A crise política e o “pensamento desejante”

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Análises de conjuntura não devem ser mecanismos terapêuticos, tampouco devem destinar-se à emulação da militância. Crítica ao artigo “A debilidade da esquerda”.

Gosto muito e sempre acompanho as publicações de Luis Felipe Miguel. Atrever-me-ei, todavia, a tecer alguns comentários críticos ao seu artigo publicado no dia 23 de março, no site A Terra é Redonda. Penso que os fundamentos (equivocados, em minha opinião) do raciocínio do cientista político ao analisar a conjuntura atual são compartilhados por parte importante dos quadros e da militância da esquerda brasileira hoje.

De saída confesso minha usual implicância apriorística com toda e qualquer formulação de intelectuais progressistas que falam de nós mesmos na terceira pessoa – o artigo de LFM declara a debilidade “da esquerda”. Penso de cara na imagem dos sábios numa “torre de marfim” e no conceito de práxis. Esforço-me para minimizar arraigado sentimento de que o escrito a ser lido carregará um pouco de soberba e muito descolamento. LFM abre seu artigo constatando o óbvio: a debilidade da esquerda brasileira no atual período histórico. OK, descobriu-se a pólvora.

Depois, o autor trata de puxar a orelha do campo progressista, que deveria estar apresentando “propostas concretas e viáveis”, em um movimento para “estabelecer uma interlocução com os tomadores de decisão que permita a adoção de medidas que protejam as maiorias mais vulneráveis e mobilizar em favor delas o máximo de pressão possível”.

Corretíssimo. Mas, isso tudo já vem sendo feito, e bem feito, na medida do possível. O PT e o campo progressista vêm elaborando, propondo e forçando a aprovação de um conjunto de medidas desde, pelo menos, 16 de março. Uma delas, a renda básica (“seguro-quarentena”), foi aprovada no Congresso no último dia 26, depois de muita pressão e ação contundente do Partido dos Trabalhadores e de toda da centro-esquerda junto ao chamado “centrão”.

LFM erra ao tentar ensinar coisinhas que já estão sendo feitas pela débil esquerda. O artigo cai na armadilha do senso comum. Qualifica as ações de Bolsonaro como “irracionalidade ostensiva”. É um sentimento compreensível, muito presente em nossa base social, na militância menos formada. Bolsonaro e seu entorno não são loucos, nem psicopatas (aliás, nós não somos psiquiatras para fazer diagnósticos, ou somos?). Eles são agentes políticos com um programa neofascista e ultraliberal e contam com um grande apoio de Donald Trump, se articulam internacionalmente. Precisamos deixar de patologizar, ou de usar adjetivos morais para qualificar (xingar) o ex-capitão e sua turma.

Porém, o próprio autor se dá conta, em seguida, de que “a irracionalidade de Bolsonaro tem método”. Parece haver uma tensão no raciocínio do professor, opondo seus sentimentos à frieza analítica. Essa tensão perpassa todo o artigo. Por exemplo, LFM registra: “pesquisa divulgada hoje mostra que uma expressiva minoria – 35% dos consultados – aprova suas ações [de Bolsonaro]”. Imediatamente, cai em um raso julgamento moral, mas é obrigado a reconhecer que o “bolsonarismo” guarda força e tem método: “o dado mostra que Bolsonaro, que ainda conta com o apoio dos líderes inescrupulosos de algumas das maiores seitas cristãs do país, sabe para qual público está falando”.

Parágrafo seguinte, volta a predominar no texto o polo do desejo, o coração do autor: “é ainda mais urgente tirá-lo do cargo”. Eu pergunto: e quando não foi? A eleição de Bolsonaro foi fruto de um golpe. O problema não é nossa vontade de tirá-lo do cargo, mas as condições concretas, a disposição das massas, a correlação de forças.

Depois de mais dois trechos destinados a criticar as direções do PT-PC do B e do PSOL, Luis Felipe Miguel entra no terreno mais pantanoso de sua análise, na minha opinião. Adere, ligeirinho, ao que eu provocativamente denomino #esquerdaMourão. Vejam o que diz o professor da Unb: “a oposição à ideia de impeachment se baseia no risco de conceder a presidência ao general Mourão, num momento em que as circunstâncias podem justificar a adoção de medidas de exceção. No entanto, esse risco é um dado da realidade, que não é afastado por um mero ato de vontade. É melhor manter Bolsonaro no governo? Parece claro que não. Então a questão é: há alguma alternativa viável?”

