O capitalismo não vai nos salvar da Covid

Foto de Christiana Carvalho
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARIANA MAZZUCATO*

Quando a ganância é a filosofia que guia um governo, um “apartheid vacinal” está praticamente garantido

Boris Johnson atribuiu o sucesso da vacinação no Reino Unido ao “capitalismo” e à “ganância”. Ainda que essas tenham sido afirmações grosseiras, se as palavras do primeiro-ministro são algum indicador de sua visão sobre como o Reino Unido pode se recuperar da pandemia, então existem implicações preocupantes para as políticas internas e externas do país.

Essa não é a primeira vez que Johnson aprendeu a lição econômica errada da crise causada pela Covid. Há alguns meses, ele afirmou, neste mesmo espírito, que para “aqueles na esquerda, que pensam que tudo pode ser financiado pelo querido titio pagador de impostos… chega uma hora que o estado deve dar um passo atrás e deixar que o setor privado vá adiante”. Johnson também não é a primeira pessoa a ver as vacinas como um golpe do setor privado. Vale lembrar que a vacina da “AstraZeneca” foi criada por cientistas da Universidade de Oxford e foi desenvolvida e distribuída pela gigante farmacêutica. Mesmo assim, o setor privado surgiu como o vencedor na celebração pública das vacinas contra a Covid.

O fato é que uma quantidade de financiamento público sem precedentes foi despejada na pesquisa, no desenvolvimento e na produção das vacinas. As seis principais candidatas receberam estimadamente 12 bilhões de dólares (cerca de R$: 70 bi) do dinheiro público e dos contribuintes, incluindo 1.7 bilhões de dólares para a vacina da Oxford/AstraZeneca e 2.5 bilhões para a candidata da Pfizer/BioNTech. Um investimento de tal nível representa um enorme risco – e não é o único risco que o setor público assumiu. Governos valeram-se de “compromissos antecipados de mercado” para garantir que empresas privadas bem-sucedidas na produção de uma vacina para a Covid-19 serão amplamente recompensadas com grandes encomendas.

Fundos públicos utilizados na pesquisa e no desenvolvimento são, frequentemente, mais empreendedores – no sentido de que os governos estão investindo nas etapas mais ariscadas de inovações na área da saúde, antes de qualquer mercado se fazer viável. Essa é uma parte da razão pela qual as empresas conseguiram desenvolver uma vacina para a Covid em tempo recorde. Como deixa claro um novo relatório do Conselho de Estratégia Industrial do Reino Unido, a rápida reviravolta nas vacinas teria sido impensável sem o envolvimento do Estado. Uma coordenação governamental efetiva e “orientada para a missão” – desde a política industrial até o investimento nas ciências da vida, os contratos públicos estratégicos e as parcerias público-privadas – foi a chave para a história bem-sucedida das vacinas contra a Covid-19.

Existe, porém, uma importante ressalva a essa narrativa. Apesar do reconhecimento que o governo demonstra ter da força do Reino Unido no setor das ciências da vida e apesar de sua intenção de ampliá-lo por meio de dois novos acordos setoriais, a capacidade britânica de produzir doses eficientes está longe de ser algo dado. O duradouro fracasso da Grã-Bretanha em oferecer suporte para sua base produtiva está refletido nas recentes disputas entre o Reino Unido e a União Europeia em torno da oferta de doses da Oxford/AstraZeneca. Antes da crise, o Reino Unido não tinha interesse em investir em uma base industrial interna para a produção em massa de vacinas e de outros produtos das ciências da vida. Se os ministros tivessem elaborado um plano de investimento em fábricas britânicas de vacinas antes da pandemia de coronavírus, eles provavelmente teriam encontrado uma recepção menos do que entusiástica.

