Por LUCIANA MOLINA*
Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
1.
Começo com uma obviedade e peço para que o leitor seja indulgente com o texto e não o abandone. É muito difícil adaptar Clarice Lispector para o cinema. Tão logo Lispector entrou na cena literária brasileira, foi comparada com supostos símiles europeus. James Joyce. Virginia Woolf. Marcel Proust. Alguém poderia sugerir o estadunidense William Faulkner. Nada se assemelha. Nada.
A literatura de Clarice Lispector se faz em uma encruzilhada que mistura narrativa, poema em prosa, ensaio filosófico… tudo isso abarrotado de alegorias incandescentes, que riscam o texto em várias direções. O que a diferencia dos símiles estrangeiros é que por vezes a narrativa é apenas um fiapinho segurando o texto por um triz. A partir do perigo constante de perder-se no não narrativo, o texto se transforma em um experimento caudaloso com a própria linguagem.
O problema para quem ousa adaptar sua obra para o cinema é o de se deixar levar por apenas um dos aspectos do texto, retirando ingredientes importantes da fina alquimia literária de Clarice Lispector.
Podemos tomar como exemplo o caso de A hora da estrela (1985). Apesar de bem-intencionada e com alguns acertos, a adaptação de Suzana Amaral transformou o filme em uma narrativa superficial e plana, destituindo-lhe da rica vida subjetiva de Macabéa, além de eliminar por completo as tensões metalinguísticas tecidas a partir da existência do narrador Rodrigo S.M. Talvez isso tenha ocorrido pela possível confusão entre A hora da estrela e os romances sociais de que Clarice Lispector lança mão para construir seu pastiche.
É da contradição construída entre o narrador pequeno-burguês e a retirante nordestina que se encontra um dos traços mais provocativos do texto. Enquanto a obra de Clarice Lispector é um dos maiores acontecimentos do modernismo brasileiro, a adaptação de A hora da estrela é uma narrativa convencional e sem charme.
2.
Já A paixão segundo G.H. (2023), recentemente exibida no cinema, vai para o extremo oposto. Em formato que remete a um filme-ensaio, a obra reproduz tiques frequentemente associados a um tipo de “cinema de arte”, que, justamente por serem tão habituais nesse meio, acabam não trazendo a distinção necessária à constituição de uma personalidade artística.
Isso em parte é explicado pelo histórico de seu diretor. Luiz Fernando Carvalho foi muito bem-sucedido ao realizar a adaptação cinematográfica de Lavoura arcaica. Raduan Nassar e Clarice Lispector compartilham um certo lirismo. Ao adaptar o primeiro, Luiz Fernando Carvalho conseguiu transformar a poesia do original em poesia cinematográfica.
Mas tal não ocorre em A paixão segundo G.H. Por apego e fidelidade excessiva ao texto original, ele não consegue se desfazer das palavras de Clarice Lispector. O filme dificilmente poderia ser mais palavroso. E, com isso, perde-se o sentido e o sentimento contidos na palavra do original. O resultado é aborrecido, pomposo, pesadíssimo.
Algumas objeções também podem ser levantadas ao modo como ele interpreta os parcos elementos sociais que aparecem pelas frestas do texto.
Leituras recentes de Clarice Lispector evocam a tensão entre a patroa G. H. e a empregada (aliás, tensão comparável à existente entre Rodrigo S. M. e Macabéa). No filme, a interpretação dessa questão levou a decisões questionáveis no que se refere à caracterização da personagem G. H. e a mise-en-scène, que sugerem uma mulher de classe média alta andando pelo seu apartamento suntuosamente decorado.
O filme busca deliberadamente acentuar o contraste entre a patroa de olhos claros e a empregada negra, sem que isso tenha levado a uma representação acurada de aspectos sociais e existenciais dentro da estética clariceana. O confronto com a alteridade e o incognoscível é um elemento que frequentemente irrompe na prosa de Clarice Lispector. Mas, com ele, também há um desejo enorme de empatia e compreensão – observável na figura ambivalente do já citado Rodrigo S.M, que ama e repele Macabéa.
Além disso, parece construir uma dicotomia falsa entre as elocubrações de cunho existencial e metafísico da protagonista (que, nesse contexto, parecem simplesmente derivados de um luxo fútil e ocioso) e a vida prática da empregada doméstica. A tensão entre a vida teórica e a vida prática deu lugar a uma dicotomia excessivamente estanque na obra de Carvalho.
