Modus vivendi e hiperdemocracia

Imagem: Peter Rock
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Por ANTÔNIO SALES RIOS NETO*

A crise civilizatória atual é apenas o reflexo de uma longa crise que contém elementos que podem sugerir que está chegando tanto ao seu ápice quanto ao seu esgotamento neste século XXI

“Não se vai sair para a solução do mundo partindo do macrocosmo. Precisamos partir do microcosmo, sem dúvida nenhuma. (…) O homem tem de se convencer que o mais importante de tudo é o dia a dia. O homem vive é todo dia” (Millôr Fernandes).

“Do mesmo modo que é preciso proteger a diversidade das espécies para salvaguardar a biosfera, é preciso proteger a diversidade de ideias e opiniões, bem como a diversidade de fontes de informação e de meios de informação, para salvaguardar a vida democrática” (Edgar Morin).

Depois que o patriarcado se instalou por volta de sete mil anos atrás, o mundo humano e o que conhecemos por civilização passaram a ser um palco de guerras, massacres e destruições. A violência tornou-se não só um continuum na história como também foi normalizada, tornando-se algo inerente ao processo histórico. Daí o impasse oriundo do nosso grande bloqueio cognitivo, que Humberto Maturana traduz nos seguintes termos: “Para os membros da comunidade que a vivem, uma cultura é um âmbito de verdades evidentes. Elas não requerem justificação e seu fundamento não se vê nem se investiga, a menos que no futuro dessa comunidade surja um conflito cultural que leve a tal reflexão. Esta última é a nossa situação atual”. Enquanto a cultura patriarcal prevalecer, o mundo humano nunca deixará de ser socialmente conflituoso, politicamente instável e ambientalmente mortal, um mundo em permanente estado sofrimento e mal-estar, como já havia constatado Sigmund Freud.

Nessa perspectiva, uma das melhores compreensões do que veio a ser a história talvez não esteja na interpretação de Hegel de que a realidade é conduzida por uma dialética progressiva em direção a uma civilização cada vez mais aprimorada, na qual se possa imaginar um “fim da história”, que ele parece ter vislumbrado no surgimento do Estado prussiano de sua época. O mesmo “fim da história” que Fukuyama viu no “último homem” da democracia liberal estadunidense, que muitos agora veem na vida algoritmizada pelo enebriante novo mundo high tech – como parece ser o caso do Homo deus imaginado pelo historiador israelense Yuval Harari –, enquanto a civilização desliza para a escuridão.

Ao que parece, Artur Schopenhauer, ao observar o homem com sua “vontade cega e irracional”, parecia estar bem mais próximo da compreensão do processo histórico – forjado na conflituosa cultura patriarcal – do que Hegel com a sua “astúcia da razão”. É por isso que, para tentarmos compreender melhor a condição humana e a gravíssima agonia planetária atual, precisamos seguir recomendações como a do teólogo e filósofo espanhol Raimon Panikkar: “ver, por um lado, se o projeto humano realizado durante seis milênios pelo Homo historicus é o único possível e, por outro lado, ver se não seria necessário, hoje, fazer outra coisa”.

A atual crise civilizatória que assola a humanidade não se iniciou na contemporaneidade, com a visão mercadológica de mundo imposta pelo liberalismo econômico, hoje globalizada, que canalizou os desejos humanos, por meio do fetiche da mercadoria, para as ilusões do individualismo, do consumo e da acumulação. Ela é apenas o reflexo de uma longa crise que contém elementos que podem sugerir que está chegando tanto ao seu ápice quanto ao seu esgotamento neste século XXI. A cultura patriarcal milenar tem no estado de crise permanente a sua condição natural. Como bem afirmou Eric Hobsbawm, “a história é o registro dos crimes e loucuras da humanidade”, uma história orientada pelo desejo de controle e de dominação cujo poder de destruição – não só entre os humanos, mas sobretudo do ambiente –, potencializou-se e amplificou-se na mesma proporção das ferramentas criadas pelo homem.

