Fragmentos VII

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por AIRTON PASCHOA*

Sete peças curtas

 

Brasil do choro

(cobra na escada)

Com todo o duvidoso, quem não queria de volta, angá-catu-rama! o país do choro? Tocado de saudade, o choro prometia, e promessa é dívida, impagável porque radiante esperança. Impossível de saldá-la, a flauta convidava a flautear, e não podia haver então presente igual, só sonhando. O que promete hoje o tenebroso Brasil do choro? Mais e mais lágrima, cumprindo à risca a letra. Choremos, pois, e pau no literal — quebra, quebra, minha gente!

(E não seja quebradinha, não!)

 

Pandemia

Quando todo dia é domingo e não é a Suíça; quando ninguém liga se o mês tem ou não feriado; quando se aguarda nova de necrológio; quando o temor vira tumor; quando home office se confunde com homem office; quando recebe de paga inda mais violência a de mor valia; quando o silêncio amplifica o  borborismo da digestão injusta; quando se vê o sol nascer querido e quadrado; quando a quarentena despenha em setentena oitentena noventena novela sem fim e a história não prende.

 

Negacionismo

Sacristão, sacripanta, basta uma bactéria, um vírus, quem não vê? pra te mandar pra cova ou pro vácuo com o esforço dum — espirro. Vida frágil! ai, meu estáquio, tem quem engula a velha platitude? Frágil fica a vida em corpo social que se lixa pra ela. Pra ele vitais mesmo são esses serezinhos microscopiquinhos que tanto fazem prosperar a sepse do lucro, este, sim, visibilíssimo a olho nu! Como se sente na pele, desfiguradamente, e abaixo dela, a Medicina, a reboque de grandes laboratórios e altas tecnologias, não passa no fundo de formidando negócio. Poderia ser de outro modo? Poder, poderia, desde que mandássemos pros quintos dos infernos este corpus morbus e cuidando à uma de trazer ao mundo novo corpo, de fato, social.

Importante — não conforme diagnosticam em americanês os doutores em tradução colonoscopiada, importante, com efeito, é testar se, de tão antiga e generalizada infecção, inda resta reação aos infectados.

 

Antropoceno

Cozendo que nem ovo, rachando, despregando placas e pragas, ovo azul, visto do espaço, azul-roxo, revisto do espaço nasista, roxo-sem-ar, azul-sem-vida, sobrevivem os aleluiados eleitos, magnatas enterrados em confortáveis catacumbas hi-techsanas. Voltando à caverna, a humanidade, feliz e finalmente, não conhece mais disputa por lugar ao sol, ou à sombra.

Pode não ser o sonhado happy end, reconheço, mas é o end da happyna. Abotinados, gozam o direito de butim. A Terra lhes seja pesadelo!

 

Travessia

(jubilai-vos)

O enjoado mar, ó semoventes da terra, vos abre os braços e o que podeis fazer a respeito, e em respeito, é fila. Figa é vã.

 

[depoimento]

Faço saber, a quem interessar possa prova, que a gente veio largando mão de escrever e passando a depor. E faz tempo, desde, desde, só pra registrar uma data, mesmo que falsa, pode botar meio século, pouco mais, pouco menos. Nos últimos 50 anos, então, barrabás! o gênero parece que bombou. Andaram dedurando que nossa longa marcha arrasta um rastilho interminável de corpos… Contravenções, delitos, ilícitos, tudo nonada. Delatam crimes, crimes e mais crimes, crimes em série, infinita, crimes com requintes de Humanidade! Que fazer? A gente depõe e o Mercado dispõe.

 

Assim assado

O trópico desfibra, desmiola, desmente, descasca. Eis por que remedo sem parar o dragão-de-kômodo, drigo, droga, komodo. Parado, não me mexo de jeito maneira — nem cutucado de vara curta, nem de sede comprida. Fontes, ilhas, mares, cataratas, que mal enxergo da enxerga, fantasio.

Não é bem assim. Mas é sempre assado.

*Airton Paschoa é escritor, autor, entre outros livros, de A vida dos pinguins (Nankin, 2014)

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A crônica de Machado de Assis sobre Tiradentes
Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Uma análise machadiana da elevação dos nomes e da significação republicana
Umberto Eco – a biblioteca do mundo
Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO: Considerações sobre o filme dirigido por Davide Ferrario.
Dialética e valor em Marx e nos clássicos do marxismo
Por JADIR ANTUNES: Apresentação do livro recém-lançado de Zaira Vieira
O complexo de Arcádia da literatura brasileira
Por LUIS EUSTÁQUIO SOARES: Introdução do autor ao livro recém-publicado
Cultura e filosofia da práxis
Por EDUARDO GRANJA COUTINHO: Prefácio do organizador da coletânea recém-lançada
Ecologia marxista na China
Por CHEN YIWEN: Da ecologia de Karl Marx à teoria da ecocivilização socialista
Papa Francisco – contra a idolatria do capital
Por MICHAEL LÖWY: As próximas semanas decidirão se Jorge Bergoglio foi apenas um parêntesis ou se abriu um novo capítulo na longa história do catolicismo
A fraqueza de Deus
Por MARILIA PACHECO FIORILLO: Ele se afastou do mundo, transtornado pela degradação de sua Criação. Só a ação humana pode trazê-lo de volta
Jorge Mario Bergoglio (1936-2025)
Por TALES AB´SÁBER: Breves considerações sobre o Papa Francisco, recém-falecido
O consenso neoliberal
Por GILBERTO MARINGONI: Há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES