Por SAMIR GANDESHA*
Tudo o que não é bem assimilado, ou infringe os comandos nos quais o progresso dos séculos foi sedimentado, é sentido como intrusivo e desperta uma aversão compulsiva
1.
Pode-se dizer que o capitalismo neoliberal contemporâneo se caracteriza por duas notas negativas bem significativas: aumento da desigualdade de renda e riqueza, e crescimento dos movimentos políticos de direita.
Observa-se, por um lado, um aumento impressionante na desigualdade social e econômica desde meados da década de 1970. Por exemplo, desde 1977, sessenta por cento do aumento da renda nacional dos EUA, conforme Thomas Piketty, foi canalizada para os dez por cento mais ricos da população. Dada a presente constelação de forças e tendências, tais como, por exemplo, o aumento do investimento em capital fixo e em inovação técnica que intensificam a automação, essa desigualdade só tenderá a aumentar nos próximos anos e décadas.
Por outro lado, em vez de um desafio robusto e radicalmente democrático ao enorme crescimento dessa desigualdade que abala os próprios alicerces da ordem política, eleva-se o apoio aos movimentos políticos populistas e autoritários em toda a Europa e América do Norte. Por movimentos populistas autoritários, entende-se aqueles que se opõem às forças liberais ora no poder e que têm a pretensão de representar a vontade do povo, entendida essa última em termos etnonacionalistas bem estreitos.
Conta como exemplo o avanço dramático da Frente Nacional em França já que saiu vitoriosa no primeiro turno nas eleições regionais de dezembro de 2015 – um avanço que foi interrompido no segundo turno por causa da votação tática dos socialistas franceses.
No entretempo, os EUA testemunharam a ascensão da chamada “alt-right” e a eleição de Donald Trump como presidente com base em uma agenda assumidamente racista. Profundamente xenófobo, esse ator político buscou, explicitamente, atacar a imigração por meio do México; ademais, ele propôs uma proibição completa de entrada de muçulmanos no país.
Como é possível explicar essa conjunção estranha e profundamente preocupante de aprofundamento da desigualdade socioeconômica e do crescente do populismo autoritário, ou seja, do extremismo etnonacionalista? Comentaristas da esquerda militante, como Stathis Kouvelakis, argumentaram que os partidos políticos neofascistas são movimentos antissistêmicos que, apesar disso, buscam preservar a ordem existente baseada nas relações de propriedade.
Eis como ele argumenta: “No entanto, é precisamente este aspecto da Frente Nacional – a sua capacidade de capturar e “hegemonizar” uma forma de revolta popular – que lhe dá força. Por isso, qualquer estratégia de “frente republicana”, seja parcial ou total, só pode alimentá-la, legitimando o seu discurso de “nós contra todos os outros”, assim como, também, o seu estatuto autoproclamado de única força que se opõe “ao sistema” – mesmo se faz isso radicalmente”.
De acordo com Stathis Kouvelakis, a Frente Nacional conseguiu desfrutar desse sucesso precisamente porque ocupa um terreno que foi quase totalmente abandonado pela esquerda anticapitalista. Eis que esta última se tornou incapaz de desafiar o bloco de poder existente por meio de um projeto contra hegemônico próprio. Só mediante esse projeto seria criada uma alternativa legítima ao capital neoliberal em geral e à austeridade em particular.
Em contraste, social-democratas como Jürgen Habermas, em seus escritos recentes sobre o aprofundamento da crise da Europa, argumentam que a crise resulta das instituições políticas. Para ser mais preciso, trata-se para ele de um problema que pode ser entendido como falta de uma institucionalização política adequada: uma zona do euro sem políticas externas e fiscais comuns, sem ademais uma ordem legal que poderia ser considerada como a personificação da vontade pública de uma constelação genuinamente pós-nacional.
Trata-se, para Jürgen Habermas, uma questão não de superar o capital, mas de colocar os subsistemas econômicos e políticos sob o domínio das formas de comunicação simbolicamente mediadas no interior do mundo da vida. Contudo, como foi visto nos últimos anos, a questão crucial de se é possível falar de um único mundo da vida europeu compartilhado pelo norte e pelo sul da Europa, Alemanha e Grécia, não tem ainda uma boa resposta. Como o próprio Jürgen Habermas afirma: “desde 1989-90, tornou-se impossível escapar do capitalismo; a única opção restante é civilizar ou domar a sua dinâmica por dentro”.