Para vislumbrarmos a possibilidade de um resgate neomatrístico, no qual a democracia possa enfim estar representada na coexistência de diversos modos de vida, que interrompa, ao mesmo tempo, a dinâmica patriarcal milenar e a nossa atual rota civilizatória ecocida, precisaríamos perceber a realidade sob novas lentes e ampliar nossa capacidade de imaginação para novas conformações políticas e econômicas, uma vez que o motor da história tem sido a liberdade da política e do mercado – desde quando os primeiros esboços de mercado surgiram nas cercanias do Mediterrâneo, há cerca de doze séculos antes de Cristo.

Aliás, liberdade e segurança são dois conceitos conflitantes derivados da dinâmica patriarcal. A noção de liberdade parece ter surgido junto com a sua perda, proporcionada pelo aparecimento da cultura de dominação patriarcal. Forjou-se, assim, a necessidade de segurança, que por sua vez limita a liberdade retroalimentando novamente a segurança, gerando um comportamento patológico recursivo: o homem aprisionado num eterno conflito consigo mesmo.

Nas culturas matrísticas pré-patriarcais europeias, que ainda podem ser observadas no modo de viver dos povos originários, das tradições africanas e de muitas vivências comunitárias remanescentes, espalhadas pelo mundo, talvez não faça muito sentido falar em liberdade porque ela constitui uma condição natural do modo de vida. Nesses casos, vigoram relações de consenso e compreensão, e não de apropriação e subordinação. Vive-se imerso em uma cultura em que a segurança está implicitamente garantida pela integração do homem às suas circunstâncias. Há um acoplamento natural entre o homem e o seu meio ambiente. Este não é hostil ao homem como o é no padrão de pensamento da cultura patriarcal.

Com a perda gradual desse acoplamento, segurança e liberdade tornaram-se, ao mesmo tempo, uma necessidade humana crescente e um conflito insolúvel. Se continuarmos presos nessa dinâmica, o nosso horizonte civilizatório vai se tornando cada vez mais insustentável e o colapso ambiental e social uma possibilidade real, já para as próximas décadas. O que poderia, então, nos desviar dessa perspectiva crescente de autodestruição?

Já que é a política entrelaçada ao mercado que têm guiado a história há tanto tempo, a partir dessa premissa podemos levantar as seguintes reflexões para se pensar as possíveis saídas do atual impasse civilizatório: qual filosofia política e qual sistema econômico poderiam comportar uma virada de dinâmica civilizacional tão radical? Em quais circunstâncias a sociabilidade democrática pode passar a prevalecer sobre a imperialista? Enfim, como uma nova visão de mundo, ao mesmo tempo, aberta, plural, inclusiva e integrada à complexidade da teia da vida na Terra, poderia emergir?

Dois respeitados autores contemporâneos parecem ter desenvolvido uma contribuição relevante nessa direção, que converge com a possibilidade de um resgaste neomatrístico. Um é o filósofo político britânico John Gray e o outro é o economista francês Jacques Attali. Cada um deles, atuando em campos distintos das ciências sociais, percebeu como o modo de viver da cultura patriarcal, identificado por Maturana a partir da biologia da cognição, forjou todo o processo histórico.

Jacques Attali e John Gray conseguiram, cada um a seu modo e de forma convergente, compreender e explicar os padrões de sociabilidade que arrastam a humanidade para o abismo atual. Vale ressaltar que nenhum dos dois fazem referências entre si em seus muitos ensaios e formulações, nem se debruçaram sobre o estudo da cultura patriarcal como Maturana o faz. No entanto, o pensamento deles e de Maturana guardam uma grande convergência na compreensão que têm acerca da imbricação entre as dinâmicas econômica, política, filosófica e biológica que movem a ação humana e que forjou todo o processo civilizatório.

John Gray é ex-professor de e pensamento europeu da London School of Economics, ex-aliado de Margaret Thatcher e um dos mais conceituados especialistas em filosofia política na Europa. Logo depois que se sucederam eventos de grande impacto geopolítico como o Consenso de Washington (1989) e a Guerra do Golfo (1990-1991), apoiados pela New Right da era Reagan e Thatcher, nos anos 1980, John Gray percebeu que o lassez-faire global desregulamentado e a deterioração da coesão social caminham juntos, e que “a política é arte de inventar remédios temporários para males recorrentes – uma série de expedientes, não um projeto de salvação. Thatcher foi um desses expedientes”. Assim, ele chegou ao entendimento de que “não há alternativa sustentável para as instituições do capitalismo liberal, ainda que reformadas”.

Mais tarde, no início dos anos 2000, após ampliar ainda mais suas percepções sobre a dinâmica que move o processo histórico e que nos arrastou para o atual impasse civilizatório de âmbito planetário, John Gray vai mais a fundo nas raízes dos nossos males e chega a conclusões como a de que “se os seres humanos são diferentes dos outros animais, é principalmente por serem governados por mitos, que não são criaturas da vontade, mas criaturas da imaginação. Emergindo sem ser convidadas de regiões subterrâneas, estas criaturas governam as vidas daqueles que empolgam. Muitos dos piores crimes do último século foram cometidas por pessoas empolgadas pelo que elas acreditavam ser a razão”.

Todo o pensamento de John Gray é permeado por essa compreensão em torno do animal humano, que ele entende mais apropriado chamar de Homo Rapiens: “uma espécie altamente inventiva que também é uma das mais predadoras e destrutivas”. Dentre os muitos ensaios que ele já escreveu, o livro Cachorros de palha (Record, 2006) é uma das melhores sínteses do seu pensamento, e um legítimo tratado sobre como opera a cultura patriarcal na contemporaneidade.

Para John Gray, há dois principais mitos que governam e alimentam o conflito humano – cujo cerne encontra-se na religião, em especial na fé cristã que moldou toda a Idade Média –, e que sustentam a política moderna até os dias atuais. Um é a crença no progresso da humanidade e o outro, atrelado ao primeiro, é a ideia de que a história caminha inexoravelmente para uma civilização universal, um modo de vida único. Em suma, para John Gray, “com o enfraquecimento do cristianismo, a intolerância por ele legada ao mundo tornou-se ainda mais destrutiva. Seja no imperialismo, no comunismo ou nas incessantes guerras para defender a democracia e os direitos humanos, os mais bárbaros modos de violência têm sido promovidos em nome de uma civilização mais elevada”.

Esses dois mitos constituem até hoje os principais fundamentos do projeto civilizatório fracassado da democracia liberal estadunidense. São eles que alimentam a fantasia humana de tentar moldar o mundo segundo a sua imagem e, desse modo, salvá-lo de um suposto mal (que inclui aqueles que não seguem a cartilha do Ocidente) a ser exterminado. John Gray não acredita que possamos algum dia sair dessa dinâmica maniqueísta – herdada dos mesmos ideais greco-judaicos que forjaram o cristianismo e moldaram toda a história do Ocidente –, muito menos que o animal humano consiga retornar ao seu estado primordial. Uma vez experimentado o fruto do conhecimento, não haveria mais volta. No máximo, John Gray vislumbra que o sofrimento humano possa ser atenuado, caso haja um esforço de remodelagem do projeto liberal para o que ele chama de “modus vivendi”.

O Estado liberal é resultado de um longo experimento iniciado na Europa do século XVI que, apesar de muitos desvios, parecia estar (pelo menos do ponto de vista filosófico) imbuído do propósito de uma convivência humana mais tolerante e plural. No entanto, as forças da cultura patriarcal milenar, que a partir da modernidade ancoraram-se na razão, no progresso e no individualismo, com muito mais força do que no passado guiado pelos dogmas da fé cristã, inviabilizaram tal direcionamento. Desse modo, nos arrastaram para a convergência das múltiplas crises imbricadas que enfrentamos hoje, principalmente a política, a social, a econômica e a ambiental. Esta última, a mais perturbadora de todas, está cada dia mais próxima de se tornar insolúvel e irreversível.

Por isso John Gray entende que “precisamos de um ideal que não esteja baseado em um consenso racional sobre o melhor modo de vida, nem num razoável desacordo sobre esse melhor modo de vida, mas antes no fato de que os seres humanos sempre terão razões para viver diferenciadamente. O modus vivendi é tal ideal.” Para alcançá-lo, John Gray também entende que “não precisamos de valores comuns para vivermos juntos e em paz. Precisamos de instituições comuns, nas quais muitas formas de vida possam coexistir.” A possibilidade de realização de uma democracia desapropriada do patriarcado, como sugere Maturana, talvez possa emergir se o projeto liberal for capaz de reformular-se e abrir-se a esse modus vivendi (as formulações de John Gray acerca da possibilidade do modus vivendi estão reunidas no primeiro capítulo do seu livro A anatomia de Gray, Record, 2011).

Por outro lado, o modus vivendi proposto por John Gray tem muita similaridade com a possibilidade de alcançarmos uma “hiperdemocracia” daqui a aproximadamente 40 anos, conforme vislumbrado por Jacques Attali. O porquê desse longo interstício de quatro décadas é que, segundo Attali, a humanidade ainda deverá experimentar duas “ondas do futuro”, o “hiperimpério” e o “hiperconflito”, inclusive como uma espécie de pré-requisitos para que a hiperdemocracia possa aflorar.

Sabemos, conforme abordamos no texto anterior, que o hiperimpério (mercado planetário, sem Estado) e o hiperconflito (após a violência do dinheiro, a violência das armas) estão se desenhando com muita clareza no horizonte. Essas duas perspectivas regressivas estão condensadas no seu livro Uma breve História do Futuro (Novo Século, 2006), que oferece uma leitura de mundo que, apesar de ambígua, parece bem realista a respeito do que poderá nos aguardar num futuro próximo. Attali tem uma visão apocalíptica e ao mesmo tempo esperançosa sobre o futuro, convergente com os versos de Hölderlin citados pelo filósofo Martin Heidegger: “Ora, onde mora o perigo / é lá que também cresce / o que salva”.

Jacques Attali é um dos pensadores contemporâneos que merece bastante atenção. Oriundo de uma família judia argelina, ele fundou, com apoio de Muhammad Yunus e Arnaud Ventura, a ONG Positive Planet que, em 23 anos, já apoiou mais de 11 milhões de microempresários na criação de negócios positivos, nos bairros carentes da França, África e Oriente Médio. É autor de mais de oitenta livros, vendidos em 9 milhões de cópias e traduzidos para 22 idiomas. Ele foi conselheiro e assessor do governo de François Mitterrand (1981-1995), portanto, vivenciou e conhece bem a dinâmica por trás da Realpolitik, e é um dos poucos economistas que parece ter a intuição de que precisamos aceitar nossa frágil condição natural e, assim, vê alguma luz no fim do túnel.

Nos últimos anos, Jacques Attali vem se dedicando a disseminar a ideia de que humanidade precisa urgentemente substituir a economia de mercado por uma “economia da vida”, proposta defendida no seu mais recente livro La economía de la vida: Prepararse para lo que viene, em que a democracia, com todos os conflitos que lhe são inerentes, é o regime imprescindível à construção e à manutenção dessa nova dinâmica civilizacional. Nessa obra ele defende “uma proposta para pouparmos nossas crianças de uma pandemia aos 10 anos, uma ditadura aos 20 e uma catástrofe climática aos 30”, alertando que chegou a hora de fazermos urgentemente a travessia da atual economia da sobrevivência para uma economia da vida.

Em Uma breve História do Futuro, publicado em 2006, Jacques Attali nos fornece um vislumbre bem plausível sobre o que pode estar reservado para a humanidade nas próximas décadas. Nessa obra, ele analisa a longa história do capitalismo e a partir daí, faz algumas projeções de quais seriam seus prováveis desdobramentos ainda nesta primeira metade do século XXI. Com base nos diversos padrões, regras ou leis que ele identifica na evolução da longuíssima história da democracia de mercado, ele entende que a “cara mais verossímil do futuro” será a de que, até 2060, rebentarão, uma após a outra, três ondas do futuro: (1) o hiperimpério (entre 2035 e 2050), no qual o Estado-nação será gradualmente absorvido pelas forças do mercado, representadas pelas corporações transnacionais, e substituído pela Vigilância proporcionada com o avanço da revolução algorítmica iniciada nos anos 1980; (2) o hiperconflito (entre 2050 e 2060), como desdobramento das instabilidades geradas pelo hiperimpério que não dispõe mais das contenções do Estado para regulá-lo, em que profundas convulsões, impulsionadas por “ambições regionais”, “exércitos piratas e corsários” e a “cólera dos laicos e dos crentes”, desencadearão guerras de toda ordem, em escala mundial; e (3) como resposta à perspectiva de uma autodestruição da humanidade, abre-se a possibilidade de uma hiperdemocracia planetária, por volta de 2060, assumindo os rumos de uma civilização devastada pelas duas ondas precedentes.

Esse prognóstico realmente tem muitas correspondências com os padrões da história. Mas essa antevisão é também inspirada por um grande esforço de otimismo para evitar o inferno que Jacques Attali teme que o futuro pode vir a se tornar. Obviamente que ele também considera o quanto o futuro é determinado por eventos inesperados que podem alterar sua trajetória, mas sem desviar-se, no entanto, de um fundamento que, segundo ele, permeou toda a história: “de século em século, a humanidade impõe o primado da liberdade individual sobre qualquer outro valor”. A pandemia da Covid-19, assim como a guerra na Ucrânia, por exemplo, representa esses eventos de escala planetária que podem fazer avançar (ou retardar) e alterar significativamente o fluxo da história.

A partir dessa premissa de que há um impulso libertário que move a humanidade, Attali assim expressa seu otimismo trágico: “Aproximadamente em 2060, ou mais cedo — a menos que a humanidade desapareça sob um dilúvio de bombas —, nem o Império Norte-Americano, nem o hiperconflito serão toleráveis. Novas forças, altruístas e universalistas, já atuantes hoje, tomarão o poder mundialmente, devido a uma premência ecológica, ética, econômica, cultural e política. Elas se rebelarão contra as exigências da Vigilância, do narcisismo e das normas. Conduzirão, progressivamente, a um novo equilíbrio, dessa vez planetário, entre o mercado e a democracia: a hiperdemocracia. (…) Uma nova economia, chamada relacional, que produz serviços sem procurar tirar lucros deles, se desenvolverá em concorrência com o mercado antes de neste pôr um fim, assim como o mercado pôs um termo, há alguns séculos, no feudalismo. Nesses tempos vindouros, menos longínquos do que se crê, o mercado e a democracia, no sentido em que nós o entendemos hoje, se tornarão conceitos ultrapassados, lembranças vagas, tão difíceis de compreender como o são hoje o canibalismo ou os sacrifícios humanos”.

A irrupção da hiperdemocracia imaginada por Jacques Attali, como resposta às convulsões das duas ondas precedentes, comporta, pelo menos, três principais fenômenos emergentes entrelaçados: (1) Ascensão do altruísmo social, em que a alteridade e a cooperação substituirão, nas relações políticas, o individualismo e a competição. Novos atores sociais e políticos exercerão um tipo de liderança na qual, segundo Attali, “não se acreditarão os proprietários do mundo, admitirão que só têm o seu usufruto”; (2) Uma nova economia relacional emergirá afastando-se da atual lógica predatória de mercado. Ela “não obedecerá às leis da raridade” e “permitirá produzir e trocar serviços realmente gratuitos – de entretenimento, saúde, educação, relações etc –, que cada um julgará bom que se ofereça ao outro”. Uma economia em que “a gratuidade se estenderá a todos os domínios essenciais à vida”; (3) O desenvolvimento do bem comum, dentre eles a inteligência universal, como resultado coletivo da hiperdemocracia. “O bem comum da humanidade não será a grandeza, a riqueza ou mesmo a felicidade, mas a proteção do conjunto dos elementos que tornam a vida possível e digna: clima, ar, água, liberdade, democracia, culturas, línguas, saberes…”.

Essa presciência de Jacques Attali, assim como o modus vivendi recomendado por John Gray, embora aparentem ser demasiadamente utópicos, ela tem alguns fundamentos na realidade atual. O chamado terceiro setor da economia, composto por inúmeras organizações não governamentais, que hoje ainda é muito embrionário diante das estruturas hegemônicas do Estado (primeiro setor da economia, o público) e do mercado (segundo setor, o privado), guarda muitas equivalências com o que poderá vir a ser uma hiperdemocracia no futuro. Esse movimento do terceiro setor tem muito a ver com o potencial regenerativo da revolução sociocultural que está emergindo, desde os anos 1960, tendente a influenciar cada vez mais o âmbito político-econômico de muitas sociedades, em busca de outro mundo possível.

Todos esses organismos seguem a lógica da sociabilidade democrática não apropriada pelo patriarcado, especialmente pelo impulso matrístico do voluntarismo dos que se engajam nessa atividade, característica inexistente no atual Estado-Corporação produzido pelo neoliberalismo (resultante da absorção dos antigos Estados nacionais pelo mercado financeiro transnacional). Esse terceiro setor talvez represente, no futuro, a principal força emergente de resistência ao atual establishment global que apostou todas as fichas no laissez-faire (des)orientado pelos algoritmos, o qual só tem amplificado a degradação das democracias e a manutenção do capitalismo predatório, aumentado cada vez mais a nossa vulnerabilidade política e ambiental.

É inegável que o mercado vem absorvendo o Estado, assim como este sufocou o cristianismo, e tendente a assumir, com o auxílio dos algoritmos, a posição de novo Vigilante do mundo, apontando para um cenário geopolítico cada vez mais beligerante, ecocida e autodestrutivo. Entretanto, à margem dessa estupidez, começa a surgir uma terceira força global que é aquela integrada por iniciativas supranacionais como a Anistia Internacional, a Convenção da Biodiversidade, o Acordo de Paris, dentre outras, e por milhares de organismos não governamentais, que avançam silenciosamente com seus atributos mais próximos de uma visão relacional de mundo, amparadas em cooperação, inclusão, pluralidade, diálogo, tolerância, cuidado, alteridade, flexibilidade e respeito à natureza. São esses novos atores que, colocando o ego no seu devido lugar, podem protagonizar, num futuro próximo, a construção de um mundo reconhecível, superando nossos condicionamentos patriarcais milenares.

Infelizmente, conviveremos com a tirania da “vigilância” por um bom tempo, razão pela qual provavelmente ainda deveremos ver o cenário global se degradar ainda mais do que ele já se apresenta hoje, como prevê Jacques Attali. De um lado, a efervescência das insubordinações, observada com mais frequência nos regimes liberais ocidentais, em que a nostalgia matrística se faz presente com maior intensidade, poderá até mesmo arrefecer, dificultando a emergência de um modus vivendi ou de uma hiperdemocracia. Por outro lado, nos atuais regimes iliberais, para onde vem se deslocando o eixo geopolítico, embora eles não demonstrem hoje querer impor a todas as sociedades apenas um único modo de vida, como sempre desejou o eurocentrismo do Ocidente, a manutenção das rebeldias e de visões críticas tentando mudar as realidades irão se deparar com muitos obstáculos.

Nas próximas décadas, estaremos cada vez mais imersos numa arena cibernética de disputa de hegemonia que oferecerá pouquíssimo espaço para um resgate neomatrístico, como desejava Humberto Maturana. Porém, talvez esteja exatamente nessa nova conjuntura anárquica global o prenúncio de uma grande transformação cultural. É na catástrofe patrocinada pela Vigilância que poderão surgir as condições para irromper uma hiperdemocracia. Trata-se da esperança na metamorfose, tal como imaginada por Edgar Morin: “quanto mais nos aproximamos da catástrofe, mais a metamorfose é possível. Então, a esperança pode vir do desespero”.

Portanto, ao que o crescente aprofundamento da instabilidade geopolítica e da crise ambiental indicam, o destino da humanidade neste sombrio século XXI ficará cada vez mais condicionado a duas premissas. A primeira é a de que “o homem não suporta muita realidade”, como dito pelo poeta inglês Thomas Eliot, haja vista o mundo intratável e distópico que nos aguarda. A segunda está no fato, conforme nos leva a crer as irrefutáveis evidências científicas levantadas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), de que a tolerância de Gaia para com a predação patriarcal ainda não tenha sido ultrapassada.

No entanto, tais premissas só poderão ser validadas a posteriori, se tentarmos e realizarmos a opção pela radicalidade de uma democracia vivida, que possa viabilizar um retorno à vitalidade da complexidade do antigo viver matrístico, para escaparmos de uma sociabilidade insuportável numa Terra inabitável e da perspectiva de uma autodestruição precoce impingida pela nossa permanência na insensatez do patriarcado. De agora em diante, o devir humano repousará sob tais presságios.

Muitas pessoas, que hoje só encontram sentido para as suas vidas estando alienadas e absorvidas pelas distrações do mercado e da tecnologia, e condicionadas à servidão voluntária da arena patriarcal, provavelmente diriam que as ideias aqui expostas estão ideologizadas por um pensamento demasiadamente otimista e utópico sobre a natureza humana. Teriam até mesmo dificuldade de compreendê-las por estarem fechadas cognitivamente em sua percepção patriarcal de mundo. Preferem continuar aprisionadas em seus conflitos internos, sujeitas a todo tipo de patologias mentais e mergulhadas no autoengano, diante de uma realidade que está arrastando, aceleradamente, a humanidade em direção ao precipício.

Já aquelas poucas pessoas que ainda não perderam sua infância matrística, e conseguem manter uma distância segura do modo de viver doentio imposto pelo atual status quo patriarcal do tecnomercado, estarão bem mais próximas do sentimento de alteridade – único meio de alcançarmos a segurança e a liberdade que não encontramos no viver patriarcal e que só podem ser obtidas na aceitação e na convivência com o outro. Não sentem a necessidade de defender qualquer democracia, sobretudo as que estão apropriadas pelo mercado (e pelos algoritmos) e alimentam tantas tiranias devastadoras pelo mundo. Preferem viver a democracia em seu dia a dia, naturalmente, sem muito esforço, e, assim, podem usufruir o pouco de convivência e de natureza de que ainda dispomos, nesses tempos de tanta agonia e desesperança. Podem, desse modo, desfrutar da indescritível dádiva de conviver e de amar.

Se as emoções e as conversações constituem o fundamento do viver humano, e requerem uma democracia vivida (e não defendida), para resgatarmos uma cultura neomatrística em que os humanos possam se reconciliar com a complexidade do mundo real, tal como percebeu Humberto Maturana e outros, que prevaleça a hiperdemocracia nessa imponderável transição de época!

*Antônio Sales Rios Neto, servidor público federal, é escritor e ativista político e cultural.

 

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