Por CHICO ALENCAR*
A força do atraso, muito enraizada mas que já tem seus desgastes, pede uma ampla unidade do campo progressista, a cada ataque aos direitos da população, e no plano da articulação eleitoral.
Há 70 mil anos, grupos de sapiens só sobreviveram porque, frente às inúmeras adversidades, se juntaram. As forças da natureza e outros animais, mais fortes, representavam um risco constante de morte. Também comunidades humanas nossas contemporâneas, menos complexas tecnologicamente, ditas tribais, aprenderam que só unidas conseguem superar as ameaças à sua existência. Cooperação por necessidade.
Nos momentos mais críticos, classes exploradas, sociedades nacionais ou acordos transnacionais articularam pactos para enfrentar inimigos comuns, para não perecer. Isso vale para a terrível pandemia do novo coronavírus que abalou o mundo, em situação inédita. A ameaça mais ampla desde a Segunda Guerra Mundial.
Ao grão: para os recalcitrantes quanto ao distanciamento social, convém lembrar que, quando o vírus chegou ao país, em 26 de fevereiro, cada pessoa que o contraia contaminava outras 3,5, em média. Um mês depois, isso caiu para 1,9. Quase dois meses depois, esse índice de propagação diminuiu pouco, para 1,4: cada dois brasileiros infectados transmitem o SarsCoV-2 para outros três. Somos, assim, um dos epicentros mundiais da doença, que atinge sobretudo os mais pobres – como sempre, o corte de classe prevalece. A pandemia dobra de tamanho entre nós a cada 10 dias! Se dependesse do governo irresponsável de Bolsonaro seria muito pior.
Como pensar em outra questão diante dessa que é a mais terrível devastação sanitária da história do país? Como não priorizar o enfrentamento da maior mortandade concentrada, por doença, em nossos cinco séculos como formação social, aproximável do continuado genocídio dos povos nativos e dos africanos e seus descendentes escravizados?
A cientista e pneumologista da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, Margareth Dalcolmo, alerta: “de Nova York, símbolo do cosmopolitismo, às imagens chocantes de corpos nas ruas do Equador, ao colapso dos sistemas de saúde de Manaus, Belém e Rio de Janeiro, constatamos, mais do que vemos, o prenúncio do inexorável impacto do novo coronavírus em regiões de baixa e média rendas, morada de mais de 80% da população mundial. O mais grave é que sabíamos o risco elevado de exposição e vulnerabilidade destas comunidades e residências, onde falar de distanciamento social é retórica vazia e, com a falta de saneamento básico e água potável, recomendar lavar as mãos todo o tempo, quase picardia”.
Nossa histórica e aguda desigualdade social potencializa os efeitos danosos da pandemia. Metade da nossa população não tem coleta de esgoto. 32 milhões de compatriotas não têm acesso à água potável.
Como falar de eleições, para renovar pelo voto os governos e legislativos municipais, diante desse quadro? Tudo caminha para o adiamento do pleito previsto para outubro, sem prorrogação dos mandatos. Seja qual for o calendário, segue a pergunta: o que a escolha de prefeito(a)s e vereadore(a)s tem a ver com a batalha contra a Covid 19?
Muito! Haja vista a postura do mandatário maior da nação, já caracterizado como o pior governante do planeta no combate ao vírus. Sua postura destrambelhada é, inequivocamente, política. E Bolsonaro age com a força de um mandato presidencial que lhe foi conferido por quase 58 milhões de patrícios. Desastre eleitoral se enfrenta com… eleições – embora não apenas com elas.
Falar de eleições numa hora dessas? Sim, pois as agudas epidemias, mesmo quando “involuem” para endemias, só são combatidas eficazmente com políticas públicas fundadas na ciência, no planejamento, no empenho articulado de agentes públicos nas esferas municipais, estaduais e federais. Tudo o que o governo atual do Brasil negligencia, despreza, boicota.
O pleito municipal, seja lá quando se realizar, acontecerá sob o impacto tremendo do novo coronavírus no Brasil. As previsões do deputado e médico bolsonarista Osmar Terra, de que morreriam “apenas” cerca de quatro mil pessoas no país, já caíram por terra, infelizmente. O tema da saúde pública chegará forte aos debates para a renovação dos legislativos e executivos dos 5.570 municípios brasileiros, seja em Vila Risonha de Santo Antônio da Manga de São Romão, no norte de Minas Gerais, seja nas megalópoles das regiões metropolitanas.