Um amigo, também entusiasta de Clarice Lispector, me confidenciou que achou a adaptação de A paixão segundo G. H. breguíssima. Há muitos elementos que remetem ao mau gosto nesse filme. Mas não parece se tratar de um kitsch estilizado e deliberado (que talvez o salvasse de sua excessiva solenidade).
A atuação de Maria Fernanda Cândido é por vezes exageradamente teatral, como se estivesse declamando Clarice Lispector em um sarau de poesia na Zona Sul do Rio de Janeiro. Às vezes remete àqueles esquetes de humor que ironizam a intelectualidade da elite carioca e que pipocam no feed das redes sociais. É como ler na Veja sobre o encantamento de uma socialite que descobre a obra de Albert Camus. A personagem parece ter sido genericamente caracterizada como uma heroína da novela das nove da Rede Globo que, por vezes, lê “romances sofisticados”.
Vemos a atriz impecavelmente maquiada e com brincos brilhantes por closes excessivos em seu rosto lindíssimo. Percebemos, quando a câmera abre, que ela usa um robe de chambre e circula por seu apartamento classicamente decorado. É quase uma caricatura. Nos seus piores momentos, parece que Maria Fernanda Cândido faz parte de um comercial para a TV. Provavelmente um comercial de brincos ou xampus. Mirando em um requinte excessivo, o resultado foi o da breguice e da afetação derivadas da ostentação dos ricos.
Além disso, a estrutura da obra cinematográfica foi deixada à deriva. Tudo gira ao redor do texto de Clarice Lispector sendo declamado de forma artificialíssima. Do meu ponto de vista, isso suscitou enorme desconexão com a protagonista. O filme soa como uma chatíssima digressão.
Talvez possamos dizer que um dos grandes trunfos da prosa clariceana é o estabelecimento de uma identificação com as paisagens interiores de sua literatura – o que faz com que todos os seus entusiastas se sintam próximos e íntimos do texto. Ou seja, a falta de conexão e empatia com a G.H. do filme soa como um erro fatal.
Em suma, eu fundaria uma Igreja para Clarice Lispector, mas mal consegui suportar as duas horas da adaptação de A paixão segundo G. H..
3.
Com isso, advogo que a matéria das obras de Clarice Lispector nunca foi o sério e o solene, e sim o trivial existente na experiência do primeiro beijo, no desejo de ler um livro, na admiração por rosas ou no encontro fortuito com uma barata.
Há uns dois anos foi exibida nos cinemas a adaptação O Livro dos Prazeres (2023), dirigido por Marcela Lordy. O romance também não é das obras mais fáceis de se adaptar dentre as produzidas pela escritora, mas o resultado me soou melhor. É mais feliz ao tentar adaptar os diferentes ingredientes de Clarice Lispector.
Lóri é mostrada como uma professora de artes que usufrui de um confortável apartamento no Rio de Janeiro graças à herança da família. À semelhança de G. H., ela tenta desvendar as paixões e os prazeres humanos em sua relação com o outro. Como uma mulher solteira de classe média, Lóri alterna entre encontros afetivo-sexuais e momentos de solitude. Há também algumas adaptações bem-sucedidas para questões contemporâneas em formato de acenos para a conjuntura política brasileira. O filme inclusive faz melhor uso do cenário carioca, mostrando-o não apenas como a paisagem esperada de um apartamento de classe média, mas também nos aspectos simultaneamente familiares e peculiares que embalam os dias.
Nesse sentido, parece-me que na adaptação de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres há melhor compreensão do estilo e das temáticas clariceanas do que nas outras duas, que se perdem ao optarem por seguir apenas uma das facetas do complexo material que lhes serve de fonte. Na obra de Clarice, afinal, a epifania, o mergulho na metalinguagem e na subjetividade não se dão em oposição ao prosaico e ao mundano. Muito pelo contrário: é justamente do cotidiano insuspeito que afloram e irrompem as intensidades.
*Luciana Molina é doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp. Atualmente, é professora de Língua Portuguesa e Literatura da Secretaria do Estado de Educação do Espírito Santo.
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