Esse é o benefício de uma visão retrospectiva. A retrospecção, no entanto, também mostra porque uma visão prospectiva para uma estratégia industrial de longo prazo que invista em produtividade e crescimento econômico ao mesmo tempo em que foque em desafios maiores como a crise climática e futuras pandemias é algo vital. Em vez de ver a situação atual como o momento para dar início a um tal plano, Johnson está pondo fim a uma estratégia industrial sensata. O fim do Conselho Estratégico Industrial, anunciado recentemente, não é um bom sinal para a adoção de suas valiosas ideias. Enquanto o governo se compromete com dobrar os gastos públicos com P&D, chegando a 22 bilhões de libras por ano em 2024-25, ele propõe cortes nos recursos do UK Research and Innovation (UKRI), com investimentos em desenvolvimentos internacionais reduzidos à metade.

Se isso mina a infraestrutura que foi crucial para o sucesso da vacinação no Reino Unido, como parece ser o caso, então a recém-fundada Agência de Pesquisa e Invenção (ARIA) corre o risco de se tornar uma distração custosa. Nos EUA, o modelo da Agência Avançada de Projetos de Pesquisa (ARPA), no qual a ARIA se inspira, foi um grande sucesso justamente porque está localizado em uma infraestrutura de pesquisa vibrante e descentralizada, apoiada por investimento público em ciência, o qual o governo Biden pretende aumentar.

O fato de que tais cortes à pesquisa no Reino Unido estejam acontecendo durante uma pandemia global é um sinal preocupante sobre as prioridades de Johnson. Quando ele falou de ganância, ele identificou o que está errado no sistema – não o que merece elogios. Sozinha, uma vacina não será o suficiente para interromper o avanço do coronavírus, e o Reino Unido não estará a salvo da Covid-19 até que a maioria da população global esteja vacinada. É extremamente difícil ver como a ganância ajudará a garantir que a vacina será disponibilizada para todas as pessoas, em todos os países, gratuitamente.

Tratar do monopólio das empresas farmacêuticas sobre a ciência, sobre o know-how e a tecnologia, e compartilhar isso com o máximo de países possível será essencial para aumentar a escala e descentralizar a produção de vacinas pelo mundo. A Organização Mundial da Saúde estabeleceu uma rede de acesso à tecnologia sobre a Covid-19 (C-Tap) para permitir que governos e empresas façam justamente isso. Além disso, a África do Sul e a Índia apresentaram uma proposta à OMS, apoiada por mais de 100 países, para que se levantem temporariamente os direitos de propriedade intelectual de tecnologias relacionadas à Covid. Uma pesquisa recente mostrou que 74% dos britânicos apoiam tais posições. Em resposta, o governo ignorou a C-tap e bloqueou o levante temporário nas propriedades intelectuais.

Quando a ganância é a filosofia que guia um governo, um “apartheid vacinal” está praticamente garantido. Até agora, 56% ou mais das 455 milhões de doses de vacina foram para países ricos e apenas 0.1% foram administradas nos 29 países mais pobres. A Covax, que visa vacinar até 27% da população em 92 dos países mais pobres, provavelmente não dará conta sozinha.

Sendo bem-sucedido em seu próprio programa de vacinação, o Reino Unido deve agora ser uma base forte ajudando a entregar uma Vacina Popular para o mundo. A promessa do governo britânico de doar as vacinas excedentes é um começo, mas isso está longe de ser suficiente. São necessárias lideranças firmes e esperança. Em vez disso, porém, o primeiro-ministro parece sustentar a visão anacrônica e contraprodutiva de que o capitalismo e a ganância são o que vacinará o mundo e ajudará a reconstruí-lo após a pandemia.

*Mariana Mazzucato é professora de economia na Universidade de Sussex (EUA). Autora, entre outros livros, de O Estado empreendedor (Companhia das Letras).

Tradução: Daniel Pavan.

Publicado originalmente pelo jornal The Guardian.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Manchetômetro Eugênio Trivinho Valerio Arcary Rafael R. Ioris Julian Rodrigues Francisco Fernandes Ladeira Marilia Pacheco Fiorillo Ronald Rocha Marjorie C. Marona Yuri Martins-Fontes Daniel Costa Antonio Martins Berenice Bento Jean Pierre Chauvin Walnice Nogueira Galvão Gilberto Lopes João Paulo Ayub Fonseca José Micaelson Lacerda Morais Marilena Chauí Eliziário Andrade Jorge Luiz Souto Maior Daniel Afonso da Silva Kátia Gerab Baggio Osvaldo Coggiola Gilberto Maringoni Flávio R. Kothe Armando Boito Luis Felipe Miguel Luiz Carlos Bresser-Pereira Liszt Vieira Lincoln Secco Carlos Tautz Claudio Katz Ricardo Fabbrini João Lanari Bo André Singer Carla Teixeira Boaventura de Sousa Santos Luiz Werneck Vianna Everaldo de Oliveira Andrade Alexandre de Lima Castro Tranjan Valerio Arcary Matheus Silveira de Souza Lorenzo Vitral José Raimundo Trindade Leda Maria Paulani Thomas Piketty Gerson Almeida Marcelo Guimarães Lima João Sette Whitaker Ferreira Igor Felippe Santos Eleonora Albano Leonardo Sacramento João Feres Júnior André Márcio Neves Soares Airton Paschoa Marcus Ianoni Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Bernardo Pericás Fernando Nogueira da Costa Luís Fernando Vitagliano João Adolfo Hansen José Dirceu Ronald León Núñez Maria Rita Kehl Paulo Martins Bernardo Ricupero Tarso Genro Samuel Kilsztajn Celso Frederico Rodrigo de Faria Mário Maestri Chico Alencar Vanderlei Tenório Ricardo Abramovay Andrés del Río Eduardo Borges Renato Dagnino Marcelo Módolo Heraldo Campos Eugênio Bucci Jean Marc Von Der Weid Paulo Capel Narvai Paulo Sérgio Pinheiro Remy José Fontana Priscila Figueiredo Francisco Pereira de Farias Chico Whitaker Manuel Domingos Neto Paulo Nogueira Batista Jr Marcos Silva Leonardo Avritzer Alexandre Aragão de Albuquerque Ari Marcelo Solon Luiz Renato Martins Marcos Aurélio da Silva Ronaldo Tadeu de Souza Annateresa Fabris Alexandre de Freitas Barbosa João Carlos Loebens Leonardo Boff Mariarosaria Fabris Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luiz Eduardo Soares Paulo Fernandes Silveira Antônio Sales Rios Neto Ladislau Dowbor Antonino Infranca Andrew Korybko Fábio Konder Comparato Benicio Viero Schmidt Tadeu Valadares José Geraldo Couto Flávio Aguiar Eleutério F. S. Prado Luiz Roberto Alves Henri Acselrad Tales Ab'Sáber João Carlos Salles José Luís Fiori Ricardo Musse Otaviano Helene Bruno Machado Elias Jabbour Érico Andrade Slavoj Žižek Alysson Leandro Mascaro Atilio A. Boron Afrânio Catani Luiz Marques José Machado Moita Neto Luciano Nascimento Celso Favaretto Michel Goulart da Silva Dennis Oliveira Fernão Pessoa Ramos Milton Pinheiro Gabriel Cohn Denilson Cordeiro Lucas Fiaschetti Estevez Sandra Bitencourt Caio Bugiato Jorge Branco Henry Burnett Michael Löwy Sergio Amadeu da Silveira Anselm Jappe Bruno Fabricio Alcebino da Silva Francisco de Oliveira Barros Júnior Juarez Guimarães Vinício Carrilho Martinez Michael Roberts Bento Prado Jr. Salem Nasser José Costa Júnior Vladimir Safatle Ricardo Antunes Daniel Brazil Dênis de Moraes Rubens Pinto Lyra

NOVAS PUBLICAÇÕES