, na segunda operação, mas não poderia esquivá-la sem diminuir fortemente o interesse vivo que a discussão do livro deve provocar. Sem um mínimo de polêmica, principalmente entre amigos, nosso discurso perde muito de seu peso eventual.

Comecemos pela primeira operação, menos difícil para quem pode acompanhar o trabalho teórico de Giannotti desde 1956 (!), primeiro como aluno e depois como colega no departamento de filosofia da USP. E repitamos, desde o início, uma antiga observação minha, relativa à continuidade de seu trabalho teórico desde aqueles tempos longínquos ou ao caráter obsessivo de sua reflexão que repete, a cada nova etapa, diante de problemas sempre novos, um mesmo círculo reflexivo: numa palavra, a história de uma reflexão que sempre se renova para se aprofundar cada vez mais.

O que já nos permite introduzir uma curiosa observação estilística: penso na maneira como Giannotti dá novo destino aos estilos diferentes dos componentes da bella scuola, os membros do cânone a que se reporta em permanência: Husserl, Hegel/Marx, Wittgenstein… Mas que poderia haver de comum a autores tão diferentes? Algum estilo comum entre a Ciência da lógica de Hegel e o Tractatus de Wittgenstein (além do “frasismo” e da onipresença do paradoxo à maneira de Lichtenberg que podem ser encontrados em ambos)? O retorno constante (reflexionante) do pensamento sobre si mesmo, na forma da circularidade do Saber hegeliano, ou a obsessiva reformulação do mesmo pensamento em Wittgenstein, na busca incessante da expressão mais clara daquilo que jamais é perfeitamente exprimível, a não ser poetischerweise [poeticamente]…

Mas o que importa não é o estilo em si mesmo (pensado como mera forma de expressão literária) e sim os problemas teóricos e práticos que, por sua natureza, impõem necessariamente essa forma de escrita. Mas qual é esse problema? Nada mais e nada menos que a questão da Razão ou da forma da racionalidade. Não é por acaso que Giannotti começa sua carreira com uma tese sobre (ou contra?) Stuart Mill, afinando com Husserl seus instrumentos conceituais no combate ao psicologismo. Eis aí fixada, desde início, a bête noire de Giannotti, o psicologismo como o “outro” ou o limite da Razão. Ou como o contraponto que permite negativamente fixar certa ideia da Razão.

Mas de que ideia falamos? Essencialmente da camada do lógos, irredutível tanto ao referente empírico ou natural quanto a operações psicológicas (um pouco como o “terceiro reino ou império” de Frege, que sempre foi referência importante para Giannotti).

Mas, ao mesmo tempo em que Giannotti nos conduzia ao mundo celeste do fundamento transcendental da lógica, ele nos apontava, também, para a instância do social ou para a reflexão sobre as categorias fundamentais das ciências humanas (essencialmente antropologia e economia, mas também Durkheim). O que se esboçava, assim, paralelamente à filosofia da lógica, era uma visão do modo de ser do social irredutível aos modelos de uma epistemologia positivista (ou individualista, no sentido do chamado “individualismo metodológico”). É assim que, resenhando criticamente o belo livro de nosso mestre comum, Gilles Granger (O pensamento formal e as ciências do homem), nos anos 1960, Giannotti não podia deixar de lhe opor o que chamava de “autoprodutividade do social”.

Nem será difícil entender essa passagem, aparentemente insólita, da filosofia da lógica para a ontologia do social, se lembrarmos a origem husserliana e transcendental de nosso filósofo. Com efeito, não é a ideia de constituição crucial no procedimento fenomenológico? Não opera ela tanto no nível da lógica transcendental como no das ontologias regionais? Mas a maior originalidade, nesse momento, e que distingue sua empresa de outras semelhantes na tradição fenomenológica, é a articulação que proporá entre a ideia de constituição e aquilo que poderemos chamar de a “lógica” do capital.

Nada mais distante da “crítica da economia política” do que a concepção da temporalidade das Geisteswissenschaften (ciências do espírito) de Dilthey, mas as operações de Heidegger e de Giannotti, na exploração da intersubjetividade ou do Mitsein (ser-com), não deixam de ser isomórficas (e não é indiferente que o filósofo brasileiro ainda se interesse pelos escritos “lógicos” do pensador da floresta Negra).

O que fizemos até agora, muito caricaturalmente, foi descrever o itinerário desenhado desde o doutoramento sobre Stuart Mill (anos 1950) até Trabalho e reflexão (anos 1970), passando por Origens da dialética do trabalho (anos 1960). Mas, para bem compreender o livro atual, é preciso, ainda, passar por Apresentação do mundo (anos 1990). Wittgenstein não é preocupação recente de Giannotti, mas é claro que até os anos 1980 seu Wittgenstein era o do Tractatus, cuja tradução publicou no fim da década de 1960. No prefácio que escreveu então, depois de apresentar a filosofia tractariana, refere-se ao segundo Wittgenstein como responsável por um desvio teórico que o teria levado, infelizmente, às margens do pragmatismo.

