Por THOMAS AMORIM*
Como Walter Benjamin percebeu, os mortos seguem interessados na construção de um futuro melhor e também Fredric Jameson continua e continuará conosco
“Em futuras sociedades, as pessoas ainda ficarão velhas e morrerão, mas o questionamento pascaliano do marxismo é de outro tipo, ou seja, a ideia de que a morte em uma sociedade fragmentada e individualizada é muito mais assustadora e carregada de ansiedade que em uma comunidade genuína, em que morrer é algo que acontece ao grupo mais intensamente que ao sujeito individual”[i]
Fredric R. Jameson, falecido em 22 de setembro de 2024, construiu um legado teórico incontornável para a crítica marxista do século XXI. Nascido em Cleveland em 1934, ele viveu décadas revolucionárias, épocas de guerra, períodos de pacificação social e eras de intensa polarização política – tanto tempos de promessas luminosas e criatividade política como épocas de obscurantismo e dura reação.
Fredric Jameson fez precisamente do tempo o tecido fundamental de sua crítica social, porém, ironicamente, consagrou-se no panteão dos grandes intelectuais justamente com a explicação do “fim da história”, pelo diagnóstico socioeconômico de que seu fundamento era o capitalismo globalizado, período que poucos compreenderam de forma tão profunda como ele.
Há apenas cinco meses, Fredric Jameson esbanjava energia na atividade virtual de comemoração de seu nonagésimo aniversário, ao mesmo tempo em que evidenciava sua preocupação com temas contemporâneos como o genocídio palestino e reafirmava o seu compromisso teórico-político em tempos de colapso social, de evidência das infindáveis barbáries e catástrofes produzidas pelo capitalismo. A rápida deterioração de sua saúde e morte surpreendeu a todos aqueles que tinham como referência a sua lucidez, radicalidade, originalidade e produtividade, que se mantiveram enormes até o recente fim de sua vida.
Sabe-se que nem sempre se encontra um grande indivíduo por trás de um grande autor. Fredric Jameson pareceu-me fazer convergir, de forma exemplar, as duas formas de grandeza. Conheci Fred, como gostava de ser chamado, em 2019 e imediatamente percebi que a mente que havia me fascinado com o esclarecimento do inconsciente político do presente, com a periodização do capitalismo tardio e com o mapeamento cognitivo da pós-modernidade era também o corpo de um senhor que mantinha o brilho no olhar, o sorriso gentil e toda a jovialidade que se pode ter ao debater teoria ou ministrar uma aula.
A generosidade de Fred também se manifestou no trato pessoal com o qual me brindou desde os primeiros contatos por e-mail, as conversas por Skype, a acolhida em Durham (junto de sua igualmente simpática secretária Wendy), a leitura atenta e esforçada de meu artigo em português, a oferta de seus livros e o arrependimento sobre um de seus títulos. Além disso, a disponibilidade, a cordialidade constante, o convite para jantar e as conversas que não quero esquecer sobre teoria da literatura, sobre as lacunas da ficção científica e sobre a política do Brasil, dos Estados Unidos e da China deixavam claro eu não estava diante de um pensador encastelado ou de uma pessoa mesquinha.
Apesar de toda a paciência de Fred com os momentos gaguejantes de meu inglês, não pude concluir minha série de questões: como as formas da pós-modernidade se manifestam nesse ou naquele objeto artístico, cultural ou político? Que tipo de relação entre utopia e ideologia encontramos nas obras recentes da cultura de massas? Quais as modulações nacionais que a temporalidade do “presente perpétuo”[ii] assume no Sul global? Naquele começo de desenvolvimento do doutorado, eu tinha tantas questões a fazer que é impossível não lamentar as lacunas de elaboração que me impediram de aprofundar e aproveitar mais aqueles diálogos.