Como fazer a máquina estatal funcionar com transparência, eficiência e atendimento dos secularmente marginalizados? Como prover bem a saúde pública, direito de tod@s? Como assegurar outras iniciativas em áreas fundamentais ao bem estar da população (que é saúde!), como saneamento básico, moradia, educação, transporte, coleta e processamento do lixo e meio ambiente? Como confrontar a cidade das pessoas, tão vital e esquecida, com a cidade-mercadoria, das negociatas imobiliárias e dos monopólios lucrativos de tantos serviços, em detrimento das maiorias?
A radicalização da extrema-direita no poder central, que atingiu absolutamente todas as áreas da vida nacional, dará um caráter plebiscitário a essas eleições: a racionalidade democrática contra a violência autoritária; a participação popular na gestão contra o verticalismo impositivo; as luzes da ciência e das artes contra a mistificação conservadora obscurantista. Em suma, o humanismo contra a barbárie. As questões locais, essência da disputa municipal, estarão, em maior ou menor grau, relacionadas com esse pano de fundo. Fundo de cenário cinzento e sinistro que se ergueu no Brasil. Os detritos escorrendo do nível federal para os distritos.
Bolsonaro, que sequer conseguiu criar um partido para chamar de só seu – ele, que já transitou por nove legendas – diz que não vai se envolver nas eleições municipais. Teme a pecha de “grande derrotado”. Mesmo que não queira, já está envolvido: sua continuada e agressiva polarização ficou irremediavelmente impregnada nas cabeças e nas bocas, em cada rincão do Brasil profundo.
Por isso é um imperativo derrotar esse feixe, o “fascio” (sim, de fascismo) de valores que ele representa. As eleições municipais são uma etapa importante para a sua derrota definitiva e nacional em 2022, caso não conquistemos, como é tão necessário, o impeachment do nefasto antes, ou a cassação da chapa das fake news, da fraude eleitoral.
Já no plano local se estará enfrentando, com seus representantes diretos ou aliados de ocasião, o neofascismo bolsonarista militarizado – são 2.897 militares, das três Armas, no governo, sendo oito ministros! –, abençoado por empresários da fé neopentecostal (não confundir com a massa de devotos, muito diferenciada) e o fisiologismo corrompido do Centrão. Eles constituem hoje o bloco político e social ultraconservador do Poder Central.
Essa força do atraso, muito enraizada mas que já tem seus desgastes, pede uma ampla unidade do campo progressista, desde já, a cada ataque aos direitos da população, e no plano da articulação eleitoral.
Quanto a esta, é fundamental o diálogo franco, nem sempre praticado pelas forças progressistas. Mesmo com as limitações atuais, é hora de cartas na mesa (virtual), olho no olho (remoto), em encontro de presidentes regionais ou municipais e pré-candidato(a)s. Nesse encontro devem estar PT, PDT, PSB, PSOL, PCdoB, Rede, PCB, PSTU, PCO e UP.
Nesse encontro devem ser costurados pontos programáticos mínimos, de comum acordo. Nesse encontro deve ser feita a avaliação dos nomes que têm melhores chances para os Executivos e argumentação para a aglutinação em torno de um desses nomes, sempre que possível. Na impossibilidade, que se alinhave ao menos um pacto de não-agressão no primeiro turno, para não queimar pontes de aproximação no segundo turno, onde houver.
Frente só existe quando reúne forças distintas. Suas identidades devem ser preservadas, mas nunca impeditivas da soma de esforços comuns, como na Frente Ampla do Uruguai ou na “Geringonça” portuguesa – guardadas as diferenças de processos e história.
Precisamos aprender a ter flexibilidade tática sem diluir a firmeza estratégica. É necessário congregar partidos ideológica e doutrinariamente nítidos e distintos, sem se deixar dominar pelos recorrentes personalismos, sectarismos e estreitezas. Sem colocar a autoconstrução em primeiro lugar, por mais legítimo que seja querer não desaparecer com as crescentes cláusulas de barreira. É preciso, na hora grave, superar o velho “narcisismo das pequenas diferenças”.
Frente não se constrói apenas nem principalmente para as eleições. É urgente vê-las constituídas nos movimentos e lutas populares, como a Povo Sem Medo e a Brasil Popular já ensaiam. É inviável, no mundo de hoje, qualquer perspectiva de mudança substantiva sem a conjunção de uma miríade de movimentos também não partidários.
Eleição não é “solução final”, mas é marco. É aferição. É o momento onde até os que, por razões da dureza do dia a dia ou do alheamento por uma dimensão que não parece afetar suas vidas, se interessam por “política”, propagada pela cultura burguesa como mera delegação. Nossa difícil e imprescindível tarefa, na luta contra a antipolítica, é promover o reencantamento e a mobilização. Vamos juntos!
*Chico Alencar é professor da UFRJ, escritor e ex-deputado federal (PSOL/RJ)