O que parece estar faltando em ambos os relatos da crise é reconhecer a necessidade de dar uma explicação ao crescimento dessa suscetibilidade bem pronunciada às soluções autoritárias por parte das pessoas. Eis que elas têm desprezado as soluções radicalmente democráticas para a crise da ordem social capitalista. E essa crise, em última análise, ameaça à democracia liberal não de fora, mas de dentro.
Então vem a questão: a crise é simplesmente de política e de ideologia? É uma crise simplesmente de institucionalização fracassada ou incompleta? Ou a crise é mais profunda do que isso e se relaciona com a formação da própria subjetividade democrática? Além de casos isolados e esporádicos, porque os cidadãos não foram convincentemente mobilizados na sociedade civil para transformar uma ordem caracterizada não apenas pela crescente desigualdade, mas também pela destrutividade ambiental catastrófica? Não se tem agora uma ordem social que coloca em questão a sua própria continuidade, ou seja, a sua viabilidade de longo prazo?
Como sugeri em outro lugar, longe de incluir o outro no discurso público, os movimentos populistas autoritários transformaram efetivamente os imigrantes, negros, requerentes de asilo e refugiados em inimigos numa ameaça existencial ao “modo de vida total” da comunidade prévia suposta.
Veja-se: assim que esse inimigo é construído por meio de uma linguagem carregada de afetividade desgostosa, que constitui o outro que veio de fora como uma presença estranha (Unheimliche) e abjeta – portanto, como profundamente ameaçadora. Como o outro é posto como incapaz de participar do discurso comum, ele deve ser, portanto, excluído – se necessário, violentamente – do corpo político.
O que se tem agora não é muito diferente dos tropos e das imagens por meio dos quais a propaganda nacional-socialista retratava os judeus. O populismo de direita contemporâneo constitui o outro em termos desumanizadores, projetados para maximizar o desgosto e o medo por parte do público: imagens de doenças, resíduos corporais, como insetos e vermes que ameaçam sobrecarregar e destruir o corpo político. Assim postos, eles apenas podem ser confrontados por políticas de exclusão que ocasionalmente exigem a suspensão da legalidade constitucional.
Como Max Horkheimer e Theodor Adorno sugeriram no último ano da Segunda Guerra Mundial, trata-se de um impulso para eliminar aqueles que parecem não idênticos como tentativa de colocar as coisas sob o domínio do controle técnico. Assim, qualquer elemento que pareça estar fora do controle ou, na verdade, que se afigure como incontrolável e que assim permaneça, provoca uma resposta automática de repulsa:
Mas qualquer coisa natural que não tenha sido absorvida na ordem das coisas úteis, que não tenha passado pelos canais de limpeza da ordem conceitual – um estilete que faz os dentes rangerem, o haut goût que traz à mente sujeira e corrupção, o suor que aparece na testa do diferente – tudo o que não é bem assimilado, ou infringe os comandos nos quais o progresso dos séculos foi sedimentado, é sentido como intrusivo e desperta uma aversão compulsiva.
2.
Esses desenvolvimentos parecem, pelo menos à primeira vista, contradizer profundamente a justificativa para a reconstituição neoliberal das relações sociais capitalistas contemporâneas, algo que remonta pelo menos a meados da década de 1970. Essa justificativa dizia que a preponderância dos mecanismos de mercado reorientaria as relações sociais em bases sólidas, ou seja, em bases livres e racionais, configurando o que Wendy Brown chamou criticamente de “mercantilização da democracia”.
Esses mecanismos foram entendidos em termos de escolhas racionais baseadas na capacidade dos indivíduos (ao contrário da capacidade do estado “burocrático”) de tomar decisões que maximizem a utilidade, por exemplo, nas áreas de assistência médica ou educação. Essa justificativa sustenta que as condições da vida social serão, de fato, muito menos sobrecarregadas por atavismo, nacionalismo xenófobo, racismo e sexismo, em proporção direta à preponderância da racionalidade de mercado como base para alocar bens sociais. O mercado sozinho pode atingir suavemente o tipo de equilíbrio que sempre deve ser contraposto à irracionalidade do Estado, da gestão, da coordenação e do controle.
A função supostamente iluminista do neoliberalismo no nível do indivíduo claramente saiu pela culatra, não apenas na Europa e América do Norte, mas também no chamado modelo Gujarat de Narendra Modi no subcontinente indiano, na medida em que este último também desencadeou tendências atávicas. Em vez de contribuir para as condições sob as quais os agentes podem exercer sua capacidade de articular seus próprios interesses de forma autônoma e racional, dentro do contexto de uma pluralidade genuína de outros interesses, levou a um excesso bem visível de agressão, humilhação e culpa.
O psicanalista belga Paul Verhaeghe observou recentemente que “o neoliberalismo meritocrático favorece certos traços de personalidade, assim como penaliza outros”. Ademais, ele considerou muitos desses traços como clinicamente patológicos. O capitalismo neoliberal encoraja, em sua visão, o raciocínio superficial, a duplicidade e a mentira, assim como um comportamento imprudente e arriscado, em vez da autonomia e da adesão racional às normas em constante mudança.
Eis como ele argumenta: “A nossa sociedade proclama constantemente que qualquer um pode obter sucesso apenas se esforçando o suficiente, ao mesmo tempo em que reforça o privilégio e coloca pressão crescente sobre seus cidadãos sobrecarregados e exaustos. Há um número crescente de pessoas fracassadas, que se sentem humilhadas, culpadas e envergonhadas. Sempre nos dizem que somos agora mais livres para escolher o curso de nossas vidas como nunca dantes; contudo, a liberdade de escolher fora da narrativa de sucesso é limitada. Além disso, aqueles que fracassam são considerados perdedores ou aproveitadores que passam a tirar vantagem do nosso sistema de seguridade social”.
A proliferação desses traços psicológicos surgiu em conjunto com o crescimento de formas autoritárias e excludentes de nacionalismo extremo e xenofobia. Eis que o efeito combinado desses desenvolvimentos é enfraquecer profundamente as atitudes, práticas e instituições democráticas.
3.
Neste artigo, examino até que ponto é possível revisitar o conceito de personalidade autoritária (…). Adorno e toda a primeira geração de teóricos críticos buscaram fornecer, por meio de uma apropriação da psicanálise e de uma crítica cultural mais geral, um relato que compreendesse a crise da subjetividade e, assim, da experiência social do seu tempo. Esse esforço crítico era visto como um corretivo necessário às teorias materialistas da crise objetiva do capitalismo, as quais apontavam para uma transformação radical do capitalismo, ou seja, para algo que nunca, em última análise, aconteceu. Na primeira frase da Dialética Negativa, Adorno descreve a não ocorrência desse evento da seguinte maneira: “a filosofia, que antes parecia obsoleta, continua viva porque o momento de superá-la foi perdido”.
Hoje estamos vivenciando a necessidade de fazer um retorno ao esforço original da Teoria Crítica nas décadas de 1920 e 1930. A teoria da pulsão psicanalítica (Trieblehre) e os conceitos como identificação projetiva e compulsão à repetição podem ser considerados novamente necessários.
Eis que estamos, de fato, diante da evidência de que as políticas neoliberais não apenas não funcionam, mas têm efeitos que podem ser contraproducentes e profundamente prejudiciais, ou seja, economicamente autodestrutivos. Contudo, essas políticas continuam a ser perseguidas por Estados com fervor redobrado e imprudente sempre que falham. Ademais, mesmo se há exceções notáveis, elas têm obtido uma quase total aquiescência dos cidadãos.
Como explicar esse paradoxo? A psicanálise nos fornece meios importantes. Com ela, pode-se pelo menos localizar os limites da compreensão ainda predominante, segundo a qual uma política baseada na noção de escolha racional maximiza verdadeiramente a utilidade.
A psicanálise oferece insights sobre a maneira como as pessoas participam, ativa e afetivamente, por meio de emoções poderosas de amor e ódio, na reprodução das condições de sua própria dominação e em detrimento dos seus próprios interesses materiais. Consequentemente, a psicanálise também pode ajudar na identificação dos limites e das possibilidades da autodeterminação democrática genuína e da formação da vontade.
Para a primeira geração da Teoria Crítica, o autoritarismo era a imagem inversa e negativa da psicanálise. Como Adorno sugere, trata-se da “psicanálise ao contrário”. Enquanto a psicanálise visa atingir um equilíbrio entre as exigências da moralidade e os interesses racionalmente justificáveis do indivíduo presentes em seus desejos, o autoritarismo autoriza a expressão plena da libido sob certas condições e, em particular, a agressão contra os outros, principalmente aqueles postos como estranhos. Eis que os estrangeiros, para o autoritário, incorporam Unheimlichkeit ou estranheza, um termo aqui usado para descrever algo que se afigura como estranho, mas também como muito familiar.
Ora, essa manifestação pulsional está baseada numa identificação com o agressor. Pois, pode-se dizer que essa ideia de identificação com o agressor fundamenta o conceito de personalidade autoritária. É o que um dos mais eminentes tradutores e intérpretes de língua inglesa de Adorno, Bob Hullot-Kentor, chama de vade mecum de Adorno – ou, dizendo de outro modo, a sua pedra de toque.
Na verdade, a preocupação de Adorno com o problema da identificação com o agressor, depois de 1933, apresentou-se como um problema existencial de como resistir às enormes pressões enfrentadas por qualquer pessoa deslocada ou refugiada para se adaptar à sua nova terra natal ou local de refúgio.
Referindo-se tanto à sua própria situação quanto à situação daqueles cujo destino era muito pior, em Dialética do Iluminismo, Adorno e Horkheimer fizeram referência a uma ordem cada vez mais totalitária: “Tudo deve ser usado; tudo deve pertencer a eles. A mera existência do outro é uma provocação. Tudo o mais “atrapalha” e deve mostrar seus limites – os limites do horror sem limites. Ninguém que busca abrigo o encontrará; aqueles que expressam o que todos anseiam – paz, pátria, liberdade – serão negados, assim como os nômades e os jogadores viajantes sempre tiveram seus direitos de domicílio negados”.
Adorno se refere à conexão entre essa realidade existencial que ele enfrentou no exílio americano e o desenvolvimento dos argumentos do que viria a se tornar seu livro principal, a Dialética Negativa. Como ele diz na palestra apresentada à Universidade de Frankfurt em 11 de novembro de 1965, na qual discute a afirmação hegeliana de que a negação da negação resulta em positividade: “Não posso resistir a dizer que meus olhos se abriram para a natureza duvidosa desse conceito de positividade apenas na emigração, onde as pessoas se viram sob a pressão da sociedade ao seu redor e tiveram que se adaptar a circunstâncias muito extremas. Para ter sucesso nesse processo de adaptação, para fazer justiça ao que foram forçados a fazer, era preciso ouvir dizer, a título de incentivo – podendo, assim, ver o esforço que lhes custava identificar-se com o agressor – Sim, fulano é realmente muito positivo”.
Após elaborar sobre esse ponto, Adorno disse ainda: “Por essa razão, portanto, poderíamos dizer, colocando em termos dialéticos, que o que parece ser positivo é essencialmente o negativo, ou seja, a coisa que deve ser criticada”. Em outras palavras, o que parece positivo, em última análise, abriga o não idêntico que ele assimila violentamente por meio do ato de subsunção.
4.
Então, de fato, a ideia da identificação com o agressor pode ser considerada como o cerne da filosofia de Adorno, de sua dialética negativa, como um todo. A capacidade de se envolver no trabalho de crítica foi em si mesma baseada na força do ego ou na assunção do papel do que Hannah Arendt chamou, seguindo Bernard Lazare, de “pária consciente”.
No que se segue, primeiro discuto algumas das características centrais do conceito de personalidade autoritária. Em seguida, são delineadas algumas das críticas substantivas feitas ao estudo em si mesmo, bem como algumas de suas suposições psicológicas e sociológicas subjacentes. Se o conceito de personalidade autoritária deve ser disponibilizado para a compreensão da estrutura da personalidade capitalista neoliberal contemporânea, duas críticas principais devem, em particular, ser feitas já aqui.
A primeira é a dependência do estudo original ao conceito, agora questionável, de capitalismo de Estado. Pode estar longe de ser claro que entramos, de forma direta, em um período em que o Estado simplesmente se retirou à medida que as forças de mercado não mediadas se reafirmaram. Mas a alegação sobre o ressurgimento ou mesmo a persistência da personalidade autoritária ainda pode ser viável, se tal alegação for articulada de uma forma que seja sensível tanto à identidade quanto à diferença do papel da governança neoliberal nas sociedades capitalistas contemporâneas.
Pode-se argumentar que, na transição da forma keynesiana para a neoliberal de capitalismo, a tendência ao autoritarismo cresceu na medida em que há cada vez mais demandas por “dessublimação repressiva” agora intensificada – algo, como se sabe, que foi teorizado por Marcuse, já em 1991 – em combinação com maior precariedade e mais insegurança. Há maior propensão a confiar no vínculo social excludente solidificado por uma poderosa figura de autoridade como o meio pelo qual tal segurança pode ser restabelecida.
O vínculo libidinal estabelecido no grupo e, assim, uma catexia ao líder, manifesta ambivalência — o amor ao próprio se traduz, também, em ódio ao estranho. De modo surpreendente, em apresentações do neoliberalismo, predominantemente influenciados pelo famoso trabalho de Michel Foucault sobre biopoder e governamentalidade, há pouco ou nenhum relato das respostas populistas, tanto de esquerda quanto de direita, ao aprofundamento da desigualdade e insegurança da ordem neoliberal.
A segunda crítica é a dependência do estudo original de uma compreensão freudiana normativa do processo de formação do ego por meio do conflito com o pai. Isso, eu sugiro, pode, em parte, ser abordado apoiando-se um pouco mais fortemente na formulação original do psicanalista heterodoxo Sandor Ferenczi. Eis que a ideia de “identificação com o agressor” — que por si só envolve uma constelação dos conceitos de identificação, introjeção e dissociação — recebeu ênfase na fase pré-edipiana do desenvolvimento, de tal modo que não marginaliza no processo o papel da mãe, como os críticos acusaram Freud de fazê-lo. Além disso, Ferenczi sugere que a relação com o líder autoritário não é meramente um vínculo libidinal, mas vem a ser, também, uma identificação que está – assim, pode ser vista – diretamente em desacordo com os interesses dos seguidores no contexto de uma crise histórica traumática.
Se essas duas críticas puderem ser avançadas de forma convincente, então talvez seja possível desenvolver a ideia de uma personalidade neoliberal, o que pode, por sua vez, nos permitir esboçar uma resposta provisória à questão colocada no início. Ou seja, como pode ser possível reconstruir o conceito de personalidade autoritária no contexto de uma ordem neoliberal pós-keynesiana? Uma resposta provisória pode ser dada aqui: ao desmantelar as estruturas do estado de bem-estar social keynesiano, o neoliberalismo eleva a sensação de insegurança social, especificamente ao criar populações excedentes, ao aprofundar a desigualdade socioeconômica, criando ameaças à identidade cultural.
Este é um processo que Achille Mbembe, em seu livro recente Crítica da razão negra, chama de “tornar-se o negro do mundo”. Ao expandir o âmbito da liberdade negativa, em grande parte por meio da expansão das relações de troca ou de mercado, enquanto diminui a esfera do autogoverno democrático ou da liberdade positiva, as políticas neoliberais encorajam uma identificação com uma ordem social pós-democrática cada vez mais desigual, ao invés vez de propiciar um desafio robusto a ela. Como o neoliberalismo se apresenta como um fenômeno global desde 1990, essa lógica autoritária tem afetado não apenas os EUA; na verdade, ela se tornou um fenômeno verdadeiramente global.
5.
Podemos apresentar agora os três momentos da apresentação da Dialética do Esclarecimento sobre a formação da subjetividade na nova situação. Ou seja, é preciso ver como se dão a identificação, a introjeção e a dissociação na formação da personalidade neoliberal.
Em primeiro lugar, diante de um mundo social marcado por uma guerra hobbesiana de todos contra todos, um estado de natureza que é, de fato, a realidade histórica do capitalismo, o indivíduo deve se fortalecer ou endurecer para poder competir contra os outros e, portanto, sobreviver.
Ele deve se subordinar e, portanto, identificar-se precisamente com os imperativos externos do princípio de desempenho predominante dessa ordem, tornando-se competitivo em relação a outros indivíduos. Ao mesmo tempo, para que os indivíduos façam isso com sucesso, essa adaptação ao exterior deve ser introjetada ou internalizada.
O indivíduo deve, portanto, renunciar à reivindicação de uma vida plena. O custo psíquico dessa dialética de identificação e introjeção das forças externas no interesse da autopreservação consiste numa diminuição na capacidade do eu de experimentar e, finalmente, de agir. E isso implica dissociação. A vida que deve ser preservada a todo custo se transforma, paradoxalmente, em uma simples sobrevivência; torna-se uma espécie de morte em vida.
6.
Procurei argumentar que algumas das fraquezas metapsicológicas do conceito de “personalidade autoritária” podem, pelo menos em parte, ser superadas por meio da noção de identificação com o agressor tal como formulada por Sandor Ferenczi. Também procurei indicar que a transformação do capitalismo de estado de bem-estar social teria que ser pensada por meio de uma concepção reconstruída do neoliberalismo.
Obviamente, a discussão anterior permanece em um estágio muito preliminar. Seja como for, a estrutura tripartite de identificação, introjeção e dissociação pode nos ajudar a entender o paradoxo de que, com o aprofundamento da desigualdade e da insegurança social, vê-se não o surgimento de uma oposição democrática, forte e radical, mas sim de partidos e movimentos autoritários. Como se pode, pois, entender a ascensão global do populismo de direita?
Pode-se fazê-lo da seguinte maneira. As condições de crise em curso da ordem neoliberal, combinadas com o aprofundamento da crise ecológica, tornam a ordem neoliberal radicalmente insegura em comparação com aquela que substituiu, na medida mesmo em que surge por meio de uma reversão das redes formais e informais de solidariedade e seguridade social.
É possível argumentar que, embora tenha contribuído para a modernização acelerada dos chamados estados BRICs (países tão diversos como Índia, Rússia, Brasil e China), a globalização neoliberal teve, em geral, uma miríade de efeitos adversos. Por meio de uma expansão da esfera das liberdades negativas associados ao mercado, a ordem neoliberal aumentou tanto a insegurança econômica quanto a ansiedade cultural por meio de três características em particular: a criação de pessoas excedentes, o aumento da desigualdade global e as ameaças à identidade.
Ao mesmo tempo, falhou em reforçar e desenvolver instituições nas quais e por meio das quais as pessoas pudessem controlar ou determinar seus próprios destinos (isto é, liberdade positiva). O resultado disso é uma experiência de insegurança social e ansiedade que, em última análise, contribui para forjar as condições em que certos grupos são transformados em objetos de medo e ódio. Como resultado, eles são definidos, por meio do discurso populista, como inimigos políticos ou inimigos do povo.
A experiência da ordem neoliberal pode, portanto, ser entendida como profundamente traumática. Como forma de sobreviver a essas condições de choque, pode-se dizer que os sujeitos se identificam esmagadoramente – não com as forças democráticas radicais que constituem um desafio robusto a tal ordem, sob condições de solidariedade com outros que enfrentam formas semelhantes de exclusão estrutural – mas, paradoxalmente, com as próprias forças sociais que mantêm e se beneficiam dessas estruturas. Pode-se dizer que introjetam a culpa do agressor nas próprias condições em que a crise se desenvolve.
Os defensores do neoliberalismo, como os intelectuais da Mount Pellerin Society, mais notavelmente Friedrich Hayek e Milton Friedman, sugeriram que as demandas irracionais dos cidadãos contribuíram para a crise da ordem keynesiana e tais demandas teriam que diminuir, ou mesmo serem abolidas, se a crise fosse enfrentada adequadamente.
