A formação histórica brasileira em debate

Imagem: Italo Melo
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Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO*

Os modos de produção vigentes ao longo da história do Brasil

No artigo “A colonização das Américas em debate”, publicado no site A Terra é Redonda, Mário Maestri recoloca uma questão central para a compreensão marxista da formação histórica dos países americanos, que é a caracterização dos modos de produção vigentes ao longo da história desta parte do mundo. No Brasil, em particular, o tema motivou acalorados debates durante os anos 60 e 70 do século passado.

Até então predominava entre os marxistas brasileiros a concepção da presença de relações comunistas primitivas, escravistas e feudais em nossa história, com a persistência de relações feudais no latifúndio coronelista, com relações de trabalho então dominantes de tipo parceria, como meação e terça, que são formas de renda em produto, e o cambão, renda em trabalho. Esta concepção embasava a proposta de luta pela reforma agrária por meio de repartição da terra entre os camponeses como transformação revolucionária e fundamental para o desenvolvimento nacional, em paralelo à luta anti-imperialista. Avaliava-se que tais lutas poderiam contar com o apoio de setores desenvolvimentistas da burguesia, o que era importante pela fragilidade das organizações populares num país de ainda baixo desenvolvimento industrial e com a dominação coronelista do campesinato.

Esta interpretação ortodoxa foi posta sob severo ataque, iniciado com a publicação de A Revolução Brasileira (1966) por Caio Prado Júnior, que negava a presença de relações semifeudais ou feudais a serem superadas e, mais ainda, considerava esta interpretação a grande responsável pela derrota política de 1964, por levar a alianças políticas com setores corruptos da burguesia.

Como se vê em História Econômica do Brasil, por exemplo, a análise de Caio Prado Júnior é centrada nas relações mercantis que dominaram a formação do Brasil durante a Colônia, o Império e a República Velha, já que só depois de 1930 o desenvolvimento brasileiro passaria a apoiar-se sobre determinações políticas e econômicas internas. Daí, Caio Prado Júnior tende para a interpretação da formação histórica brasileira como capitalista, embora reconheça a importância econômica da escravidão.

Ora, comércio e capital comercial existem desde a antiguidade, e a dominação econômica do capital comercial caracterizou o feudalismo avançado na Europa, conforme Marx. Na fase concorrencial do capitalismo predominara o capital industrial e, na fase monopolista, viria a predominar o capital financeiro, resultado da fusão dos capitais usurário, industrial e comercial. Marx também observa que a própria influência da atividade comercial sobre uma sociedade depende de seu modo de produção interno, que envolve as relações de produção e de propriedade, e relaciona-se historicamente às técnicas de produção.

O tipo de interpretação de Caio Prado Júnior receberia a alcunha de “circulacionismo”, por basear-se na esfera da circulação e desconsiderar o modo de produção. Vão na mesma linha autores como Fernando Novais, em seu Portugal e o Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808) (1979) e Theotônio dos Santos, em A teoria da dependência – Balanço em perspectivas (2000).

Mais do que pela questão teórica, o texto de Caio Prado Júnior foi bastante criticado trazer uma proposta revolucionária circunscrita à luta anti-imperialista, ignorando a reforma agrária. Entretanto, teriam ampla repercussão sua crítica às alianças com setores burgueses, bem como a responsabilização da tese da persistência de relações semifeudais ou feudais pela derrota política de 1964.

Resultou deste debate ampla convergência, no âmbito da esquerda, para a tese proposta por Ciro Flamarion Santana Cardoso e desenvolvida por Jacob Gorender em O Escravismo Colonial (1976). Segundo esta tese, o Brasil foi colonizado sob o modo de produção escravista colonial, que seria distinto do modo de produção escravista antigo. Por se tratar de um modo de produção pré-capitalista, o latifúndio derivado do modo de produção escravista colonial justificaria a proposta política de reforma agrária.

É importante observar que o tema não se restringia a marxistas.

A historiografia clássica brasileira denominava feudal a organização política das capitanias hereditárias, como se vê em Formação histórica da nacionalidade brasileira (1911) de Oliveira Lima, em História da civilização brasileira (1937) de Pedro Calmon, e em História do Brasil – 2º ano colegial (1952) de Alfredo d’Éscragnolle Taunay e Dicanôr Moraes.

De fato, as capitanias reproduziam, formalmente, o anfiteatro enfitêutico característico da propriedade territorial feudal européia, em que a propriedade da terra era tripartida entre o rei, o nobre e o camponês. O rei concedia feudos a um nobre em troca de parcela dos produtos da terra e de compromissos políticos e militares, e o nobre concedia glebas a camponeses em troca de parcela de seu trabalho ou de seus produtos. Na colonização brasileira, o rei concedia capitanias hereditárias aos capitães governadores, a maioria em retribuição a feitos militares, sob compromissos econômicos e políticos, e os capitães concediam sesmarias a quem demonstrasse capacidade de fazê-las produzir, o que demandava patrimônio suficiente para adquirir escravos e construir as benfeitorias necessárias.

Para os contemporâneos da colonização, a analogia era perfeita, porque escravos não eram considerados humanos, eram antes comparados a animais de trabalho. Mas a designação feudal para as capitanias hereditárias permaneceu após a Abolição, por que a historiografia clássica foca antes organização política que a sócio-econômica. Entretanto, esta interpretação historiográfica viria a ser contestada internamente, como se vê em Hélio Vianna que, em seu História do Brasil (1962), inicia a apresentação das capitanias com um subtítulo peremptório: “Não houve feudalismo no regime das Capitanias Hereditárias”. Esta determinação parece ter funcionado.

O primeiro a negar qualquer caráter feudal à colonização brasileira foi provavelmente o industrialista Roberto Simonsen, em seu História Econômica do Brasil, 1500-1820 (1937), tema em que foi pioneiro. Simonsen define a colonização como capitalista pelos seus objetivos econômicos, com base em Werner Sombart. Teóricos de orientação weberiana engrossaram a negação da interpretação feudal, a exemplo de Raymundo Faoro, em Os donos do poder (1958) e Maria Sylvia de Carvalho Franco, em Homens livres na ordem escravocrata (1964).

O debate, ao vivo e a cores

O artigo de Mário Maestri tem como tema inicial a concepção do sociólogo paraguaio Ronald León Núnez, seguidor do teórico trotskista argentino Nahuel Moreno, que cabe na designação de circulacionista. Sem empregar tal termo, Mário Maestri faz pertinentes críticas à linha teórica que discute e, complementarmente, defende a tese do escravismo colonial, recuperando seus principais argumentos e revivendo o próprio clima dos debates. Vale a pena citar trechos significativos. Bem no começo se lê:

“Desde os anos 1930, o movimento comunista foi atado ao cepo estalinista … As leituras marxistas dos partidos da III Internacional tornaram-se meras exegeses das instruções ditadas por Moscou, às quais se enquadravam praticamente sem discussão. Nos países coloniais, semicoloniais e capitalistas atrasados, os trabalhadores deviam submeter-se às ‘burguesias nacionais’, ‘industrialistas’, ‘progressistas’ e ‘anti-imperialistas’ – ‘revolução por etapas’ – para superar as supervivências semifeudais e feudais com a construção de sólida economia capitalista.”

Foi recorrente esta atribuição da tese da existência de supervivências semifeudais e feudais a instruções ditadas por Moscou. Esta linha de argumentação contava com fatos históricos a seu favor. No Brasil, atribui-se à influência soviética, por exemplo, uma fase de sectarismo político em torno dos anos trinta, que refletia a radicalização da luta “classe contra classe” na URSS de então. Nesta fase foi rompida a aliança entre os comunistas e o tenentismo, afastando muitos comunistas, incluindo Prestes, da revolução de 1930. Críticas e autocríticas por este tipo de submissão a influências soviéticas não eram raras. Não foi difícil extrapolar tal crítica para a questão da natureza feudal da realidade brasileira.

Seguindo em sua linha, diz Maestri: “A polêmica devia-se à proposta estalinista da necessidade de todas as formações sociais transitarem pelas cinco etapas (modos de produção) propostos por Marx e Engels na análise da evolução-revolução social, política, econômica civilizacional no espaço europeu – comunismo primitivo, escravismo, feudalismo, capitalismo, socialismo.”

Este seqüenciamento dos modos de produção não se encontra em Marx, só em Friedrich Engels. No famoso prólogo da Contribuição à crítica da economia política, Marx apresenta, a grandes traços, os regimes de produção asiático, antigo, feudal e burguês como fases progressivas da humanidade. O regime antigo identifica-se ao escravismo, assim como regime burguês ao capitalismo. O comunismo primitivo é excluído pela referência a fases progressivas da humanidade, quando surgem civilizações. Assim, o modo asiático introduzido por Marx não parece estar na sequência de Engels.

A fórmula de Friedrich Engels foi dominante na literatura marxista por muito tempo, possivelmente porque sua obra literária, didática e enciclopédica, presta-se melhor à divulgação popular do pensamento marxista que a do próprio Marx, mais elaborada e minuciosa. Além disso, a expressão modo asiático aparece esparsamente em O Capital de Marx. A apresentação mais detalhada aparece em um esboço publicado postumamente sob o título Formações econômicas pré-capitalistas, que apresenta os modos de produção asiático, escravista e feudal como três alternativas históricas de superação do comunismo primitivo. O modo asiático é ali estendido também aos celtas e aos incas, contradizendo o adjetivo asiático; por isto, foi sugerida posteriormente a expressão “modo de produção tributário”, entendendo que o tributo caracteriza a relação de exploração entre a aldeia e o Estado.

A crítica de Maestri ao conteúdo da “tese feudal” é sintética: “Não nos deteremos nas incorreções histórico-metodológicas que apoiaram a proposta de ordem feudal no passado e resquícios no presente. No Brasil, por exemplo, os fazendeiros sesmeiros, pretensos senhores feudais, detinham a posse alodial da terra – podiam vendê-la, doá-la, alugá-la, etc. “

Ora, a venda da terra não eliminava o anfiteatro enfitêutico; o novo proprietário seguia subordinado ao capitão ou ao governador geral, e é impensável que a venda pudesse dar-se sem a aprovação de quem concedera inicialmente a terra. As mesmas condições regeriam a doação da terra, na remota hipótese de que algum latifundiário quisesse fazê-lo. Alugar a terra no Brasil Colônia ou Império seria temerário; a posse da terra em geral exigia a manutenção de jagunços contra índios ou outros inimigos, de forma que tomá-la de volta poderia ser difícil.

Maestri completa: “E não havias glebas servis, mas exploração homogênea de latifúndios orientados para o mercado mundial e, muito secundariamente, regional. E inexistiam servos nesta parte do mundo mas, sobretudo, trabalhadores escravizados.”

A frase peca por excesso de generalização, o que pode ser corrigido através de um autor obsessivamente criticado em O Escravismo Colonial, Nelson Werneck Sodré. Em Formação Histórica do Brasil (1962), Nelson Werneck Sodré define como escravista a exploração homogênea de latifúndios orientados para o mercado mundial durante a Colônia e maior parte do Império, na produção de açúcar, tabaco, café, entre outros produtos, assim como foi escravista a mineração do ouro.

O principal mercado interno foi o do gado, tanto do Nordeste quanto dos Pampas, para suprimento das regiões de mineração e dos centros urbanos. A escravidão foi secundária nas regiões de produção de gado. No sertão do Nordeste, em particular, vigia o sistema de quarta, pelo qual o vaqueiro recebia a quarta cria de cada rês. Quando ali se passou a produzir também algodão, adotou-se a meação. No Sul, as relações de trabalho no pastoreio não eram escravistas; a escravidão só foi introduzida na produção do charque para comércio.

Abolida a escravidão, toda grande produção de açúcar, tabaco etc. passou a empregar relações de parceria, como meação ou terça. As relações de trabalho mais avançadas ocorreram na produção de café, desde o final do período escravista, quando imigrantes europeus contavam com apoio de seus países de origem para não se submeter ao latifundiário da mesma forma que os trabalhadores nacionais.

As relações de parceria e cambão seriam escravistas para Jacob Gorender, como haviam sido capitalistas para Caio Prado Júnior. Ora, relação capitalista significa trabalhador livre assalariado, sem vinculação pessoal ao empregador; ali não havia assalariamento e havia forte dependência pessoal ao proprietário. Relação escravista significa a propriedade do trabalhador pelo proprietário, e exige vigilância permanente por feitor, o que também não havia nestas relações; a função dos cabras ou jagunços não é feitorar. Para Nelson Werneck Sodré, estas relações de parceria e cambão eram feudais, com base em Marx.

Em O Capital, Marx analisa três formas de renda pré-capitalista da terra, que se aplicam a sociedades de tipo asiático ou tributário e a sociedades feudais: renda em trabalho, renda em produtos e renda em dinheiro. Há relações de dependência necessárias para a manutenção do status social. No feudalismo, a renda em trabalho, em produtos e em dinheiro caracteriza períodos distintos, com crescente grau de autonomia, sempre relativa, do servo. Se na escravidão a necessidade de vigilância e a violência são permanentes, no feudalismo a violência passa a ser complementada por dominação ideológica. Não se consegue ler estas páginas de Marx sem enxergar o coronelismo brasileiro, com os cabras armados do Senhor Coronel e a bênção da Igreja.

Cabe aqui lembrar a origem do termo coronelismo. Desde o Império, os comandantes da Guarda Nacional eram os principais latifundiários locais, que recebiam o título de coronéis ou, nas menores localidades, majores. A concentração dos poderes militar, policial, econômico e político nas mãos do latifundiário consolida a dominação absoluta deste sobre seus peões e sobre pequenos fazendeiros eventualmente permitidos na localidade. A Guarda Nacional foi extinta em 1919, trinta anos após a proclamação da República, e com isto os aspectos policial e militar do poder coronelista foram abolidos formalmente, restando os aspectos econômico e político, num lento processo de deterioração.

Segue Maestri: “No contexto referido dos anos 1960 abriu-se espaço para a legitimação científica do ‘modo de produção asiático’ e para investigação dos múltiplos modos de produção conhecidos pelas sociedades não européias, com destaque para a África Negra pré-colonial – modos de produção doméstico, de linhagem, tributários etc.”

Na verdade, Formações econômicas pré-capitalistas foi publicado na década de 1930 na União Soviética e na década de 1950 no Ocidente, de modo que o conceito de modo de produção asiático vem sendo estudado desde antes dos anos 1960. Os soviéticos tenderam a interpretar o conceito de forma a compatibilizar as fórmulas de Marx e de Engels: o modo asiático seria a última etapa do comunismo primitivo, devido à ausência de propriedade da terra, apesar de constituir sociedades de classe. Mas a interpretação do modo asiático como modo específico de produção predominou em geral.

Ocorre que a frase de Mário Maestri vai além, ao adotar uma multiplicidade de modos de produção, culminando com um “etc.”. Ora, o modo de produção doméstico é um tipo de evolução do comunismo primitivo em que a terra tribal é repartida entre famílias; o modo de linhagem talvez seja outra variação do comunismo primitivo. Tanto a tipologia de Marx quanto a de Engels pretendem reproduzir em grandes traços a evolução histórica, sem detalhamento maior. O modo tributário é apenas outro nome para o modo asiático. De qualquer forma, sentindo-se “legitimados” por esta multiplicidade de novos meios de produção, Flamarion Cardoso e Jacob Gorender puderam criar seu novo modo de produção.

Conclui o autor: “O escravismo colonial realizava o que defini como ‘revolução copernicana’, negando e superando, a partir de refinada interpretação marxista, apoiada em circunstanciada análise histórica e crítica categorial-sistemática, o impasse feudalismo-capitalismo.”

Será?

Para Jacob Gorender, o escravismo antigo seria principalmente patriarcal, ou seja, destinado ao serviço da família a que foi incorporado, enquanto o escravismo moderno seria principalmente mercantil, destinado ao mercado. Ele reconhece a existência de escravidão patriarcal modernamente, e de escravidão mercantil na antiguidade, mas desta diferença quantitativa deduz uma diferença qualitativa: um novo modo de produção! Se não bastasse isso, caracteriza um modo de produção por seu destino mercantil, isto é, pela esfera da circulação, portanto parte da concepção circulacionista, embora condene o circulacionismo. Por fim, batiza seu modo de produção com o adjetivo colonial, que não se refere nem à produção nem ao comércio, mas ao status político colonial do país, embora a escravidão tenha permanecido em quase todo Império. Quão “circunstanciada análise”! Quanto rigor “categorial-sistemático”!

Para analisar o capitalismo, Marx frequentemente recorre a comparações com modos de produção anteriores, enfatizando a relação socioeconômica entre o trabalhador e o proprietário dos meios de produção. Na escravidão vige a relação de propriedade do trabalhador pelo proprietário da terra ou da mina. Marx destaca a coisificação do escravo, lembrando as expressões romanas instrumentum vocale para o escravo, instrumentum semivocale para um animal de carga e instrumentum mutum para as ferramentas. Em seguida, cita exemplos do tratamento grosseiro de escravos norte-americana aos animais de trabalho e aos instrumentos, e explica esta atitude como reação do escravo à sua reificação. Assim, Marx aponta a mesma relação social em Roma e nos Estados Unidos escravistas. Mas Flamarion Cardoso e Gorender postulam modos de produção distintos nestes dois escravismos. Quão “refinada interpretação marxista”!

Sendo a tese ortodoxa, da presença de comunismo primitivo, escravidão, feudalismo e capitalismo em nossa história, coerente com a teoria marxista, porque teria sido questionada?

Talvez porque a publicação de O Capital em português tenha sido tardia; a primeira tradução foi publicada nos anos 1970 e a segunda, nos 1980. Mas provavelmente a resposta esteja numa frase de Lênin: “se o teorema de Pitágoras, por algum motivo, adquirir conotação política, alguém há de questionar o teorema de Pitágoras.”