É só mais tarde que descobre, na obra tardia do filósofo vienense, um novo instrumental a ser assimilado por seu próprio trabalho. Uma nova leitura das ideias de forma de vida e de jogo de linguagem, de regra e aplicação, permitir-lhe-á retrabalhar sua ideia de um lógos prático. Com Apresentação do mundo estava dado o passo final para uma retomada da tentativa de compreensão filosófica da “crítica da economia política”.

Ideias do segundo Wittgenstein (algumas perfeitamente dialéticas, como a de que a aplicação da regra é constitutiva da própria regra, ou a ideia de projeção, retrabalhada em novo espírito) ajudam a repensar a expressão do valor, seus pressupostos, sua posição e sua reposição.

Trata-se novamente de compreender Marx e seus limites, bem como de esboçar as linhas que essa compreensão abre para a nossa prática, ética e política.

 

Crítica da economia política

Falta-me a competência necessária para acompanhar, passo a passo, sua tentativa de reconstrução categorial da “crítica da economia política”. E confesso que minha leitura dos frankfurtianos não me leva a acompanhar as críticas que Giannotti lhes endereça. Mas pouco importam as minhas opiniões mais ou menos (mais menos do que mais) bem fundamentadas. Creio que, no que concerne a Marx, a operação de Giannotti é dupla: mostrar o interesse (permanente) de sua obra crítica, que não teria sido tornada perempta pela evolução da ciência econômica, e a morte da dimensão “política” do marxismo. No limite, a impossibilidade de pensar a ideia de revolução. Mas o essencial é que o eclipse da idéia de revolução não parece derivar de um raciocínio propriamente histórico-político (digamos, na linguagem de Merleau-Ponty, a partir da derrapagem do movimento operário ou da paralisia da negatividade), mas antes lógico-categorial.

É assim que uma das suas críticas fundamentais aos frankfurtianos diz respeito à renúncia à óptica da “crítica da economia política” e sua substituição pela “crítica da cultura”. É assim que essa retomada de certa tradição marxista, no que ela tem de mais clássico, se é que é O capital que fornece o coração do marxismo, acaba por inverter um de seus sentidos originais.

Qual é a conclusão final de Giannotti? Ele encerra seu livro com a seguinte proposição: “Qual é, porém, o sentido da luta de classes, a luta pelo controle da norma, numa sociedade em que a norma fibrilou, serve para marcar intervalos cujo espaço intermediário, contudo, é preenchido por decisões ad hoc?”.

Como me falta, repito, a cultura econômica para discutir técnica e politicamente a tese assim exposta (escapa-me o sentido último da idéia de “fibrilação da norma”), deixo-a de lado para formular o meu problema, que não parece ser externo ao livro. Refiro-me às duas linhas de fuga divergentes que a obra projeta para o futuro, prometendo-nos uma futura “crítica da razão prática”. Quais são essas duas linhas de fuga? São aquelas que se desdobram, sobre fundo de finitude e de intersubjetividade precária e que apontam, num caso, para uma ética da intimidade e, em outro, para uma moralidade objetiva.

 

Racionalidade do mundo contemporâneo

Antes da redação de “Certa Herança Marxista”, Giannotti já havia exprimido essas ideias, respondendo a uma questão de Balthazar Barbosa Filho, por ocasião de um debate que consagramos a seu livro anterior. A questão formulada por Balthazar visava a algo como uma limitação necessária na descrição giannottiana da “racionalidade do mundo contemporâneo”. Grosso modo, haveria problema com o “projeto iluminista modesto” de Giannotti, já que o recurso a Wittgenstein implica o reconhecimento de um limite essencial no processo de “desalienação gramatical”.

É claro que Giannotti não ignora (pelo contrário, teoriza) a ideia de algo como uma ilusão ao mesmo tempo necessária e objetiva (que é, com efeito, a mercadoria?). Mas é preciso reconhecer que parece difícil conceber, como insiste Balthazar, um projeto iluminista, mesmo modesto, “porque faz parte, eu penso, de qualquer gramática transcendental, a preservação da necessidade do erro gramatical”.

A saída de Giannotti parece ser reconhecer na parte de sombra, de opacidade, isto é, da intimidade vivida ou da autenticidade, o campo de uma ética que escapa à aporia formulada. Mas que pode significar uma ética na intimidade? Essa é minha questão, que sei ser perfeitamente ingênua. Não estaríamos aqui perto de algo semelhante a uma “linguagem privada”? Emprestar dinheiro a mim mesmo ou ser ético em segredo? De outro lado, não parece a ideia de uma moral objetiva contradizer formalmente toda e qualquer oposição entre ser e dever-ser? Santificação do que está aí?

Bento Prado Jr. (1937-2007) foi professor titular de filosofia na Universidade Federal de São Carlos. Autor, entre outros livros, de Alguns ensaios (Paz e Terra).

Publicado originalmente no jornal Folha S Paulo, caderno “mais!”, em 22 de outubro de 2000.

 

Referência


José Arthur Giannotti. Certa herança marxista. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, 336 págs.

 

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