Vê-se atualmente que são as classes média e trabalhadora branca que viram suas fortunas declinarem vertiginosamente nos últimos trinta anos. Sem dúvida, por isso mesmo, elas formam o núcleo de apoio a Donald J. Trump nos EUA. E aqui se vê o terceiro aspecto da identificação com o agressor: eis que tende a ocorrer uma dissociação dos próprios interesses. Pode haver alguma dúvida de que uma presidência de Trump implicaria – particularmente se certas leis em vigor forem revogadas ou levada ao colapso – um pronunciado aprofundamento da miséria para a maioria que a globalização simplesmente abandonou?
A identificação mimética dos fracos com a força parece ser uma estratégia de sobrevivência que é adotada. Os socialmente excluídos podem ter prazer vicário na postura de intimidação de um EUA que expulsa muçulmanos e constrói um muro em sua fronteira sul com o México para impedir a entrada de “estupradores, assassinos e traficantes de drogas”; o proverbial “lixo” produzido pela sociedade mexicana, segundo o Washington Post.
Assim, a ordem neoliberal com a qual os indivíduos se identificam – que é cada vez mais abstrata e anônima por natureza – não se apresenta como tal. Em vez disso, ela se concretiza como um forte corpo étnico ou nacional ou talvez até racial. Ela se manifesta na figura de um líder forte e decisivo, [i] um líder que se constitui em um campo de força contra um inimigo local ou estrangeiro. Assim, demais, ela se põe contra aqueles que pretendem defender os marginalizados e os excluídos.
Ademais, ela não contra apenas tais estrangeiros, mas também contra uma classe política cada vez mais venal. De fato, como Moshe Postone argumentou em sua análise afiada do antissemitismo, este último fenômeno representa, de forma deslocada, unilateral e reificada, uma crítica ao capitalismo na medida em que as próprias características abstratas desse sistema residem na representação estereotipada da figura do judeu.
Eis como Moshe Postone argumentou sobre o nazismo: “Os judeus eram desenraizados, internacionais e abstratos. O antissemitismo moderno, então, é uma forma de fetiche particularmente perniciosa. Seu poder e perigo resultam de sua visão de mundo abrangente que explica e dá forma a certos modos de descontentamento anticapitalista de uma maneira que deixa o capitalismo intacto, atacando as personificações dessa forma social”.
Hoje, pode-se argumentar, novos grupos passaram a ocupar lugar que era só dos judeus, às vezes ao lado deles. Na retórica do “profeta do engano” contemporâneo – foi assim que Richard Wolin denominou Donald J. Trump –, à figura do judeu junta-se agora ao do muçulmano e do mexicano. Na verdade, o lugar está sendo ocupado pelo imigrante, que também parece “sem raízes, internacional e abstrato”. A constituição da subjetividade neoliberal implica tornar cada um cada vez mais responsável por seu próprio sucesso ou fracasso.
Um dos epítetos mais cortantes usados por Donald Trump é “perdedor” [looser]. Desse modo, claro, põe-se mais pressão nos apoiadores trumpistas para que coloquem a culpa por seu próprio sucesso ou fracasso em membros de um grupo estranho ou alienígena que está presente no entorno. O que está afligindo os EUA não é o aprofundamento da desigualdade social e econômica combinada com o declínio do investimento de capital em empresas e investimento público em infraestrutura e escolas.
Não, não… pelo contrário. As adversidades provêm da fraqueza, da falta de determinação e de decisão dos políticos anterior que foram incapazes de eliminar a porosidade das fronteiras, assim como o movimento dos estrangeiros através delas.
*Samir Gandesha é professor da Universidade Simon Fraser, Vancouver, Canadá.
Excertos do artigo “Identifying with the aggressor: from the authoritarian to neoliberal personality”.Constellations, 2018, p. 1-18.
Tradução: Eleutério F. S. Prado.
Nota do tradutor
[i] Penso que não se pode concordar completamente com o autor nesse ponto. De fato, o líder neoliberal não vem a ser antes de tudo “forte e decisivo” como o líder fascista clássico. Se vocifera contra os mais fracos que chama de “parasitas”, na verdade, ele aparece na cena política como um empreendedor oportunista bem-sucedido que, ao governar, elimina ao máximo as restrições legais que supostamente impedem a prosperidade dos empreendedores. A sua figura emblemática é a do político antissistema que prega o anarcocapitalismo.
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