Bem, primeiro eu pergunto: será que o impeachment é mesmo “viável”? Qual é a posição da burguesia e de suas frações, do governo Trump, das Forças Armadas? O Bolsonaro cairia assim, sem reação? O próprio LFM afirma que Bolsonaro conta com apoio. Muita vontade, pouca razão. Em segundo lugar: por que a esquerda deveria defender o impeachment e não, por exemplo, eleições gerais? Quais são as evidências de que é viável, imediatamente, derrubar Bolsonaro via Congresso Nacional? E mais: os critérios para balizar a ação do campo progressista devem mesmo ser esses (supostas facilidades para um suposto impedimento presidencial)? Seremos – estaríamos condenados a ser – mera “força auxiliar” de um possível governo Mourão-Maia?

LFM reconhece um “congelamento da luta política”. Afirma que não haverá mudança na correlação de forças que seja compatível com a “urgência de tirar Bolsonaro do cargo”. É uma pena que o articulista não desvele seus pressupostos ou não aponte as consequências do que propaga. Trata-se, a rigor, de apelo desesperado a uma espécie de “governo de salvação nacional”, liderado pela burguesia “liberal “ não fascista. Todo poder à Maia e à Globo. É uma posição política, ok, mas seria melhor explicitá-la.

Ao acenar com a possibilidade de “caos social” que nos conduziria a “um governo da lei e da ordem” fica mais nítido o raciocínio de Luis Felipe Miguel. A mim, soa forte como um grito desesperado: “melhor Mourão que a desordem que pode facilitar um golpe”. Parece temer mais a reação das massas do que um arranjo no andar de cima. A propósito, palavras de ordem mais ou menos radicais, por si mesmas, não resolvem nossos problemas, muito menos mudam magicamente o cenário político.

Retomando a tensão que permeia todo artigo – entre análise racional e reprodução de senso comum – é dito: “com ele [Bolsonaro] na presidência, a linha divisória inicial é entre sanidade e insanidade”. Eita! Que impulso quase incontrolável de levar para o campo da saúde mental o que é programa, tática, estratégia e ideologia!!

LFM finaliza assim: “estamos muitas vezes constrangidos a permanecer no mesmo campo de Maia, Dória e Witzel. Sem ele, ficam vencidos os temas óbvios e podemos concentrar o debate nas questões mais importantes: como enfrentar a crise (..) com propostas claras e realistas em defesa dos mais vulneráveis, a esquerda pode obter vitórias importantes”.

Tirando o fato da esquerda já ter propostas claras e relevantes que estão sendo difundidas amplamente e se tornando leis (renda mínima), a conclusão do autor expõe o equívoco fundamental da sua análise. Não há incompatibilidade de conjunto entre o neofascismo e o ultraliberalismo. Bolsonaro precisa das elites “limpinhas” e elas precisam dele, apesar dos ruídos e contradições crescentes.

A pergunta básica é: por qual razão o campo popular deveria optar entre neoliberais e neofascistas? Por que não apresentar nossas propostas de conjunto e disputar o poder, tentando mobilizar a classe trabalhadora, ganhando o povo para nossas ideias? O segundo grande erro é subestimar o “bolsonarismo”. A nave está avariada, mas continua voando. Duas coisas: não há “ordem unida” para operar a queda de Bolsonaro. E quem disse que é fácil derrubar o sujeito? Que basta apertar um botão?

Análises como a de LFM, infelizmente, são cada vez mais comuns em nosso meio. Algo compreensível, pelo grau de desorientação, angústia, tristeza e pela complexidade do cenário. Mas é preciso superar esse viés. Explicações assim exalam idealismo e impressionismo. Análises desse tipo deixam transparecer que bastaria uma palavra de ordem correta, uma boa linha política para orientar a nossa esquerda “toda errada”. Parece que sempre certos estão apenas os “intelectuais críticos” (a despeito, todavia, de não dirigirem nenhuma organização ou partido do campo popular-democrático). Como se mera mudança de palavra de ordem ou postura da esquerda determinassem a queda ou não de Bolsonaro já, imediatamente, right now.

Andamos muito angustiados, irados, tristes, perplexos. Daí que fica mais difícil resistir à tentação de abrigarmo-nos no “pensamento desejante”.  Análises de conjuntura não são, porém, mecanismos terapêuticos e tampouco destinam-se à emulação da militância.

*Julian Rodrigues é jornalista, militante do PT e ativista LTBTI e de Direitos Humanos.

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