Fredric Jameson, a figura imponente da crítica cultural, no entanto, eu havia conhecido ainda na graduação, logo percebendo algo de tremendamente original, que era capaz de explicar a “aparência objetiva” do sistema social de modo muito mais completo do que tudo o que eu já havia lido. Descobri e me encantei pelo caráter onívoro do autor que, desde a sua tese de doutorado Sartre: the origins of a style, em 1961, passando por Marxismo e forma, de 1971, até Arqueologias do futuro, de 2005, continuamente elaborava uma crítica cultural radical capaz de compreender as filosofias de Sartre, Lukács, Bloch, Adorno, Benjamin e Althusser, ao mesmo tempo em que incorporava as mais diversas contribuições teóricas da psicanálise, do estruturalismo, do pós-estruturalismo etc.
Pós-modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio,[iii]sua obra mais famosa, foi para mim não apenas impactante como um divisor de águas, aquela periodização repentinamente tornou compreensível uma série de fenômenos desconcertantes do mundo contemporâneo e tornou impossível observar a paisagem sociopolítica e cultural pós-moderna da mesma forma. Um desdobramento da crítica marxista e retorno a Marx que é tomado por alguém do porte de Perry Anderson como o ponto de culminância e de superação do marxismo ocidental.[iv]
Eu poderia dizer que Fredric Jameson me despertou do sono distópico do “fim da história”, expondo o modo como o desaparecimento do futuro não era uma moda filosófica, uma invenção estética ou raio em céu azul, mas o resultado final da própria modernização, a supressão das sobrevivências dos universos pré-modernos. Logo pude perceber que a crítica à pós-modernidade não era feita por qualquer negação abstrata dos processos sociais que a engendravam, e sim pela elaboração histórica da cultura e por uma interpretação genuinamente dialética das metamorfoses ocorridas no fim do século XX e que se tornavam material e simbolicamente visíveis em campos tão diversos quanto a literatura, o cinema, a arquitetura, a teoria, a ideologia, a utopia e os afetos.
Os passos seguintes de minha particular descoberta desse grande pensador não foram menos surpreendentes e instigantes. A obra clássica O inconsciente político fornece as ferramentas fundamentais para a interpretação histórico-cultural do desenvolvimento do modo de produção capitalista e do envelhecimento objetivo do mundo social e de suas narrativas. A apresentação do ato simbólico como monumento de uma coletividade é uma das mais impressionantes demonstrações de Fredric Jameson e uma de suas mais frutíferas contribuições teóricas, porque propõe uma hermenêutica que conecta formas e conteúdos à totalidade histórica que as constitui.
O capítulo que nos apresenta o frescor do mundo burguês no período de Honoré Balzac (1799-1850), a liberdade do desejo no realismo, é seguido pelo exame do recrudescimento das matérias-primas sociais e a construção de técnicas substitutivas no naturalismo de G. Gissing (1857-1903). O capítulo subsequente nos mostra a dialética que mantêm unidas na narrativa de J. Conrad (1857-1924) as formas de sublimação modernistas e os recursos de repressão da cultura de massas emergente.
O slogan “sempre historicizar!” sintetiza a radicalidade da proposta de Fredric Jameson, que é mais do que a reformulação das teorias estéticas de György Lukács ou Theodor Adorno, mas a exposição minuciosa das formas compreendidas rigorosamente como formas sociais, como artifícios ativos, mas inteiramente pertinentes às condições econômicas e ideológicas de formações sociais em permanente mutação.
A crítica imanente e a paixão dialética fizeram com que a crítica de Fredric Jameson jamais deixasse de pé quaisquer leituras maniqueístas dos objetos artísticos, culturais ou políticos sobre os quais se debruçava. Às versões vulgarizadas da crítica ideológica que a reduzem a deturpação mais ou menos intencional, Jameson contrapôs a percepção da ideologia como parcialidade, como limite estrutural e repressão. Ou seja, a leitura muito mais sofisticada de que a ideologia se apresenta como desvio que porta, em si mesmo, inevitavelmente, sua negação, um germe utópico ou um “grão genuíno de conteúdo” como oferenda em favor da gestão da consciência operada pela cultura de massas.[v]
Dessa maneira, a ideologia não é apenas a “falsa consciência”, ausência de crítica, mas é uma forma de repressão que se funda na transcodificação da experiência histórica e coletiva na linguagem cinzenta e fragmentária imposta pelo cotidiano. É imperativo compreender como a falsidade deve barganhar e mesmo flertar com a verdade que ela omite.
