Eu de você

Annika Elisabeth von Hausswolff, Oh mãe, o que você fez #032, 2021
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Por ALEX ROSA COSTA*

Comentário sobre a peça teatral, estrelada por Denise Fraga, em cartaz em São Paulo

“Vê-se um trapeiro vindo; balança a cabeça \ E, como um poeta, bate nos muros, tropeça; \ Sem cuidar dos espias, a ele agora afetos, \ Expande o coração em gloriosos projetos”.
(Charles Baudelaire, O vinho dos trapeiros. Na tradução de Júlio Guimarães).

Charles Baudelaire, nesses belos versos, homenageia uma personagem esquecida da vida urbana, por mais que inseparável dela, aproximando-se dela, comparando-a explicitamente ao poeta. Tal como o trapeiro, que passa os dias a catar trapos e papeis velhos jogados fora, alheio à vigilância feroz da vida moderna, o poeta recolhe nas ruas palavras e histórias, com o coração aberto para “gloriosos projetos”.

A tradição artística moderna, posterior a Charles Baudelaire, aproximou-se cada vez mais dessa metáfora, dando à poesia um lugar ao lado do resto da vida, não mais acima, sem, contudo, confundi-la com a banalidade. Charles Baudelaire igualou-se ao renegado – mesmo que possamos acusá-lo ainda de romantizar a exclusão – não a um mensageiro divino; ele não pediu ajuda das musas, pelo contrário, voltou-se ao vinho bebido nos cantos escuros da cidade.

De certo modo, a arte posterior apropriou-se da imagem quase que como uma regra: a arte não pode mais ficar afastada da vida normal, não pode colocar-se como um momento extraordinário sem qualquer relação com a vida vivida, como que para esquecê-la – à moda das produções superficiais –, tampouco deve ela tratar apenas dos feitos heroicos, dos encontros e interioridades de grandes líderes e figuras inatingíveis.

A arte aconchegou-se na vida comum, apropriando-se do banal para desbanalizá-lo, afastando o automatismo e revelando a pujança e a beleza infindáveis do trivial. Não que toda arte deva fazer isso, mas agora ela pode.

A peça Eu de você, estrelada por Denise Fraga, voltou aos palcos de São Paulo (agora no TUCA), para nosso encantamento. A peça se insere na tradição baudelairiana de recolhimento de trapos. Todo o seu roteiro se constrói com relatos reais recolhidos de pessoas normais, misturados com trechos de grandes poetas e escritores, bem como com músicas populares. Como resultado, temos uma belíssima colcha de retalhos que traz a público o próprio público – a arte mostrou-se aí como puro gesto de poetização que convida para o reencantamento do banal, assim como para a atenção à dor menosprezada porque banalizada e ignorada.

Talvez o maior mérito da peça seja recolocar na vida o afeto que, ao mesmo tempo, a vida merece, mas afasta de si. Ao nos colocar perante histórias variadas, que, às vezes, se aproximam de histórias nossas pessoais, às vezes se afastam, somos profundamente afetados – essas histórias nos afetam, nos atingem. Pessoas desconhecidas, das quais passamos afastados, mesmo quando nos esbarramos nas ruas, avizinham-se a ponto de nos encontrar na partilha das emoções cruzadas.

Por mais que tenhamos uma tradição de pensamento atomizada que sugere que nossos sentimentos ocorram isolados uns dos outros – agora, temor; agora, pressa; agora, alegria… –, a vida, para nosso bem, manifesta-se como muito mais complexa, pois os afetos sempre se dão em conjunto. Sentimos sempre misturas afetivas, cuja fragmentação realizada posteriormente pelo pensamento quase científico de separação de compostos apenas empobrece a vida.

Eu de você reaviva ao reconduzir-nos à vida vivida, não pensada, dando lugar à complexidade afetiva que nos constitui. Conseguimos, na peça, rir, chorar, entusiasmar-nos, acabrunhar-nos, enraivecer-nos, apiedar-nos – ao mesmo tempo. A força da peça, contudo, é ainda maior: esses afetos, agora retornados complexos, são partilhados.

Certa vez, Jean-Paul Sartre disse que a literatura é um compromisso conjunto de cumplicidade entre escritor e leitor. O teatro também, mas sua maior beleza encontra-se no fato de que não há um leitor, mas centenas de espectadores-partícipes simultâneos. Sentimos tudo e juntos, ao mesmo tempo. Trata-se da mais pura compaixão – a paixão compartilhada, que revela a humanidade e o compromisso conjunto de todos aqueles que fazem a peça acontecer.