Na historiografia tradicional, a caracterização de nossa colonização como feudal nos identificava à Europa, assim como o eufêmico tratamento dos escravos como servos. Mas a abolição da tese feudal passou a interessar aos conservadores assim que o tema da reforma agrária foi associado a ela.

O contexto político do debate foi caracterizado, para a esquerda, pela derrota de 64. Desde o imediato pós-golpe, a direção do PCB estava sob crítica pela forma de sua atuação junto ao governo deposto. Prado Júnior pôs em questão a própria fundamentação teórica daquele partido, bem como do PCdoB, embora este partido tenha tido atitude muito distinta quanto ao governo Goulart. O debate da “tese feudal” esteve presente nas discussões de partidos e de grupos dissidentes do PCB, muitos dos quais se unificariam depois no PT, assim como na incorporação da AP, originada da esquerda católica, ao PCdoB.

A tese do escravismo colonial aproveitava a linha de questionamento das bases teóricas dos partidos comunistas, por Caio Prado Júnior, e a compatibilizava com a manutenção da proposta de reforma agrária. A tese do escravismo colonial venceu politicamente, ainda que a concepção ortodoxa resista, porque fincou raízes.

Quem perdeu foram o conhecimento sobre o Brasil e a compreensão do marxismo. A abolição literária do feudalismo empobrece a compreensão da nossa história, de episódios como as lutas tenentistas dos anos 1920, bem como a Revolução de 1930, de suas realizações e limites. Ficam sem explicação os fenômenos históricos das brigas de famílias, do messianismo sebastianista, do cangaço, assim como as tradições culturais tão próximas do medievo, como as lutas de cristãos e mouros, as “rimas ricas de três séculos” que Euclides da Cunha encontra nos sertões, etc. Como se a superestrutura flutuasse no ar, não se enraizasse sobre uma infraestrutura.

A cultura perdeu muito. Há obras que nos dão a impressão de que não conhecíamos o Brasil antes de lê-las, como Quatro séculos de latifúndio, de Alberto Passos Guimarães e Cangaceiros e Fanáticos de Rui Facó. A imensa cultura de Nelson Werneck Sodré legou referências fundamentais como Formação Histórica do Brasil, História da imprensa no Brasil e História militar do Brasil, entre tantas outras. Em tempos de autonomia do Banco Central, a editora Contraponto teve a bela iniciativa de reeditar toda obra de Ignácio Rangel, para quem inflação brasileira é um epifenômeno revelador de problemas estruturais que são agravados pelas políticas monetárias ortodoxas, recessionistas. Mas quem seria estimulado a estudar autores tratados como seguidores acríticos de ordens de Moscou? Só quem não acredita nesta caricatura.

Concluo fazendo uma propaganda de meu livro Modos de ver a produção do Brasil, para os que se interessarem no tema. É uma antologia comentada, estruturada sobre citações dos autores tratados, com intervenções minhas, em geral pequenas, para organizar a apresentação.

O livro possui cinco partes. A primeira e maior delas colhe descrições empíricas da formação social brasileira na historiografia geral, abordando Antonil, Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha, Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto Simonsen, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, entre outros. A caracterização feudal aparece em alguns autores e é negada por Simonsen. A segunda parte do livro trata do conceito (ou categoria) modo de produção, bem como dos modos de produção específicos, empregando fundamentalmente Marx e, em menor extensão, Engels e Lênin; a confrontação destes autores com nossa realidade histórica já permite avançar a defesa da tese ortodoxa.

Com estas bases empírica e teórica, o livro adentra o debate. A terceira parte apresenta autores representativos da visão ortodoxa, incluindo Facó, Carlos Marighella, Mário Alves, A. P. Guimarães, Sodré, Ignácio Rangel, que enriquecem substancialmente a descrição de nossa formação social. A quarta parte discute autores representativos do revisionismo da questão feudal, incluindo Prado Júnior e Gorender, bem como teóricos weberianos ou ecléticos; esta parte exigiu textos maiores deste autor para confrontação das posições revisionistas ou não marxistas. A quinta parte aprecia os reflexos desta polêmica em autores mais recentes.

Não foi consultada qualquer obra de Stalin ou qualquer autor soviético, exceto Lênin. Não por preconceito, mas para mostrar que a defesa da tese ortodoxa sobre modos de produção no Brasil contra o revisionismo não dependem em absolutamente nada daquele dirigente soviético.

*José Ricardo Figueiredo é professor aposentado da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Modos de ver a produção do Brasil (Autores Associados\EDUC). [https://amzn.to/40FsVgH]


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