Por exemplo, as matérias-primas simbólicas empregadas na construção de best-sellers, de filmes comerciais e igualmente dos discursos políticos mais falsificadores não podem advir de outro lugar senão da experiência real dos indivíduos em sociedade, o que significa que elas portam um momento de verdade daquela realidade. O próprio desejo só pode ser eficientemente manipulado se ele for primeiro, em alguma instância, reconhecido e evocado.
De maneira similar, a crítica ideológica não se reduz a denúncia da inverdade e a “simples” apresentação da verdade científica, mas é a demonstração detalhista dos laços que unem a ideologia e a utopia dentro de uma determinada construção simbólica e a compreensão de como tal configuração responde ao seu próprio contexto histórico.
O poder sedutor de uma estratégia de contenção, a capacidade do parcial de ofuscar a totalidade, demanda uma configuração simbólica que favoreça a sobreposição de saberes incompletos, sem favorecer que eles se apresentem como contradições. Em muitos casos, há um nítido elemento de autoengano, de prestidigitação mental, uma má-fé que permite ao indivíduo conhecer e desconhecer a realidade simultaneamente.
Creio que as consequências filosóficas e sociológicas dessa hermenêutica proposta por Fredric Jameson sejam das mais importantes para intervir nos debates políticos e culturais de nosso tempo. E, por essa razão, toda a reflexão desenvolvida em livros como aqueles que compõem a sua Poética das formas sociais ou no grandioso Valences of dialectics está longe de se limitar a uma reflexão especializada da teoria literária, mas são as investigações mais consequentes sobre as leis sociais que ordenam a experiência coletiva na era do capital e sobre as contradições que se desenrolam no interior dela.[vi]
Em polêmica com os críticos da chamada “história linear”, Fredric Jameson citou o famoso entrevistador estadunidense Larry King, que dizia que a pior coisa sobre a morte é nunca descobrir o que vem a seguir. Era justamente tal ânsia pelos próximos capítulos da história que caracterizava a pesquisa de Fredric Jameson, mas é possível que a angústia da morte fosse nele amenizada precisamente por sua atividade utópica que vislumbrava a possibilidade da reconciliação histórica e via na emancipação coletiva o antídoto para a fragmentação e privatização extrema dos nossos dias.
Talvez não seja possível evitar que a morte de Fredric Jameson se apresente para os seus amigos, admiradores e colaboradores como uma lacuna irremediável ou, pelo menos, como uma dolorosa ausência de resposta para perguntas tais como aquelas que ficaram represadas durante minha breve visita a Durham e que nunca poderão ser respondidas por seu destinatário, porém o interesse ávido de Fredric pelo destino coletivo é uma parte decisiva de sua herança para todos os que se deixaram tocar pelo espírito de seu trabalho e por sua existência.
A esperança de um mundo melhor é o guia mais confiável para orientar as intervenções políticas vindouras e a práxis, mas também para regular nossas ansiedades, desconfianças e medos particulares na realidade individualista e degradada do presente. Como Walter Benjamin percebeu, os mortos seguem interessados na construção de um futuro melhor e também Fredric Jameson continua e continuará conosco.[vii]
*Thomas Amorim é doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor de sociologia na Universidade de Brasília (UnB).
Notas
[i] Fredric Jameson, O Inconsciente Político. A Narrativa Como Ato Socialmente Simbólico (São Paulo: Ática, 1992), 265.
[ii] Fredric Jameson, The Antinomies of Realism (Londres: Verso, 2015).
[iii] Fredric Jameson, Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. (São Paulo: Ática, 1997).
[iv] Perry Anderson, As Origens da Pós-modernidade (Rio de Janeiro: Zahar, 1998).
[v] Fredric Jameson, Marcas do Visível (São Paulo: Paz e Terra, 2007), 30.
[vi] Fredric Jameson, Valences of the Dialectic (Londres: Verso Books, 2009).
[vii] Walter Benjamin, Teses “Sobre o conceito de história”, 2005.
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