A maestria dos artistas reside na capacidade de gerar uma atmosfera propícia ao afeto compartilhado, que se alastra a todo o ambiente, permanecendo vivo mesmo depois do fim da peça. De alguma maneira, sinto-me ligado a todos que viveram comigo aquele momento, com todas as pessoas cujas histórias me tocaram, com todos os artistas que fizeram aquilo acontecer. E não podemos negar: Denise Fraga é uma mestra inigualável.

O próprio movimento da artista de fazer uma colagem com histórias reais já enfraquece a separação entre arte e vida. A atuação de Denise Fraga, contudo, explora ao máximo esse potencial. Antes do início da peça – se é que possível falar em início – ela está na plateia, conversando, andando pra lá e pra cá, recebendo os convidados na sua casa. Ela começa a falar no microfone para todos ouvirem o que parece ser a continuação da conversa que estava tendo com os espectadores – o que não deixa de ser.

Ela começa a contar uma história de quando era mais nova, aproxima-se do palco e, quando nos damos conta, a peça já havia começado há tempos. Os jogos de luzes, magistrais durante todo o espetáculo, acompanham o movimento do texto e da atuação: a peça não começa com cortinas fechadas e luzes apagadas, com os atores atrás a serem revelados, mas com as luzes acesas, a atriz no nosso meio, sem cortinas e quaisquer separações.

É como se Denise Fraga conseguisse nos pegar todos pela mão e nos encaminhar para dentro da história que ela queria nos contar, uma história de muitas pessoas para as quais ela deu voz. Sem nos apercebermos, já estamos lá dentro, cúmplices, participando daquele momento. Toda dispersão típica cotidiana, tanto da atenção quanto dos afetos, é substituída por uma total presenciação – a peça nos faz presentes, fincando-nos no momento que, de tão belo, agiganta-se em sua finitude.

Perdemos a capacidade de discernir que fala está ou não no roteiro, que momento começou o espetáculo, que momento acabou (para mim, ainda não acabou!). Mesmo assim, sabemos que estamos numa peça de teatro. Sem conseguirmos falar quando ou como, aquilo começa e já estamos engolfados no acontecimento.

Mesmo com tudo isso que descrevi acima, o teatro continua sendo teatro – não é apenas mais uma conversa cotidiana. É um momento diferente, mas cujas fronteiras com o ordinário são esmaecidas. Que a peça continue distinta do resto da vida, trata-se de uma necessidade. Que ela seja afastada, uma lástima. Sua potência se encontra em nos fazer querer que aquele momento não acabe e que o todo o afeto propiciado por ele se espraie por toda a vida. O teatro assim – distinto, não afastado da vida – faz-nos exigir dela algo mais que a monotonia – ajuda-nos a querer viver, assim como vivemos ali.

A atenção da peça ao mundo vivido se mostra igualmente nas temáticas tratadas. Mesmo que em nenhum momento seja panfletária, explícita ou carregada, – eis sua virtude – a peça é profundamente política. A todo momento, uma tensão de nossa vida atual é trazida na voz de uma pessoa/personagem diferente. Aquela peça foi feita para aquele público – para nós. Nossas dores e angústias cotidianas compartilhadas se fazem presentes.

Somos convidados a nos encarar na história do outro, percebendo que nossos sofrimentos não são solitários, mas comuns a muitos, num gesto de intensa fraternidade, como fala Simone de Beauvoir na voz da atriz. Dores que porventura não vivemos tornam-se próximas. O movimento político da peça consiste, também, em promover o reconhecimento da alteridade: não sofro desse sofrimento, é verdade, mas reconheço-o e ponho-me como aliado em seu combate.

Dentre as diversas fronteiras tensionadas na peça, cabe ainda mencionar o gênero da peça. Escolheram um monólogo, cujo significado, ao menos desde Shakespeare, se refere a uma exteriorização de uma individualidade. Monólogo é a fala única, a fala de um eu para os outros.

Eu de você é um monólogo, mas não de um eu. Denise Fraga é uma atriz, mas sua voz ali é de muitos. Assistir à peça faz perceber que, na fala aparentemente mais individual e solitária, habita uma comunhão intensa com toda a humanidade. Ao se afundar no monólogo, a atriz não revela os segredos de uma personagem apenas, mas a intimidade de múltiplas pessoas, de tal modo que, ao fim da peça, sentimos ter passado um bom tempo conversando com bastantes amigos, mesmo que, em todos, possamos distinguir o gesto afetuoso e delicado de Denise Fraga.

Por fim, é importante elogiar o esforço de tornar a peça acessível, com a presença de intérpretes de libras e com audiodescrição. Se puder, deslumbre-se com a penetrante delicadeza de Eu de você e renove sua crença no poder do teatro.

*Alex Rosa Costa é doutorando em filosofia na UFABC.

Referência


Idealização e Criação: Denise Fraga, José Maria e Luiz Villaça
Com Denise Fraga
Direção: Luiz Villaça
Produção: José Maria


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